O meio-dia parecia
seis horas da tarde, uma tempestade desabou, nunca vi chuva tão forte como
aquela na cidade. As janelas açoitadas pelo vento produziam um som hipnotizador,
achei que a casa fosse ser levada. Embaixo daquela revolta da natureza eu perdi
a consciência, quando acordei eram realmente seis horas da tarde. Duas
buzinadas agudas me trouxeram de volta, eu sabia de quem eram, o motoboy estava
entregando alguma refeição na casa ao lado. Sentia o frio em meus ossos, um
silêncio profundo amplificava as vozes que falavam dentro de mim. Acho que
Cíntia também tinha dormido, eu pensava o porquê dela hesitar em fazer o serviço,
o que a impedia, seria Deus?
- Zé? Pode sair –
ouvi Cíntia me chamando. Eu abrira a porta, mas quando deixei o quarto meu
algoz estava sentado no sofá da sala. Eu a olhei por cima dos olhos, sem
encará-la, ela tinha a arma segura pela mão direita que descansava sobre a
perna. Debaixo do gorro do moletom ela sussurrou.
- Tem alguma coisa
pra comer aí?
- Miojo?
- Pode ser.
Fui à cozina,
peguei uma panela e coloquei água para ferver. Enquanto esperava para jogar o
macarrão, Cíntia veio, se encostou ao armário e ficou me olhando.
- Ainda está brava?
– eu perguntei.
- Não.
- O que você está
esperando?
- O macarrão.
- Não, para atirar.
- Problema meu –
disse ela estupidamente.
Que triste fim o
meu, comendo miojo com uma assassina. Onde estaria Celma?
Conheci Celma numa
festa de fim de ano, eu tocava piano e ela fazia companhia ao namorado. Ela já
lecionava, era o namorado que trabalhava na empresa que promovia a festa, esse
estava mais preocupado em puxar o saco do chefe. Ela estava sozinha no meio de
gente que nem conhecia direito, veio até o piano e começou a conversar comigo.
“Você toca
Imagine?”, ela disse, eu só olhei, sorri, e toquei a música de Lennon. Quando
terminei eu disse, “essa música é eterna”, “o Luís adora Beatles, Luís, meu
namorado”. “Você gosta do que?”, perguntei, “dos mineiros, Milton, Venturini...”,
ela respondeu. Toquei uma seleção inteira de mineiros, Travessia, Clube de
Esquina 2, Todo azul do mar, e por aí fui.
Um pianista tem na
música sua arma maior de sedução, mas eu sempre fui verdadeiro demais para
manipular o sentimento de alguém, pelo menos não de forma consciente, a música
naturalmente já faz isso. Celma, contudo, queria ser manipulada naquele
momento, estava na beira do rio esperando pelo primeiro bote que passasse para
embarcar nele e ir embora. O tal do Luís estava preocupado demais com outras
coisas, nem percebeu quando meu barco passou e a levou.
Foi ela quem passou
o número de seu telefone, eu nem precisei pedir. Nem sei direito quando ela
acabou o relacionamento com o ex, só sei que a gente foi ficando, até que
começamos a morar juntos. Ela era muito bonita, e continua sendo, mas naquele
tempo ela tinha o jeito das moças da minha infância, dos anos 1970. Com cabelos
compridos naturais, vestido indiano, sandálias de couro, no estilo moda feira
hippie, ela lembrava-me um de minhas professoras de piano.
Estranho como em
nossa infância e adolescência a gente cria um respeito amedrontador de
professor, somente por causa do título que ele possui, bem, pelo menos isso
acontecia com crianças e adolescentes do meu tempo. Eu tinha treze anos quando
tinha aulas com a professora que me lembrava Celma, essa não deveria ter vinte,
mas me sentia tão inseguro com ela, pra mim era uma mulher madura a milhas e
milhas distante de um garoto feio e subdesenvolvido como eu.
Celma era uma
mulher simples, acho que eu estaria com ela até hoje se tivesse continuado a
ser como eu era no início, simplesmente apaixonado, assistindo filmes franceses
em preto e branco, visitando praças e parques em manhãs ensolaradas de sábados,
sentindo o perfume de flores e contando estrelas no céu, aliás, a gente só dá
valor pra flores e estrelas quando se está apaixonado.
A paixão faz com
que tudo pareça sempre novo, torna inéditas e surpreendentes coisas que nos entediavam
antes, ou mesmo que nunca tiveram muita graça. Dizem que estar apaixonado é
viver no país dos clichês e dos exageros, vendo em tudo isso originalidade e
estética, frescor e equilíbrio. A paixão torna o horizonte humano em vertical
divino, e faz do vertical divino um mundo possível e captável. A paixão alarga
o coração, aguça a visão e a audição, ouvimos até o barulho das asas dos anjos
quando apaixonados. Nela é impossível se cansar, não é proibido fantasiar, e
pode-se conter e ser contido sem que nos sintamos posse ou dono.
Eu não tinha carro,
ela tinha um fusca branco antigo, que nos levava aos passeios. A paixão faz
isso, torna um fusca em uma limousine, inventa conforto de hotel cinco estrelas
numa quitinete. Deliciosos eram aqueles jantares de legumes em lata com
hambúrguer, mais excelentes que qualquer filé mignon Chateaubrian ao molho de
queijo, acompanhado de arroz com passas e Cabernet. O amor acaba quando
começamos a investir mais dinheiro em coisas que antes nem precisavam existir, quando
queremos comprar o que tem que ser de graça, quando pagamos, não pelo sexo, mas
pelo luxo da cama. Paixão nem precisa de cama, acontece, escandalosamente, em
qualquer lugar e a qualquer hora.
Andávamos abraçados
pela cidade, era tão fácil estar junto, junto de verdade, não somente de mãos
dadas, como obrigação social, mas colados, só isso já esquentava o corpo, um
calor único, melhor do que qualquer outro. A paixão é um brinde dos céus, é uma
força a mais que Deus nos dá para que saiamos de nossa solidão e nos
disponibilizemos para outra pessoa. Se não fosse assim continuaríamos
solitários, procuraríamos um ao outro, apenas para satisfação egoísta do sexo,
uma união do corpo, sem nenhum comprometimento de alma. Sim, porque somos seres
essencialmente sozinhos e egoístas, a paixão tenta ludibriar isso, um engano,
um doce engano, uma armadilha dos céus.
Quando a paixão
começar a se apagar, é dever nosso, homens e mulheres, mantê-la viva, a inicial
que passou a existir como que por mágica, dá lugar a algo que precisa de
esforço, de iniciativa, para que continue existindo. Contudo, entender isso não
é para qualquer um, somente os maduros se empenham. Os maduros veem a paixão
transfigurar-se em amor, e esse sim, pode ser para sempre. Melhor ainda, a
árvore do amor, que cresce através de um tronco forte e resistente ao tempo e
às adversidades, que se multiplica em galhos e folhas de um verde cintilante,
consegue gerar, de quando em quando e antes dos frutos, belas flores de paixão.
Se a paixão inicial acaba e se o amor é fruto de trabalho, novas flores de
paixão acontecem na vida de amantes maduros e fieis. O amor pode, sim,
eternizar uma paixão.
A água ferveu e eu
nem percebi.
- Já está fervendo
– acordou-me de meu sonho, Cíntia. Joguei o macarrão na água, esperei os três
minutos, coloquei a tampa e o escorri na pia.
- Por favor, pegue
dois pratos e dois garfos aí na prateleira, à esquerda – ela pegou, colocou na
mesa, eu dividi o macarrão e começamos a comer.
- Sempre comia
miojo com Eliza – ela disse.
- Pizza e miojo a
gente nunca enjoa.
- Nunca me enjoo de
Eliza.
- Tenho saudades de
sentir isso, a originalidade da paixão, acho que já tive a minha parte, estou
tão frio.
- Me apaixono o
tempo todo, quero pegar, beijar, ficar junto o dia inteiro, mas na
segunda-feira já passou, no outro sábado eu me apaixono de novo – disse Cíntia,
no clímax de sua juventude.
- Entendo.
- Mas Eliza é
diferente, o sentimento não acabou, eu queria que ela estivesse aqui, eu até
voltei a estudar quando estava com ela, tinha forças para fazer tanta coisa. Ela
não aprovaria o que eu estou fazendo com você...
- Você não sente
culpa?
- Pelo quê?
- Pelo que vai
fazer comigo?
- Não, você merece,
por tudo que fez...
- Fiz o quê?
- Quantas pessoas
você machucou? Quantas mulheres?
- Sei lá, acho que
não muitas.
- Não venha com
esse papo...
- Não é de mim que
você está falando...
- Estou falando de
quem então?
- Dos homens que te
magoaram.
- Qual é, para com
esse papo de psicólogo.
- Você já foi a um
psicólogo?
- A diretora da
escola me fiz ir...
- Por quê?
- Foi depois que me
pegaram beijando uma menina no banheiro. Não entendi muito bem, a diretora me
dizia que eu era doente, o psicólogo não. Mas ele queria que eu entendesse o
que estava acontecendo, eu não queria entender nada, na verdade eu também
achava que estava fazendo algo errado. Eu tinha quatorze anos, não tinha nada
na cabeça, só os nãos da minha mãe, mas eu queria beijar, eu queria tocar e ser
tocada, eu queria prazer...
- Sexo não preenche
o vazio do coração.
- Isso é conversa
de pastor.
- É?
- Ele foi a minha
casa, o pastor da igreja do meu padrasto, um cara até que legal. Orou por mim,
ele disse isso, existe um vazio no coração humano em forma de Deus e só Deus
pode preenchê-lo.
- Quem disse isso
foi Dostoieviski, ele escreveu: "há
no homem um vazio do tamanho de Deus". Pascal também disse algo
parecido: "há no homem um buraco na
forma de Deus".
- Deus está muito
longe de nós, nem se importa com a gente, sexo, não, é fácil e rápido.
- Mas passa bem
depressa também...
- Tudo passa...
- E então chega a
morte. Se é assim, porque não adiantar as coisas?
- Eu não quero
morrer...
- O que te mantém
viva é o amor por Eliza.
- Talvez...
- Eu não tenho
ninguém, ás vezes fico pensando, quem iria ao meu enterro? A gente vê nos
filmes americanos, sepultamentos cheios de gente, neguinho fazendo discurso,
elogiando o defunto.
- Depois que morre
todo mundo vira herói.
- Isso é fato, mas
acho que eu não viraria.
- Deve ter um monte
de gente que gosta de você e você nem sabe.
- Acho que não,
meus pais viriam ao meu enterro, meu irmão, por pura obrigação, Celma talvez, não
ela viria sim, acompanhada do namorado, mas quem mais? Amigos de músico é gente
sem terra, divorciados do mundo, casados somente com seus instrumentos. Eu não
tenho amizade nem com meu vizinho aqui da vila, gente arrogante, que por mais
que eu viva entre eles continuam me considerando um estrangeiro.
Acabamos de comer o
macarrão, eu coloquei pratos e garfos na pia, bebemos água, eu fui para o
quarto e ela para sala. Não falamos nada, cada um sabia seu lugar, aquele
esquema já estava virando rotina.
Sentei-me na
poltrona, embaixo da janela, então vi o relógio e as fotografias no chão, me
levante e os peguei. Eram fotos antigas, do começo da minha relação com Celma.
Naquele momento eu chorei, um choro doído, as lágrimas pareciam de ácido,
queimavam meus olhos quando saíam. Fazia muito tempo que eu não chorava.
Como eu queria
naquele instante ser alguém normal, um pai que sairia todos os dias por volta
das sete horas para trabalhar, que passaria o dia trabalhando numa empresa,
ganhando um salário decente, que chegaria em casa por volta das dezoito horas. Eu
seria recebido por um beijo da esposa e por um abraço apertado de uma filhinha,
uma menina linda, amada, feliz. Depois de tomar um banho, eu jantaria,
conversaria com a esposa, sentaria no sofá da sala para ver um telejornal e
depois um filme. Levaria minha filha para a cama, daria um beijo em seu rosto e
lhe abençoaria com a promessa de que ela teria um futuro brilhante, que faria
uma boa faculdade, arrumaria um noivo lindo e se casaria como uma princesa da
Disney.
Seria pedir demais
isso tudo? Seria isso um sonho impossível? Minhas lágrimas tentavam tirar do
meu coração uma oração, tentavam me fazer olhar em direção a Deus, chamar sua
atenção para minha agonia. Mas acima de tudo, minhas lágrimas tentavam me
convencer que valia à pena viver, continuar tentando, acreditar que algo bom
ainda poderia acontecer em minha vida.
Quanta dor Cíntia
retinha dentro de si, era essa dor, mal entendida, que ela direcionava para
mim, que a fazia sentir-se apta para matar alguém. Mas ela tinha dúvidas,
talvez quisesse me conhecer melhor, antes de apertar o gatilho, ver se eu
realmente merecia todo o ódio que ela tinha dentro de si.
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“Todo aquele que confessa que Jesus é o Filho
de Deus, Deus permanece nele, e ele em Deus. E conhecemos o amor que Deus tem
por nós e cremos nesse amor. Deus é amor; quem permanece no amor permanece em
Deus, e Deus nele.
Nisto o amor é aperfeiçoado em nós, para que tenhamos confiança no
dia do juízo, pois, assim como ele é, nós também somos neste mundo.
No amor não há medo, pelo contrário, o perfeito amor elimina o
medo, pois o medo implica castigo, e quem tem medo não está aperfeiçoado no amor.
Nós amamos porque ele nos amou primeiro.”
I João 4.15-19
Paixão, amor e
morte, seriam as três únicas fases da vida? A vida se resumiria nisso? Na
infância, até nossa juventude tudo é paixão, tudo é descoberta, tudo nos causa
magnífica admiração. Nada é sujo ou estranho o suficiente para nos impedir de
querer e de tocar. A culpa existe, e é maior do que em qualquer outra fase, mas
não é suficiente para nos impedir de nos apaixonar.
Amor é virtude de
homem crescido, de ser humano maduro que se desliga de si mesmo e concede a
possibilidade de alguém precisar mais dele e do que ele desse alguém. Amor é
perda, é doação sem exigência, é olhar diferente, e se colocar dentro de outro
e analisar as coisas desse prisma. Nesse momento a culpa continua forte, mas amando
nós conseguimos mensurar o amor dos outros por nós, principalmente o amor de
Deus. No amor de Deus nossas culpas podem ser curados, através da maior prova
de amor que o mundo conheceu, Jesus.
Mas tudo passa
rapidamente demais, a morte, antes uma estranha desconhecida, mostra-se,
primeiramente distante, um vulto, um pesadelo noturno que quinze minutos depois
que acordamos já não aflige mais nosso coração. Ela, contudo, vai crescendo,
começamos a discernir seu rosto, a ver quem ela é, e ela não é uma desconhecida.
A morte é a soma de todos os nossos medos, e o que é medo senão o
desconhecimento do amor?
Quem se nega a
conhecer o amor de Deus permanece com medo, e continuará morto. Conhecer a Deus
é livrar-se de todos os medos, que diz que conhece a Deus e continua com medos,
é mentiroso. O medo nos impede de amar e de sermos amados. Quando amamos a Deus
todos os medos são dissipados, mas só podemos amar a Deus porque ele nos amou
primeiro.
Mas seja na paixão,
no amor ou na morte, a vida precisa continuar, há de se ter coragem para achar
alegria em tudo, buscar felicidade sempre, essa responsabilidade é nossa.
Nenhuma fatalidade, nenhuma tragédia deve ser forte suficiente para impedir-nos
de continuar vivos, lutando, trabalhando. Quem sabe quando algo bom e
inesperado vai acontecer? Só Deus.
A nós resta o pão
nosso de cada dia, sempre servido com perdão, perdão recebido e dado. A nós
resta uma panela com água, três minutos para ferver e pronto, está feito o
miojo, ele não enjoa, é sempre saboroso.
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