30 de set. de 2014

16 - Trevas tão minhas

Naquela sexta-feira eu voltada cansado do Grande Hotel, tinha sido uma daquelas noites onde o público não tinha se manifestado. Não houve aplausos, pedidos, seguir sorrisos de aprovação, havia gente às mesas do bar, mas pareciam fantasmas. Sentado ao piano, um piano de armário, de costas para as pessoas, era assim que eu ficava naquele ambiente, diferentemente do Engenho das Águas, o restaurante para reservas no hotel, onde eu tocava de frente para as mesas num piano de cauda, me senti muito sozinho. Num momento olhei para o lado e não vi nem os garçons de prontidão.
Existem momentos no ofício de um pianista quando as notas da música não parecem vir do toque de nossos dedos sobre as teclas. Parecem estar longe, no mundo espiritual, não no material, é estranho, um autismo momentâneo que nos deixa colados ao banco, com a impressão de que nunca mais sairemos daquele lugar. Contudo, deram vinte e três horas, após quatro horas tocando, e eu me levantei, fechei o instrumento, peguei minhas partituras, me despedi dos garçons e fui embora.
A rodovia do açúcar estava vazia, quando passei o primeiro pedágio, o carro seguiu numa velocidade constante, parecendo que não era dirigido por mim. Eu olhava para os lados e via o horizonte, acima da vegetação, parado, essa situação nos coloca em transe, dá-nos a impressão que estarmos flutuando sobre a terra. Aquilo me relaxou e eu desliguei a música, Stevie Wonder não combinava com aquela paisagem. Nem percebi quando um carro me ultrapassou, ele veio tão rápido que quando vi estava a minha frente. Minha primeira reação foi a de piscar a luz alta, reclamando da falta de educação dele, mas eu resisti, deixei pra lá, segui no meu ritmo.
Andei mais uns quinze minutos quando a rodovia fez um aclive e depois começou a descer, foi então que vi à frente luzes piscando. Diminui a velocidade à medida que me aproximava, estava muito escuro. Ao lado de um carro parado no acostamento da minha mão, um homem falava ao celular, pouco mais à frente havia um carro de polícia no acostamento da outra mão, era ele que tinha as luzes amarelas piscando. Contudo, cruzando a estrada um caminho de carroceria dupla, carregado de cana de açúcar, estava tombado. Um policial no meio da estrada orientou-me para que eu fosse pela esquerda, pegando parte da pista contrária para poder passar.
Dirigi devagar, olhando o acidente, à direita um homem com as mãos na cabeça conversava com outro policial, acho que era o motorista do caminhão. Foi então que percebi, debaixo da carroceria do caminhão, esmagado por ela, um automóvel, e vi que era aquele carro que tinha passado por mim minutos antes. Tentei virar o rosto, mas não deu tempo, havia alguém lá embaixo, imóvel. Pisei no acelerador e fui embora, logo em seguida, na pista da esquerda, passou por mim uma ambulância.
O motorista não tinha sobrevivido, com certeza estava morto, era um jovem, provavelmente indo de Piracicaba para Sorocaba, como tantos que eu via naquelas madrugadas, em busca de alguma balada nova para se divertir, quem me confirmou essa informação foi a moça do segundo pedágio que passei logo à frente. Aquela rodovia, que era pra mim um caminho que me conduzia a uma festa, para tocar minha música num ambiente requintado, cheio de deleites e luxo, virou um caminho fúnebre, de luto. A morte escureceu minha ilusão de alegria, deu fim a uma vida que provavelmente estava pensando em tudo, alguns minutos antes, menos na morte.
Segui com um vazio no estômago, meu coração se apertava e doía, parecia haver agulhas dentro dele e qualquer movimento o fazia sangrar. A rodovia do açúcar terminou, peguei a Castelinho e mais um pouco e eu entrava em Itu. Passei pelo portal da cidade e parei no sinal vermelho, geralmente, àquela hora, quase meia-noite, eu olhava para os lados e seguia, mas naquele momento eu estava tão cansado que parei para esperar o sinal abrir.
Vi então pelo retrovisor, aproximando-se uma ambulância, na velocidade que estava, com as sirenes ligadas, ela passou pelo sinal vermelho e seguiu Eu a olhei, indo pela avenida, ao lado do cemitério. O sinal abriu e eu fui embora. Seria a ambulância que eu vi lá na rodovia? O cara do acidente estaria dentro dela? Estaria vivo? Como sempre fazia, cheguei em casa, guardei o carro, e fui a pé até o bar, tomar meu café.
No bar, numa mesa ainda havia algumas pessoas, quatro homens, de roupas sociais. Riam e tomavam cerveja. Enquanto eu esperava Rai coar meu café eu os observava, mas eles já estavam de saída. Levantaram-se, pagaram a conta e foram embora, todos menos um. Esse se encostou ao balcão e pediu um café. Raimundo aproveitou o café que me fazia e coou no meu copo e no dele. Os caras deveriam estar por lá desde o começo da noite, emendaram o happy hour com a madrugada e seguiram em frente com a festa. Aquele que sobrou, contudo, devia não estar satisfeito, ainda queria um café, ainda queria conversar.
- Trabalhei a semana inteira, tenho direito a umas cervejas – disse ele. Era um moço bonito, de cabelos negros e lisos, com cara de super-herói de história em quadrinhos, queijo quadrado, ombros largos, mas não era alto, tinha a minha estatura. Tinha uma boa presença, falava claro, com liderança, gente acostumada a dizer o que quer, sabendo o que quer, e sendo bem remunerada por isso.
- Deixa você chegar em casa, a patroa está te esperando com o pau de macarrão – respondeu Raimundo com um ar sarcástico.
- Neste final de semana não viajarei, ela tem dois dias comigo – disse o cara.
- Não vai viajar a serviço? – perguntou Rai.
- Não, acho que é o primeiro final de semana que passo em casa em dois meses – respondeu o homem.
- Trabalho a semana toda aqui no bar, mas se pudesse passaria mais tempo em casa com a família – disse Raimundo enquanto lavava o coador.
- Nem vejo meus filhos crescer, festa do dia dos pais em escola acho que nunca fui, mas fazer o que alguém tem que pagar as contas. Minha mulher é que é feliz, passa o dia levando e trazendo filho da escola, indo à academia, fazendo unhas e cabelos, torrando meu dinheiro – declarou o homem procurando explicar a vida que tinha.
- Minha mulher trabalha também, meus filhos ficam com minha sogra. Esse aqui é que é feliz, – disse Rai apontando pra mim – solteiro, tocando na noite, mulheres bonitas.
- Engano seu, meu amigo, engano seu – respondi, entrando na conversa.
- Você é músico? – perguntou-me o homem.
- Sou pianista – respondi.
- Toca teclado? – disse ele.
- Não, piano, estes grandes, de madeira.
As pessoas, em sua maioria, sempre insistem em nos nivelar por baixo, sempre fiquei irritado com quem acha que sou tecladista. Sim, eu também trabalho com teclado eletrônico, “mas toco piano, estudei Bach, Chopin, me respeitem”, bem, essa insegurança era bem mais exacerbada em mim naquele tempo.
Nos dias atuais pouca gente conhece música séria, ouve-se tanta música, mas tudo tão sem qualidade. O homem tinha pouco mais de trinta anos, era um desses jovens profissionais bem sucedidos, que queriam ganhar seu primeiro milhão antes dos quarenta anos.
- E a casa no Terras, já terminou? – perguntou Rai.
- Sim, estou construindo outra, pra deixar pros filhos. – respondeu o cara – O que não vale à pena é ter casa de praia, o apartamento que comprei no Guarujá, quase nunca uso, quem desfruta dele são meus cunhados.
- Você trabalha com que? – perguntei eu.
- Consultoria para investimentos, bolsa de valores, imóveis – disse ele sorrindo deliciosamente, agora ele falava do que gostava. Família? Finais de semana? Passeio? Não, sua diversão era trabalhar, ganhar dinheiro, esse era seu prazer, esse era seu vício.
- Legal – respondi com total desinteresse.
Se há algo que nunca me despertou atenção são áreas financeiras, ferramentas exclusivas para fazer dinheiro virar mais dinheiro. Uma pintura, uma peça teatral, um conto, uma sinfonia, isso sim tem valor, mas ações da bolsa? Nunca entendi direito como é que isso funciona.
O cara era o tipo que comprava um quadro para colocar na sala de estar de seu duplex somente pela cor predominante na pintura, para combinar com a decoração e com os móveis. Ele nem sabia o que significava o trabalho, o que o pintor queria passar com sua arte. Não que ele não pagasse o preço que a pintura valia, pagaria sem regatear, mas porque a esposa tinha dito com veemência que aquilo era o que faltava para que a sala ficasse perfeita, conforme a orientação da decoradora.
- Minha mulher toca piano erudito, temos um piano em casa, minha filha mais velha faz aulas no conservatório de Salto. – disse ele com arrogância, é claro que eu senti que ele me diminuía – Quanto ganha por noite?
- O suficiente – não ia passar valores a ele, que julgava as pessoas pela conta no banco, pelo carro, pelas roupas, e que comprava cultura como quem paga um vinho caro, não porque sabe o valor que tem, nem porque usufrui de sua excelência, mas porque lhe dá status, porque alguém lhe disse que isso é chique.
- Entendo – disse o homem, me medindo de baixo em cima. Meu terno preto gasto não se sentiu humilhado por sua soberba, naquela época de minha vida a música já havia me dado todas as alegria que podia, dignidade maior até, que a que eu merecia. Eu sabia que o meu problema não era minha conta no banco, meu terno velho, eu sabia disso, o cara não. Esse ainda achava que quando tivesse acumulado seu primeiro milhão sua via alcançaria o clímax, pobre homem.
Tem muita gente assim, que se acha melhor que os outros, por ter um carro maior, uma casa num condomínio, um sobrenome antigo e estabelecido na província. Gente assim se casa com uma mulher para que os outros vejam que ela é bonita, magra, rica, e não por se apaixonarem por ela. Gente assim só se apaixona pela casca da vida, por aquilo que pode ser mostrado, avaliado, a primeira vista. Aquilo que é preciso pensar, sentir, que toca o coração, isso não tem valor pra elas. Pode-se vender ou comprar um sentimento? Não, mas um cabelo bem cuidado, uma pele bem tratada, coberta de panos caros, de couros raros, de ouro, de prata e de diamantes, isso sim, é para ser visto por qualquer um, para rapidamente se conclua que o dono disso tudo é alguém poderoso, maior do que todos os outros.
Nunca quis ser maior, melhor sim, melhor do que eu mesmo, dentro de mim, um ser humano melhor que sabe amar, perdoar, que é grato, que reage com serenidade aos confrontos da vida. Naquele tempo eu não conseguia ser assim, mas tentava passar todo esse equilíbrio e paz através da música, pelo piano. O cara tomou o café e foi-se embora.
- Equivocado ele, hem Rai? – confidenciei ao meu amigo.
- Ah sim, metido – sorriu Raimundo.
As críticas de Rai nunca pareciam frívolas, pessoais, eram sempre sábias, uma opinião que não era dele, mas ratificada por muitas pessoas, pessoas das quais ele tinha ouvido e aprendido, durante sua vida, a sabedoria das ruas e não das escolas.
- Enfim ele volta pra casa – eu ri.
- Volta nada, ele tem uma amante, uma menina simples, trabalha no comércio aqui no centro. Ele sempre a vê às sextas-feiras, só vai chegar em casa amanhã cedo – segredou Raimundo.
- Como uma mulher aguenta essas coisas? – perguntei eu.
- Ela é bem paga para aguentar isso. Durante o dia ela vem almoçar aqui com os filhos, lindíssima, elegante, nunca repete roupa. Ela também deve dar os pulos dela – gargalhou Rai maliciosamente.
Paguei meu café e fui embora. Aquilo não me deixou feliz, não me alegrei com a incoerência daquele casal, tudo aquilo só me deixou mais desacreditado no homem, em seus valores. Poxa vida, alguém com tanto dinheiro, poderia se dar ao luxo de ser feliz, de viajar ao exterior, consumir cultura e arte, dar o melhor a sua família, ajudar as pessoas. Ao invés disso ficavam mais vazios, mais mesquinhos, mais gananciosos, quanta hipocrisia, quanto trabalho por nada.
Naquela noite eu vi duas vidas vazias, uma morrendo em busca de prazer, naquele acidente de carro na rodovia, e outra morrendo de trabalhar. Aonde estava a verdadeira razão de viver? Na diversão, nas baladas, ou no trabalho, nos escritórios? Fosse à noite ou no dia, tudo parecia trevas, e eu nas trevas ia, trevas vazias, tão minhas. Aquelas duas vidas tinham sido meu sexto encontro.
Contudo, aquela noite ainda tinha algo reservado pra mim. Caminhando a pé para casa, passei pela igreja matriz e desci pela rua ao lado do colégio. No meio da quadra havia uma pessoa encostada ao muro, eu passei por ela e segui. Virei à esquerda e subi pela Rua do Patrocínio, num determinado momento eu atravessei a rua, foi então que percebi uma pessoa vindo atrás de mim, era a mesma que estava parada na rua do colégio. Como se fosse por uma revelação, me veio à mente aquela pessoa que estava parada na minha rua, na noite que Juliana me deixou em casa.
Sem parar de andar eu virei o rosto e foi no exato momento que a pessoa passava por um poste de iluminação, aí eu tive a certeza, era a mesma pessoa daquela noite. Desesperei-me, apressei os passos, peguei à direita, à esquerda novamente, e outra vez á direita, depois tornei a pegar à direita e estava na rua de casa. Eu corri até em casa, abri o portão, subi para a varanda, enfiei a chave na fechadura, abri a porta, entrei e a fechar a porta. Não acendi a luz, abri uma fresta na cortina e fiquei espiando, não demorou muito e a pessoa passou em frente a minha casa. Ela não parou, caminhou devagar, então pegou à direita e foi embora. Eu não tive dúvidas, era o assassino contratado por Breno.

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O que é prazer? É igual para todos? As pessoas buscam o prazer? Prazer é felicidade? Felicidade é algo espiritual? Existe prazer em ser espiritual? Ou o prazer é algo carnal?
As coisas não são respondidas assim com clareza, já que as perguntas não são feitas objetivamente. Por quê? Porque sem Deus o homem anda em trevas, não sabe de onde vem, para onde vai, nem sabe se está indo ou vindo. Não descansa quando precisa, não segue, quando é possível, não ama quem merece, deseja o que não é seu e despreza aquele que é o seu maior direito.
Trevas, negras trevas, e não são trevas físicas, às vezes nem são trevas morais, mas espirituais. Isso porque as pessoas sabem o que é certo e errado, mas isso, somente isso, não é suficiente para conhecerem a Deus. Fazer o bem não é necessariamente estar na luz, andar com Deus, assim como não é pela mal que se faz que se está condenado a uma eternidade nas trevas, sem luz e sem Deus.
Não existe prazer nas trevas, distante de Deus não há luz, portanto só existe felicidade em Deus. Deus não está na luz, Deus é a luz, a única luz, e Jesus a porta que nos conduz a ele.

Para onde me ausentarei do teu Espírito? Para onde fugirei da tua presença? Se eu subir ao céu, lá tu estás; se fizer a minha cama nas profundezas, tu estás ali também.
Se tomar as asas da alvorada, se habitar nas extremidades do mar, ainda ali a tua mão me guiará, e a tua mão direita me sustentará.
Se eu disser: As trevas me encobrirão e a luz ao meu redor se transformará em escuridão; até mesmo as trevas não serão escuras para ti, mas a noite brilhará como o dia; pois as trevas e a luz são a mesma coisa para ti.
Salmos 139.7-12

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