20 de set. de 2014

26 - Paixão, amor e morte com miojo

O meio-dia parecia seis horas da tarde, uma tempestade desabou, nunca vi chuva tão forte como aquela na cidade. As janelas açoitadas pelo vento produziam um som hipnotizador, achei que a casa fosse ser levada. Embaixo daquela revolta da natureza eu perdi a consciência, quando acordei eram realmente seis horas da tarde. Duas buzinadas agudas me trouxeram de volta, eu sabia de quem eram, o motoboy estava entregando alguma refeição na casa ao lado. Sentia o frio em meus ossos, um silêncio profundo amplificava as vozes que falavam dentro de mim. Acho que Cíntia também tinha dormido, eu pensava o porquê dela hesitar em fazer o serviço, o que a impedia, seria Deus?
- Zé? Pode sair – ouvi Cíntia me chamando. Eu abrira a porta, mas quando deixei o quarto meu algoz estava sentado no sofá da sala. Eu a olhei por cima dos olhos, sem encará-la, ela tinha a arma segura pela mão direita que descansava sobre a perna. Debaixo do gorro do moletom ela sussurrou.
- Tem alguma coisa pra comer aí?
- Miojo?
- Pode ser.
Fui à cozina, peguei uma panela e coloquei água para ferver. Enquanto esperava para jogar o macarrão, Cíntia veio, se encostou ao armário e ficou me olhando.
- Ainda está brava? – eu perguntei.
- Não.
- O que você está esperando?
- O macarrão.
- Não, para atirar.
- Problema meu – disse ela estupidamente.
Que triste fim o meu, comendo miojo com uma assassina. Onde estaria Celma?
Conheci Celma numa festa de fim de ano, eu tocava piano e ela fazia companhia ao namorado. Ela já lecionava, era o namorado que trabalhava na empresa que promovia a festa, esse estava mais preocupado em puxar o saco do chefe. Ela estava sozinha no meio de gente que nem conhecia direito, veio até o piano e começou a conversar comigo.
“Você toca Imagine?”, ela disse, eu só olhei, sorri, e toquei a música de Lennon. Quando terminei eu disse, “essa música é eterna”, “o Luís adora Beatles, Luís, meu namorado”. “Você gosta do que?”, perguntei, “dos mineiros, Milton, Venturini...”, ela respondeu. Toquei uma seleção inteira de mineiros, Travessia, Clube de Esquina 2, Todo azul do mar, e por aí fui.
Um pianista tem na música sua arma maior de sedução, mas eu sempre fui verdadeiro demais para manipular o sentimento de alguém, pelo menos não de forma consciente, a música naturalmente já faz isso. Celma, contudo, queria ser manipulada naquele momento, estava na beira do rio esperando pelo primeiro bote que passasse para embarcar nele e ir embora. O tal do Luís estava preocupado demais com outras coisas, nem percebeu quando meu barco passou e a levou.
Foi ela quem passou o número de seu telefone, eu nem precisei pedir. Nem sei direito quando ela acabou o relacionamento com o ex, só sei que a gente foi ficando, até que começamos a morar juntos. Ela era muito bonita, e continua sendo, mas naquele tempo ela tinha o jeito das moças da minha infância, dos anos 1970. Com cabelos compridos naturais, vestido indiano, sandálias de couro, no estilo moda feira hippie, ela lembrava-me um de minhas professoras de piano.
Estranho como em nossa infância e adolescência a gente cria um respeito amedrontador de professor, somente por causa do título que ele possui, bem, pelo menos isso acontecia com crianças e adolescentes do meu tempo. Eu tinha treze anos quando tinha aulas com a professora que me lembrava Celma, essa não deveria ter vinte, mas me sentia tão inseguro com ela, pra mim era uma mulher madura a milhas e milhas distante de um garoto feio e subdesenvolvido como eu.  
Celma era uma mulher simples, acho que eu estaria com ela até hoje se tivesse continuado a ser como eu era no início, simplesmente apaixonado, assistindo filmes franceses em preto e branco, visitando praças e parques em manhãs ensolaradas de sábados, sentindo o perfume de flores e contando estrelas no céu, aliás, a gente só dá valor pra flores e estrelas quando se está apaixonado.
A paixão faz com que tudo pareça sempre novo, torna inéditas e surpreendentes coisas que nos entediavam antes, ou mesmo que nunca tiveram muita graça. Dizem que estar apaixonado é viver no país dos clichês e dos exageros, vendo em tudo isso originalidade e estética, frescor e equilíbrio. A paixão torna o horizonte humano em vertical divino, e faz do vertical divino um mundo possível e captável. A paixão alarga o coração, aguça a visão e a audição, ouvimos até o barulho das asas dos anjos quando apaixonados. Nela é impossível se cansar, não é proibido fantasiar, e pode-se conter e ser contido sem que nos sintamos posse ou dono.
Eu não tinha carro, ela tinha um fusca branco antigo, que nos levava aos passeios. A paixão faz isso, torna um fusca em uma limousine, inventa conforto de hotel cinco estrelas numa quitinete. Deliciosos eram aqueles jantares de legumes em lata com hambúrguer, mais excelentes que qualquer filé mignon Chateaubrian ao molho de queijo, acompanhado de arroz com passas e Cabernet. O amor acaba quando começamos a investir mais dinheiro em coisas que antes nem precisavam existir, quando queremos comprar o que tem que ser de graça, quando pagamos, não pelo sexo, mas pelo luxo da cama. Paixão nem precisa de cama, acontece, escandalosamente, em qualquer lugar e a qualquer hora.
Andávamos abraçados pela cidade, era tão fácil estar junto, junto de verdade, não somente de mãos dadas, como obrigação social, mas colados, só isso já esquentava o corpo, um calor único, melhor do que qualquer outro. A paixão é um brinde dos céus, é uma força a mais que Deus nos dá para que saiamos de nossa solidão e nos disponibilizemos para outra pessoa. Se não fosse assim continuaríamos solitários, procuraríamos um ao outro, apenas para satisfação egoísta do sexo, uma união do corpo, sem nenhum comprometimento de alma. Sim, porque somos seres essencialmente sozinhos e egoístas, a paixão tenta ludibriar isso, um engano, um doce engano, uma armadilha dos céus.
Quando a paixão começar a se apagar, é dever nosso, homens e mulheres, mantê-la viva, a inicial que passou a existir como que por mágica, dá lugar a algo que precisa de esforço, de iniciativa, para que continue existindo. Contudo, entender isso não é para qualquer um, somente os maduros se empenham. Os maduros veem a paixão transfigurar-se em amor, e esse sim, pode ser para sempre. Melhor ainda, a árvore do amor, que cresce através de um tronco forte e resistente ao tempo e às adversidades, que se multiplica em galhos e folhas de um verde cintilante, consegue gerar, de quando em quando e antes dos frutos, belas flores de paixão. Se a paixão inicial acaba e se o amor é fruto de trabalho, novas flores de paixão acontecem na vida de amantes maduros e fieis. O amor pode, sim, eternizar uma paixão.
A água ferveu e eu nem percebi.
- Já está fervendo – acordou-me de meu sonho, Cíntia. Joguei o macarrão na água, esperei os três minutos, coloquei a tampa e o escorri na pia.
- Por favor, pegue dois pratos e dois garfos aí na prateleira, à esquerda – ela pegou, colocou na mesa, eu dividi o macarrão e começamos a comer.
- Sempre comia miojo com Eliza – ela disse.
- Pizza e miojo a gente nunca enjoa.
- Nunca me enjoo de Eliza.
- Tenho saudades de sentir isso, a originalidade da paixão, acho que já tive a minha parte, estou tão frio.
- Me apaixono o tempo todo, quero pegar, beijar, ficar junto o dia inteiro, mas na segunda-feira já passou, no outro sábado eu me apaixono de novo – disse Cíntia, no clímax de sua juventude.
- Entendo.
- Mas Eliza é diferente, o sentimento não acabou, eu queria que ela estivesse aqui, eu até voltei a estudar quando estava com ela, tinha forças para fazer tanta coisa. Ela não aprovaria o que eu estou fazendo com você...
- Você não sente culpa?
- Pelo quê?
- Pelo que vai fazer comigo?
- Não, você merece, por tudo que fez...
- Fiz o quê?
- Quantas pessoas você machucou? Quantas mulheres?
- Sei lá, acho que não muitas.
- Não venha com esse papo...
- Não é de mim que você está falando...
- Estou falando de quem então?
- Dos homens que te magoaram.
- Qual é, para com esse papo de psicólogo.
- Você já foi a um psicólogo?
- A diretora da escola me fiz ir...
- Por quê?
- Foi depois que me pegaram beijando uma menina no banheiro. Não entendi muito bem, a diretora me dizia que eu era doente, o psicólogo não. Mas ele queria que eu entendesse o que estava acontecendo, eu não queria entender nada, na verdade eu também achava que estava fazendo algo errado. Eu tinha quatorze anos, não tinha nada na cabeça, só os nãos da minha mãe, mas eu queria beijar, eu queria tocar e ser tocada, eu queria prazer...
- Sexo não preenche o vazio do coração.
- Isso é conversa de pastor.
- É?
- Ele foi a minha casa, o pastor da igreja do meu padrasto, um cara até que legal. Orou por mim, ele disse isso, existe um vazio no coração humano em forma de Deus e só Deus pode preenchê-lo.
- Quem disse isso foi Dostoieviski, ele escreveu: "há no homem um vazio do tamanho de Deus". Pascal também disse algo parecido: "há no homem um buraco na forma de Deus".
- Deus está muito longe de nós, nem se importa com a gente, sexo, não, é fácil e rápido.
- Mas passa bem depressa também...
- Tudo passa...
- E então chega a morte. Se é assim, porque não adiantar as coisas?
- Eu não quero morrer...
- O que te mantém viva é o amor por Eliza.
- Talvez...
- Eu não tenho ninguém, ás vezes fico pensando, quem iria ao meu enterro? A gente vê nos filmes americanos, sepultamentos cheios de gente, neguinho fazendo discurso, elogiando o defunto.
- Depois que morre todo mundo vira herói.
- Isso é fato, mas acho que eu não viraria.
- Deve ter um monte de gente que gosta de você e você nem sabe.
- Acho que não, meus pais viriam ao meu enterro, meu irmão, por pura obrigação, Celma talvez, não ela viria sim, acompanhada do namorado, mas quem mais? Amigos de músico é gente sem terra, divorciados do mundo, casados somente com seus instrumentos. Eu não tenho amizade nem com meu vizinho aqui da vila, gente arrogante, que por mais que eu viva entre eles continuam me considerando um estrangeiro.
Acabamos de comer o macarrão, eu coloquei pratos e garfos na pia, bebemos água, eu fui para o quarto e ela para sala. Não falamos nada, cada um sabia seu lugar, aquele esquema já estava virando rotina.
Sentei-me na poltrona, embaixo da janela, então vi o relógio e as fotografias no chão, me levante e os peguei. Eram fotos antigas, do começo da minha relação com Celma. Naquele momento eu chorei, um choro doído, as lágrimas pareciam de ácido, queimavam meus olhos quando saíam. Fazia muito tempo que eu não chorava.
Como eu queria naquele instante ser alguém normal, um pai que sairia todos os dias por volta das sete horas para trabalhar, que passaria o dia trabalhando numa empresa, ganhando um salário decente, que chegaria em casa por volta das dezoito horas. Eu seria recebido por um beijo da esposa e por um abraço apertado de uma filhinha, uma menina linda, amada, feliz. Depois de tomar um banho, eu jantaria, conversaria com a esposa, sentaria no sofá da sala para ver um telejornal e depois um filme. Levaria minha filha para a cama, daria um beijo em seu rosto e lhe abençoaria com a promessa de que ela teria um futuro brilhante, que faria uma boa faculdade, arrumaria um noivo lindo e se casaria como uma princesa da Disney.
Seria pedir demais isso tudo? Seria isso um sonho impossível? Minhas lágrimas tentavam tirar do meu coração uma oração, tentavam me fazer olhar em direção a Deus, chamar sua atenção para minha agonia. Mas acima de tudo, minhas lágrimas tentavam me convencer que valia à pena viver, continuar tentando, acreditar que algo bom ainda poderia acontecer em minha vida.
Quanta dor Cíntia retinha dentro de si, era essa dor, mal entendida, que ela direcionava para mim, que a fazia sentir-se apta para matar alguém. Mas ela tinha dúvidas, talvez quisesse me conhecer melhor, antes de apertar o gatilho, ver se eu realmente merecia todo o ódio que ela tinha dentro de si.

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Todo aquele que confessa que Jesus é o Filho de Deus, Deus permanece nele, e ele em Deus. E conhecemos o amor que Deus tem por nós e cremos nesse amor. Deus é amor; quem permanece no amor permanece em Deus, e Deus nele.
Nisto o amor é aperfeiçoado em nós, para que tenhamos confiança no dia do juízo, pois, assim como ele é, nós também somos neste mundo.
No amor não há medo, pelo contrário, o perfeito amor elimina o medo, pois o medo implica castigo, e quem tem medo não está aperfeiçoado no amor. Nós amamos porque ele nos amou primeiro.”
I João 4.15-19

Paixão, amor e morte, seriam as três únicas fases da vida? A vida se resumiria nisso? Na infância, até nossa juventude tudo é paixão, tudo é descoberta, tudo nos causa magnífica admiração. Nada é sujo ou estranho o suficiente para nos impedir de querer e de tocar. A culpa existe, e é maior do que em qualquer outra fase, mas não é suficiente para nos impedir de nos apaixonar.
Amor é virtude de homem crescido, de ser humano maduro que se desliga de si mesmo e concede a possibilidade de alguém precisar mais dele e do que ele desse alguém. Amor é perda, é doação sem exigência, é olhar diferente, e se colocar dentro de outro e analisar as coisas desse prisma. Nesse momento a culpa continua forte, mas amando nós conseguimos mensurar o amor dos outros por nós, principalmente o amor de Deus. No amor de Deus nossas culpas podem ser curados, através da maior prova de amor que o mundo conheceu, Jesus.
Mas tudo passa rapidamente demais, a morte, antes uma estranha desconhecida, mostra-se, primeiramente distante, um vulto, um pesadelo noturno que quinze minutos depois que acordamos já não aflige mais nosso coração. Ela, contudo, vai crescendo, começamos a discernir seu rosto, a ver quem ela é, e ela não é uma desconhecida. A morte é a soma de todos os nossos medos, e o que é medo senão o desconhecimento do amor?
Quem se nega a conhecer o amor de Deus permanece com medo, e continuará morto. Conhecer a Deus é livrar-se de todos os medos, que diz que conhece a Deus e continua com medos, é mentiroso. O medo nos impede de amar e de sermos amados. Quando amamos a Deus todos os medos são dissipados, mas só podemos amar a Deus porque ele nos amou primeiro.
Mas seja na paixão, no amor ou na morte, a vida precisa continuar, há de se ter coragem para achar alegria em tudo, buscar felicidade sempre, essa responsabilidade é nossa. Nenhuma fatalidade, nenhuma tragédia deve ser forte suficiente para impedir-nos de continuar vivos, lutando, trabalhando. Quem sabe quando algo bom e inesperado vai acontecer? Só Deus.
A nós resta o pão nosso de cada dia, sempre servido com perdão, perdão recebido e dado. A nós resta uma panela com água, três minutos para ferver e pronto, está feito o miojo, ele não enjoa, é sempre saboroso.

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