Na madrugada de
segunda-feira, eu não conseguia pegar no sono, o trato que tinha feito com
Breno pesava em minha cabeça, a imagem da pessoa que tinha me seguido andava no
meu quarto, ao redor da minha cama. O que me torturava era o fato de eu não
conseguir ver o rosto, via o corpo, os cabelos, mas não conseguia distinguir os
olhos, a boca. Precisava sonhar, perder a consciência, sair daquele pesadelo real,
mas não segurava as imagens que via no teto de meu quarto, elas definiam-se e se
perdiam. Eram de um filme de terror, e eu não era o protagonista, era um
daqueles coadjuvantes que estavam no lugar errado, fazendo a coisa errada, e que
não sobreviveria até o final. Pensava na dor de morrer, era teria que ser menor
que a dor de viver, senão não valeria à pena, então, enfim, consegui sair do
quarto e penetrar nas visões.
O caminhão da
rodovia caia sobre meu carro e eu estava preso entre as ferragens. Faltava-me
ar, eu o puxava e ele não vinha, ouvia as sirenes da polícia, gritava, mas a
voz não saía, ninguém me escutava. Pelo vidro trincado eu vi um carro passar, o
motorista me olhou, deu um riso macabro, mas não disse nada e seguiu em frente.
O motorista do carro que passou era eu que me abandonava só, para morrer. Havia
em mim no carro que ia, um prazer em me ver sofrer no carro que ficava. Ouvi um
barulho, alguém tentava me libertar do carro debaixo do caminhão, mas acordei e
percebi que o barulho era em casa.
Não conseguia me
levantar, minha mente ainda estava presa ao sonho, o barulho era de algo
arranhando madeira. Não havia forças em meus braços, meus pés estavam colados
ao cochão, o centro do meu corpo se esforçava, até se desprendia da cama, minha
cabeça se mexia, mas meus tornozelos e meus pulsos pesavam uma tonelada.
Aqueles segundos pareceram horas, enfim, reunindo toda a força que podia, consegui
me erguer. Sentei-me na cama, olhei para a porta fechada do quarto e vi a luz
pelas frestas, a lâmpada do corredor que eu deixava acesa. Disse para mim
mesmo, “preciso ver o que está havendo, mas e se for o assassino?”. Me virei e
coloquei os pés no chão, então o barulho parou, “será que o bandido entrou em
casa?”, me perguntei.
Coloquei a mão
direita na maçaneta e abri bem devagar, dei um passo e estava no corredor,
então ouvi novamente o ruído, dei três passos e entrei na cozinha, não era de
lá que vinha o barulho. Dei meia volta e fui até a sala, parei e prestei atenção,
era como se alguém esfregasse as unhas na porta. Dei mais três passos e acendi
a luz da varanda, pensei, “a luz vai assustar o cara e ele vai fugir”, mas não
foi isso que aconteceu, o barulho continuou.
Não sei o que nos
move em direção ao perigo, eu poderia simplesmente ter checado se as chaves
estavam fechadas, girar as outras travas da porta, que geralmente ficavam
abertas, para me proteger mais e pronto, fosse quem fosse, não poderia entrar.
Depois poderia até ligar para a polícia, ou então, numa solução desesperada, ir
para a cozinha, abrir a porta e sair pelos fundos, rapidamente eu pularia o
muro e estaria na casa do vizinho. Mas não foi isso que fiz.
“Vou abrir a porta,
preciso saber o que é isso.” Num movimento só eu coloquei a mão direita na
maçaneta da porta da sala, movimentei-a, e com a mão esquerda girei a chave,
uma, duas vezes, e rapidamente, puxei a porta. Foi puxar e o gato miar e sair
correndo, o bichano estava na rua em dois pulos, eu respirei fundo e sai pra
varanda.
Apoiado à mureta eu
olhei o céu, vi o rosto de Celma naquela imensidão, duas estrelas brilhavam
mais que as outras, eram seus olhos. Eu pensei em nós, pensei naquele último
jantar. Nesse encontro eu tentei recuperar o clima do início, o clima da
paixão, de quando andávamos grudados durante todo o tempo.
Um casal se separa
quando um não consegue mais tocar o corpo do outro, não se dão mais as mãos,
não se beijam nas despedidas e chegadas, e isso acontece mesmo na cama, enquanto
dormem. Parece que o simples contato com a pele do companheiro incomoda. Então eles
se tornam estranhos, mesmo morando na mesma casa, mesmo dividindo dívidas e até
sexo, já que sexo não é amor, e ele pode existir mesmo entre pessoas que não se
amam. Quando o prazer é alcançado, de novo se separam, quando é assim, o sexo é
algo egoísta e incompleto. Nós já estávamos desse jeito há um bom tempo, naquele
jantar, todavia, eu esperava alguma coisa, um milagre, acho eu.
- Chateaubrian ao
molho de queijo? – eu perguntei.
- Sim, com arroz
com passas – ela respondeu com os olhos fixos atrás de mim, em algum ponto. O
garçom veio trazendo o Cabernet, nos serviu e eu fiz o pedido. Sentávamos a
mesma mesa que nos sentamos na última vez que estivemos lá, até os garçons eram
os mesmos.
- Como foi o dia? –
perguntei.
- Fazer as pós para
dar aulas na universidade, bem melhor que dar aulas na rede pública, mas sei
lá, com o tempo tudo fica chato – respondeu ela bebendo um gole do vinho,
repousando a taça na mesa e olhando para ela, Celma não tinha pousado os olhos
em mim até aquele momento.
- Dar aulas na
Unicamp, sempre foi seu sonho – eu disse.
- Realmente, o
Carlos vai mudar para o norte, tem uma federal lá pagando o dobro – disse ela,
enfim, me olhando.
Celma tinha um
jeito todo dela de dizer uma coisa enquanto pensava em outra. Diferente de mim,
ela não se delatava com facilidade, com tiques, ao contrário, ficava ainda mais
lenta quando queria esconder algo, falava devagar, olhava-me com firmeza. Mas
ela já me dava pistas há algum tempo, eu é que não queria entendê-las.
- Você quer se
mudar? – perguntei olhando para ela com agonia, tentando ler suas entrelinhas.
- O que você acha?
– sempre fazia assim, jogava a responsabilidade sobre mim, respondia uma
pergunta com outra pergunta, depois que eu respondia, ela então dizia o que
pensava, isso me fazia sentir culpado.
- O que acha você?
– insisti.
- Sei lá, seria
diferente – respondeu distante, com os olhos novamente presos à taça. Eu tomei
um gole maior de vinho, virei a cabeça de um lado para o outro, segurei a irritação
e tornei a olhar pra ela.
- Não posso sair
daqui, estabeleci contatos na região, você sabe como é difícil para um músico
entrar no meio, já fizemos isso uma vez e demorou tempo até que eu voltasse a
trabalhar. Pra você é mais fácil.
- O Carlos se separou
da mulher, sozinho as coisas ficam diferentes – citou, ela, novamente o colega.
- É – respondi
monossilabicamente, eu via com os olhos da alma uma realidade que eu não queria
admitir para mim mesmo. Nesses momentos a alma voa, tenta nos arrastar, mas
nosso corpo está pesado demais, preso a uma mentira. Seguiu-se um silêncio, que
já tinha sido bom, num tempo em que falar ou se calar era agradável, já que se
estava ao lado de quem se amava.
Num relacionamento
temos várias fases, sempre revezando períodos de silêncio e de diálogo.
Primeiro existe o silencio do encantamento, quando veneramos o ser amado como
se fosse um santo, alguém fora desse mundo. Depois existe o momento do falar-se
tudo, é quando revelamos quase todos os segredos, quase todos, e em se tratando
de mulheres, menos do que os homens. Neste momento não nos cansamos de falar,
nem de ouvir. Então tornamos a nos calar, mas agora um silêncio de paz, a paz
de ter encontrado alguém com quem nos sentimos bem mesmo sem ter nada a dizer.
Esse é o momento de ver televisão juntos, de ir ao cinema, de andar pelas
praças, de amanhecer em Campos do Jordão e de entardecer numa praia qualquer do
litoral paulista, é o momento mais maduro, fruto maduro, contudo, cai do pé e
apodrece. A esse momento deveriam seguir filhos, então um novo assunto ocuparia
o tempo e vida seguiria com desafios.
Mas não foi isso o
que ocorreu conosco, os filhos não vieram, não achávamos nunca que era o
momento, então começaram os atritos, atritos causado pelo tédio, pela falta de prazer.
Esses atritos ainda são uma tentativa de reconstrução num relacionamento, a
última. Contudo, não tínhamos mais nada de graça para oferecer um ao outro. Começamos
a fazer as contas, a contabilizar o que era dado e o que era recebido, o
balancete mostrava saldo negativo para os dois, assim atenções de fora eram
requeridas para equilibrar esse saldo, assim a traição na vida de gente sem
Deus tornou-se opção viável.
Finalmente
estávamos nós naquela fase, a última, quando o silêncio profundo revelava que
não havia mais nada a ser dito, nada para ser lutado. Acho que ela desistiu
primeiro, nem sei, ela sempre foi tão enigmática, se antes era isso o que mais
me prendia a ela, agora era o que me afastava dela.
- O Carlos... – ela
disse, mas eu não permiti que ela terminasse a frase.
- Novamente esse
Carlos, você só fala nele...
Ela abriu seus
grandes olhos e me queimou com eles, sua alma vazou e me confrontou, com todas
as forças que tinha, jogou em minha cara tudo o que eu poderia ter sido e não
fui. Então ela voou, para longe daquele restaurante, longe daquela cidade,
longe de mim.
Nos calamos, o filé
chegou e eu pedi mais uma garrafa de Cabernet. Sempre gostei daquele
restaurante em Campinas, o conhecia há muito tempo, eu a tinha levado lá no
começo de nosso namoro, quando ainda morávamos naquela cidade, namoro que nunca
terminou, já que nunca nos casamos.
Essa coisa da
modernidade deixa tudo sem compromisso, tudo sempre aberto ao erro, ao fim,
nada nunca é para sempre. Não que tenha que ser, ou que possa ser, mas
deveríamos querer isso, lutar por isso, insistir nisso. Eu, que sempre fui um
falador, estava calado, aquilo doía, eu tinha perdido uma mulher especial, a
mulher da minha vida.
Eu bem que podia
ter insistido, se ela queria se mudar, que a gente se mudasse, o que ela
ganhava dava pra segurar nosso orçamento até que eu me estabilizasse novamente
em uma nova cidade, mas não, me acomodei, tive medo, como sempre.
Então eu mostrei
meu lado mais negro, que não era o que expressava uma reação agressiva, de
jogar no outro a culpa, mas que se resignava, aceitando a situação, com
autocomiseração, como vítima. O prazer em sofrer era algo que eu produzia com
calma, com o melhor de mim, depois deixava envelhecer, para então sorver bem
devagar, um gole de cada vez, como aquele Cabernet importado.
Ela não gostava de
bebida alcoólica, cerveja não bebia, era apenas espumante nas festas de final
de ano e vinho, em situações especiais. Com a terceira taça ela ficou tonta,
enquanto trocava a faca de mão esbarrou na taça que caiu ao chão. O cristal se
quebrou, fazendo um barulho espalhado e agudo. O garçom se aproximou.
- Não tem problema,
isso acontece – disse ele.
Eu olhei para a
taça despedaçada no chão, o líquido vermelho espalhado, aquele ambiente com
pouca luz, uma versão instrumental de “Insensatez” do Tom tocando bem baixinho,
era tudo tão surreal, era julho, dois anos atrás. As vidraças embaçadas do
restaurante me mostrava uma Campinas que não era mais aquela da minha
juventude, quando eu me apaixonei por Celma. Eu que fui àquela cidade naquela
noite para recuperar meu presente descobri que tem certas coisas que são
melhores que fiquem no passado, não poderão ser refeitas, assim pelo menos
teremos boas lembranças. Mas naquele momento pareceu-me que até as recordações
foram destruídas, não sobrou nada.
Deixei Campinas nas
memórias e voltei para a varanda em Itu, o gato estava na calçada da frente,
encolhido, odiando-me por tê-lo expulsado do abrigo. Eu não podia mais dormir,
entrei em casa e fui até a geladeira, ainda havia um resto de Cabernet barato
numa garrafa, deu pra encher um copo, mas não daria para encher a cara. Toda a
cachaça do mundo não atordoaria a dor que sentia naquele momento. Com o copo na
mão sentei-me no sofá da sala e liguei a televisão, quanta solidão, Celma devia
estar bem, ao lado de Carlos.
Peguei o celular e
procurei na memória aquele número pelo qual ela havia deixado uma mensagem de
voz. Olhei o número, era um número novo, não era o que estava registrado nos
meus “Contatos”. Selecionei “Opções”, escolhi “Apagar”, mas na hora de
responder “Sim”, hesitei, pensei e pensei. Respondi “Não” para confirmar
“Apagar” e selecionei “Ligar”. Eu estava dividido, queria ouvir a voz de Celma,
que fosse pela última vez, por outro lado meu orgulho dizia que aquilo seria
uma humilhação pra mim. Ouvi o telefone tocando, torcendo para que ela não
atendesse, mas ela atendeu, eram duas horas da madrugada.
- Alo? Pronto? Quem
fala? Então vou desligar...
Não falei nada, apenas
ouvi, sua voz suave sempre mexeu comigo, uma voz diferente de todas, na hora
pensei, “tudo bem, ouvi a voz dela, mas consegui resistir, não falei nada”.
Tolo que fui, meu número de celular não tinha mudado, deveria ainda estar na
memória do celular dela, e eu não tinha desligado a função de identificação de chamada.
Me arrependi, agora ela sabia que eu ainda pensava nela.
Na rua o gato,
enfrentando-me deu um miado alto e agudo, parecia risada de uma bruxa, ele
parecia possuído. De alguma maneira eu senti que aquele gato tinha sido meu
sétimo encontro.
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“Irmãos, não penso que eu mesmo já o tenha
alcançado; mas faço o seguinte: esquecendo-me das coisas que ficaram para trás
e avançando para as que estão adiante, prossigo para o alvo, pelo prêmio do
chamado celestial de Deus em Cristo Jesus.
Por isso, todos os que somos aperfeiçoados tenhamos esse mesmo
modo de pensar; e, se em alguma coisa pensais de outro modo, Deus também vos
revelará isso. Mas prossigamos na medida da perfeição que já atingimos.”
Filipenses 3.13-16
De passado também
se vive, diz o ditado popular. Mas o único passado que nos traz vida é aquele
em que Deus se fez homem, veio, morreu e ressuscitou, e na verdade esse é o
único passado de Deus, já que Deus não tem começo nem fim, ele era, é e sempre
será o mesmo. Em Jesus ele se fez passado, se fez mortal, para resgatar o nosso
presente e nos dar um futuro. Mesmo muitas boas lembranças de nossas vidas, com
o tempo, descobrimos que não foram tão boas assim, foram importantes naquele
momento, para aquilo que éramos. Se fossemos viver novamente, faríamos
diferente.
Na verdade o
conceito de tempo está ligado ao pecado, é o pecado que nos dá a sensação de
passado, de presente e de futuro, já que ele corrompe a carne. O espírito
renovado por Deus não envelhece, não se cansa, está sempre novo, sempre bem.
Pensar que quem mais nos quer prender à matéria é justamente um ser espiritual.
Satanás teve sua natureza mudada, porque pecou, e ele vive a pior e maior das
dores, a de sendo espiritual possuir fraquezas carnais. Por isso não há
salvação pra ele, mesmo que temporariamente ele viva ao redor desse planeta, no
segundo céu, o inferno foi preparado para ele e o aprisionará na eternidade,
ele nunca terá direito ao terceiro céu.
Mas nesta vida não
podemos viver a novidade do espírito transformado pelo Espírito de Deus em sua
plenitude, já que estamos presos à matéria. Por isso um esforço constante, para
vencer as inclinações naturais do corpo e da alma, deve ser feito para que se
possa ter paz. Não tem outro jeito, a vida espiritual nesta existência é assim,
não há tempo para descansar, não há possibilidade de ficar em cima do muro,
qualquer tipo de neutralidade é impossível, ou se vive em Deus, ou não se vive.
“Mas graças a Deus, que nos dá a vitória por
meio de nosso Senhor Jesus Cristo. Portanto, meus amados irmãos, sede firmes e
constantes, sempre atuantes na obra do Senhor, sabendo que nele o vosso
trabalho não é inútil.”
I Coríntios 15.57-58
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