30 de set. de 2014

16 - Trevas tão minhas

Naquela sexta-feira eu voltada cansado do Grande Hotel, tinha sido uma daquelas noites onde o público não tinha se manifestado. Não houve aplausos, pedidos, seguir sorrisos de aprovação, havia gente às mesas do bar, mas pareciam fantasmas. Sentado ao piano, um piano de armário, de costas para as pessoas, era assim que eu ficava naquele ambiente, diferentemente do Engenho das Águas, o restaurante para reservas no hotel, onde eu tocava de frente para as mesas num piano de cauda, me senti muito sozinho. Num momento olhei para o lado e não vi nem os garçons de prontidão.
Existem momentos no ofício de um pianista quando as notas da música não parecem vir do toque de nossos dedos sobre as teclas. Parecem estar longe, no mundo espiritual, não no material, é estranho, um autismo momentâneo que nos deixa colados ao banco, com a impressão de que nunca mais sairemos daquele lugar. Contudo, deram vinte e três horas, após quatro horas tocando, e eu me levantei, fechei o instrumento, peguei minhas partituras, me despedi dos garçons e fui embora.
A rodovia do açúcar estava vazia, quando passei o primeiro pedágio, o carro seguiu numa velocidade constante, parecendo que não era dirigido por mim. Eu olhava para os lados e via o horizonte, acima da vegetação, parado, essa situação nos coloca em transe, dá-nos a impressão que estarmos flutuando sobre a terra. Aquilo me relaxou e eu desliguei a música, Stevie Wonder não combinava com aquela paisagem. Nem percebi quando um carro me ultrapassou, ele veio tão rápido que quando vi estava a minha frente. Minha primeira reação foi a de piscar a luz alta, reclamando da falta de educação dele, mas eu resisti, deixei pra lá, segui no meu ritmo.
Andei mais uns quinze minutos quando a rodovia fez um aclive e depois começou a descer, foi então que vi à frente luzes piscando. Diminui a velocidade à medida que me aproximava, estava muito escuro. Ao lado de um carro parado no acostamento da minha mão, um homem falava ao celular, pouco mais à frente havia um carro de polícia no acostamento da outra mão, era ele que tinha as luzes amarelas piscando. Contudo, cruzando a estrada um caminho de carroceria dupla, carregado de cana de açúcar, estava tombado. Um policial no meio da estrada orientou-me para que eu fosse pela esquerda, pegando parte da pista contrária para poder passar.
Dirigi devagar, olhando o acidente, à direita um homem com as mãos na cabeça conversava com outro policial, acho que era o motorista do caminhão. Foi então que percebi, debaixo da carroceria do caminhão, esmagado por ela, um automóvel, e vi que era aquele carro que tinha passado por mim minutos antes. Tentei virar o rosto, mas não deu tempo, havia alguém lá embaixo, imóvel. Pisei no acelerador e fui embora, logo em seguida, na pista da esquerda, passou por mim uma ambulância.
O motorista não tinha sobrevivido, com certeza estava morto, era um jovem, provavelmente indo de Piracicaba para Sorocaba, como tantos que eu via naquelas madrugadas, em busca de alguma balada nova para se divertir, quem me confirmou essa informação foi a moça do segundo pedágio que passei logo à frente. Aquela rodovia, que era pra mim um caminho que me conduzia a uma festa, para tocar minha música num ambiente requintado, cheio de deleites e luxo, virou um caminho fúnebre, de luto. A morte escureceu minha ilusão de alegria, deu fim a uma vida que provavelmente estava pensando em tudo, alguns minutos antes, menos na morte.
Segui com um vazio no estômago, meu coração se apertava e doía, parecia haver agulhas dentro dele e qualquer movimento o fazia sangrar. A rodovia do açúcar terminou, peguei a Castelinho e mais um pouco e eu entrava em Itu. Passei pelo portal da cidade e parei no sinal vermelho, geralmente, àquela hora, quase meia-noite, eu olhava para os lados e seguia, mas naquele momento eu estava tão cansado que parei para esperar o sinal abrir.
Vi então pelo retrovisor, aproximando-se uma ambulância, na velocidade que estava, com as sirenes ligadas, ela passou pelo sinal vermelho e seguiu Eu a olhei, indo pela avenida, ao lado do cemitério. O sinal abriu e eu fui embora. Seria a ambulância que eu vi lá na rodovia? O cara do acidente estaria dentro dela? Estaria vivo? Como sempre fazia, cheguei em casa, guardei o carro, e fui a pé até o bar, tomar meu café.
No bar, numa mesa ainda havia algumas pessoas, quatro homens, de roupas sociais. Riam e tomavam cerveja. Enquanto eu esperava Rai coar meu café eu os observava, mas eles já estavam de saída. Levantaram-se, pagaram a conta e foram embora, todos menos um. Esse se encostou ao balcão e pediu um café. Raimundo aproveitou o café que me fazia e coou no meu copo e no dele. Os caras deveriam estar por lá desde o começo da noite, emendaram o happy hour com a madrugada e seguiram em frente com a festa. Aquele que sobrou, contudo, devia não estar satisfeito, ainda queria um café, ainda queria conversar.
- Trabalhei a semana inteira, tenho direito a umas cervejas – disse ele. Era um moço bonito, de cabelos negros e lisos, com cara de super-herói de história em quadrinhos, queijo quadrado, ombros largos, mas não era alto, tinha a minha estatura. Tinha uma boa presença, falava claro, com liderança, gente acostumada a dizer o que quer, sabendo o que quer, e sendo bem remunerada por isso.
- Deixa você chegar em casa, a patroa está te esperando com o pau de macarrão – respondeu Raimundo com um ar sarcástico.
- Neste final de semana não viajarei, ela tem dois dias comigo – disse o cara.
- Não vai viajar a serviço? – perguntou Rai.
- Não, acho que é o primeiro final de semana que passo em casa em dois meses – respondeu o homem.
- Trabalho a semana toda aqui no bar, mas se pudesse passaria mais tempo em casa com a família – disse Raimundo enquanto lavava o coador.
- Nem vejo meus filhos crescer, festa do dia dos pais em escola acho que nunca fui, mas fazer o que alguém tem que pagar as contas. Minha mulher é que é feliz, passa o dia levando e trazendo filho da escola, indo à academia, fazendo unhas e cabelos, torrando meu dinheiro – declarou o homem procurando explicar a vida que tinha.
- Minha mulher trabalha também, meus filhos ficam com minha sogra. Esse aqui é que é feliz, – disse Rai apontando pra mim – solteiro, tocando na noite, mulheres bonitas.
- Engano seu, meu amigo, engano seu – respondi, entrando na conversa.
- Você é músico? – perguntou-me o homem.
- Sou pianista – respondi.
- Toca teclado? – disse ele.
- Não, piano, estes grandes, de madeira.
As pessoas, em sua maioria, sempre insistem em nos nivelar por baixo, sempre fiquei irritado com quem acha que sou tecladista. Sim, eu também trabalho com teclado eletrônico, “mas toco piano, estudei Bach, Chopin, me respeitem”, bem, essa insegurança era bem mais exacerbada em mim naquele tempo.
Nos dias atuais pouca gente conhece música séria, ouve-se tanta música, mas tudo tão sem qualidade. O homem tinha pouco mais de trinta anos, era um desses jovens profissionais bem sucedidos, que queriam ganhar seu primeiro milhão antes dos quarenta anos.
- E a casa no Terras, já terminou? – perguntou Rai.
- Sim, estou construindo outra, pra deixar pros filhos. – respondeu o cara – O que não vale à pena é ter casa de praia, o apartamento que comprei no Guarujá, quase nunca uso, quem desfruta dele são meus cunhados.
- Você trabalha com que? – perguntei eu.
- Consultoria para investimentos, bolsa de valores, imóveis – disse ele sorrindo deliciosamente, agora ele falava do que gostava. Família? Finais de semana? Passeio? Não, sua diversão era trabalhar, ganhar dinheiro, esse era seu prazer, esse era seu vício.
- Legal – respondi com total desinteresse.
Se há algo que nunca me despertou atenção são áreas financeiras, ferramentas exclusivas para fazer dinheiro virar mais dinheiro. Uma pintura, uma peça teatral, um conto, uma sinfonia, isso sim tem valor, mas ações da bolsa? Nunca entendi direito como é que isso funciona.
O cara era o tipo que comprava um quadro para colocar na sala de estar de seu duplex somente pela cor predominante na pintura, para combinar com a decoração e com os móveis. Ele nem sabia o que significava o trabalho, o que o pintor queria passar com sua arte. Não que ele não pagasse o preço que a pintura valia, pagaria sem regatear, mas porque a esposa tinha dito com veemência que aquilo era o que faltava para que a sala ficasse perfeita, conforme a orientação da decoradora.
- Minha mulher toca piano erudito, temos um piano em casa, minha filha mais velha faz aulas no conservatório de Salto. – disse ele com arrogância, é claro que eu senti que ele me diminuía – Quanto ganha por noite?
- O suficiente – não ia passar valores a ele, que julgava as pessoas pela conta no banco, pelo carro, pelas roupas, e que comprava cultura como quem paga um vinho caro, não porque sabe o valor que tem, nem porque usufrui de sua excelência, mas porque lhe dá status, porque alguém lhe disse que isso é chique.
- Entendo – disse o homem, me medindo de baixo em cima. Meu terno preto gasto não se sentiu humilhado por sua soberba, naquela época de minha vida a música já havia me dado todas as alegria que podia, dignidade maior até, que a que eu merecia. Eu sabia que o meu problema não era minha conta no banco, meu terno velho, eu sabia disso, o cara não. Esse ainda achava que quando tivesse acumulado seu primeiro milhão sua via alcançaria o clímax, pobre homem.
Tem muita gente assim, que se acha melhor que os outros, por ter um carro maior, uma casa num condomínio, um sobrenome antigo e estabelecido na província. Gente assim se casa com uma mulher para que os outros vejam que ela é bonita, magra, rica, e não por se apaixonarem por ela. Gente assim só se apaixona pela casca da vida, por aquilo que pode ser mostrado, avaliado, a primeira vista. Aquilo que é preciso pensar, sentir, que toca o coração, isso não tem valor pra elas. Pode-se vender ou comprar um sentimento? Não, mas um cabelo bem cuidado, uma pele bem tratada, coberta de panos caros, de couros raros, de ouro, de prata e de diamantes, isso sim, é para ser visto por qualquer um, para rapidamente se conclua que o dono disso tudo é alguém poderoso, maior do que todos os outros.
Nunca quis ser maior, melhor sim, melhor do que eu mesmo, dentro de mim, um ser humano melhor que sabe amar, perdoar, que é grato, que reage com serenidade aos confrontos da vida. Naquele tempo eu não conseguia ser assim, mas tentava passar todo esse equilíbrio e paz através da música, pelo piano. O cara tomou o café e foi-se embora.
- Equivocado ele, hem Rai? – confidenciei ao meu amigo.
- Ah sim, metido – sorriu Raimundo.
As críticas de Rai nunca pareciam frívolas, pessoais, eram sempre sábias, uma opinião que não era dele, mas ratificada por muitas pessoas, pessoas das quais ele tinha ouvido e aprendido, durante sua vida, a sabedoria das ruas e não das escolas.
- Enfim ele volta pra casa – eu ri.
- Volta nada, ele tem uma amante, uma menina simples, trabalha no comércio aqui no centro. Ele sempre a vê às sextas-feiras, só vai chegar em casa amanhã cedo – segredou Raimundo.
- Como uma mulher aguenta essas coisas? – perguntei eu.
- Ela é bem paga para aguentar isso. Durante o dia ela vem almoçar aqui com os filhos, lindíssima, elegante, nunca repete roupa. Ela também deve dar os pulos dela – gargalhou Rai maliciosamente.
Paguei meu café e fui embora. Aquilo não me deixou feliz, não me alegrei com a incoerência daquele casal, tudo aquilo só me deixou mais desacreditado no homem, em seus valores. Poxa vida, alguém com tanto dinheiro, poderia se dar ao luxo de ser feliz, de viajar ao exterior, consumir cultura e arte, dar o melhor a sua família, ajudar as pessoas. Ao invés disso ficavam mais vazios, mais mesquinhos, mais gananciosos, quanta hipocrisia, quanto trabalho por nada.
Naquela noite eu vi duas vidas vazias, uma morrendo em busca de prazer, naquele acidente de carro na rodovia, e outra morrendo de trabalhar. Aonde estava a verdadeira razão de viver? Na diversão, nas baladas, ou no trabalho, nos escritórios? Fosse à noite ou no dia, tudo parecia trevas, e eu nas trevas ia, trevas vazias, tão minhas. Aquelas duas vidas tinham sido meu sexto encontro.
Contudo, aquela noite ainda tinha algo reservado pra mim. Caminhando a pé para casa, passei pela igreja matriz e desci pela rua ao lado do colégio. No meio da quadra havia uma pessoa encostada ao muro, eu passei por ela e segui. Virei à esquerda e subi pela Rua do Patrocínio, num determinado momento eu atravessei a rua, foi então que percebi uma pessoa vindo atrás de mim, era a mesma que estava parada na rua do colégio. Como se fosse por uma revelação, me veio à mente aquela pessoa que estava parada na minha rua, na noite que Juliana me deixou em casa.
Sem parar de andar eu virei o rosto e foi no exato momento que a pessoa passava por um poste de iluminação, aí eu tive a certeza, era a mesma pessoa daquela noite. Desesperei-me, apressei os passos, peguei à direita, à esquerda novamente, e outra vez á direita, depois tornei a pegar à direita e estava na rua de casa. Eu corri até em casa, abri o portão, subi para a varanda, enfiei a chave na fechadura, abri a porta, entrei e a fechar a porta. Não acendi a luz, abri uma fresta na cortina e fiquei espiando, não demorou muito e a pessoa passou em frente a minha casa. Ela não parou, caminhou devagar, então pegou à direita e foi embora. Eu não tive dúvidas, era o assassino contratado por Breno.

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O que é prazer? É igual para todos? As pessoas buscam o prazer? Prazer é felicidade? Felicidade é algo espiritual? Existe prazer em ser espiritual? Ou o prazer é algo carnal?
As coisas não são respondidas assim com clareza, já que as perguntas não são feitas objetivamente. Por quê? Porque sem Deus o homem anda em trevas, não sabe de onde vem, para onde vai, nem sabe se está indo ou vindo. Não descansa quando precisa, não segue, quando é possível, não ama quem merece, deseja o que não é seu e despreza aquele que é o seu maior direito.
Trevas, negras trevas, e não são trevas físicas, às vezes nem são trevas morais, mas espirituais. Isso porque as pessoas sabem o que é certo e errado, mas isso, somente isso, não é suficiente para conhecerem a Deus. Fazer o bem não é necessariamente estar na luz, andar com Deus, assim como não é pela mal que se faz que se está condenado a uma eternidade nas trevas, sem luz e sem Deus.
Não existe prazer nas trevas, distante de Deus não há luz, portanto só existe felicidade em Deus. Deus não está na luz, Deus é a luz, a única luz, e Jesus a porta que nos conduz a ele.

Para onde me ausentarei do teu Espírito? Para onde fugirei da tua presença? Se eu subir ao céu, lá tu estás; se fizer a minha cama nas profundezas, tu estás ali também.
Se tomar as asas da alvorada, se habitar nas extremidades do mar, ainda ali a tua mão me guiará, e a tua mão direita me sustentará.
Se eu disser: As trevas me encobrirão e a luz ao meu redor se transformará em escuridão; até mesmo as trevas não serão escuras para ti, mas a noite brilhará como o dia; pois as trevas e a luz são a mesma coisa para ti.
Salmos 139.7-12

29 de set. de 2014

17 - De passado não se vive

Na madrugada de segunda-feira, eu não conseguia pegar no sono, o trato que tinha feito com Breno pesava em minha cabeça, a imagem da pessoa que tinha me seguido andava no meu quarto, ao redor da minha cama. O que me torturava era o fato de eu não conseguir ver o rosto, via o corpo, os cabelos, mas não conseguia distinguir os olhos, a boca. Precisava sonhar, perder a consciência, sair daquele pesadelo real, mas não segurava as imagens que via no teto de meu quarto, elas definiam-se e se perdiam. Eram de um filme de terror, e eu não era o protagonista, era um daqueles coadjuvantes que estavam no lugar errado, fazendo a coisa errada, e que não sobreviveria até o final. Pensava na dor de morrer, era teria que ser menor que a dor de viver, senão não valeria à pena, então, enfim, consegui sair do quarto e penetrar nas visões.
O caminhão da rodovia caia sobre meu carro e eu estava preso entre as ferragens. Faltava-me ar, eu o puxava e ele não vinha, ouvia as sirenes da polícia, gritava, mas a voz não saía, ninguém me escutava. Pelo vidro trincado eu vi um carro passar, o motorista me olhou, deu um riso macabro, mas não disse nada e seguiu em frente. O motorista do carro que passou era eu que me abandonava só, para morrer. Havia em mim no carro que ia, um prazer em me ver sofrer no carro que ficava. Ouvi um barulho, alguém tentava me libertar do carro debaixo do caminhão, mas acordei e percebi que o barulho era em casa.
Não conseguia me levantar, minha mente ainda estava presa ao sonho, o barulho era de algo arranhando madeira. Não havia forças em meus braços, meus pés estavam colados ao cochão, o centro do meu corpo se esforçava, até se desprendia da cama, minha cabeça se mexia, mas meus tornozelos e meus pulsos pesavam uma tonelada. Aqueles segundos pareceram horas, enfim, reunindo toda a força que podia, consegui me erguer. Sentei-me na cama, olhei para a porta fechada do quarto e vi a luz pelas frestas, a lâmpada do corredor que eu deixava acesa. Disse para mim mesmo, “preciso ver o que está havendo, mas e se for o assassino?”. Me virei e coloquei os pés no chão, então o barulho parou, “será que o bandido entrou em casa?”, me perguntei.
Coloquei a mão direita na maçaneta e abri bem devagar, dei um passo e estava no corredor, então ouvi novamente o ruído, dei três passos e entrei na cozinha, não era de lá que vinha o barulho. Dei meia volta e fui até a sala, parei e prestei atenção, era como se alguém esfregasse as unhas na porta. Dei mais três passos e acendi a luz da varanda, pensei, “a luz vai assustar o cara e ele vai fugir”, mas não foi isso que aconteceu, o barulho continuou.
Não sei o que nos move em direção ao perigo, eu poderia simplesmente ter checado se as chaves estavam fechadas, girar as outras travas da porta, que geralmente ficavam abertas, para me proteger mais e pronto, fosse quem fosse, não poderia entrar. Depois poderia até ligar para a polícia, ou então, numa solução desesperada, ir para a cozinha, abrir a porta e sair pelos fundos, rapidamente eu pularia o muro e estaria na casa do vizinho. Mas não foi isso que fiz.
“Vou abrir a porta, preciso saber o que é isso.” Num movimento só eu coloquei a mão direita na maçaneta da porta da sala, movimentei-a, e com a mão esquerda girei a chave, uma, duas vezes, e rapidamente, puxei a porta. Foi puxar e o gato miar e sair correndo, o bichano estava na rua em dois pulos, eu respirei fundo e sai pra varanda.
Apoiado à mureta eu olhei o céu, vi o rosto de Celma naquela imensidão, duas estrelas brilhavam mais que as outras, eram seus olhos. Eu pensei em nós, pensei naquele último jantar. Nesse encontro eu tentei recuperar o clima do início, o clima da paixão, de quando andávamos grudados durante todo o tempo.
Um casal se separa quando um não consegue mais tocar o corpo do outro, não se dão mais as mãos, não se beijam nas despedidas e chegadas, e isso acontece mesmo na cama, enquanto dormem. Parece que o simples contato com a pele do companheiro incomoda. Então eles se tornam estranhos, mesmo morando na mesma casa, mesmo dividindo dívidas e até sexo, já que sexo não é amor, e ele pode existir mesmo entre pessoas que não se amam. Quando o prazer é alcançado, de novo se separam, quando é assim, o sexo é algo egoísta e incompleto. Nós já estávamos desse jeito há um bom tempo, naquele jantar, todavia, eu esperava alguma coisa, um milagre, acho eu.
- Chateaubrian ao molho de queijo? – eu perguntei.
- Sim, com arroz com passas – ela respondeu com os olhos fixos atrás de mim, em algum ponto. O garçom veio trazendo o Cabernet, nos serviu e eu fiz o pedido. Sentávamos a mesma mesa que nos sentamos na última vez que estivemos lá, até os garçons eram os mesmos.
- Como foi o dia? – perguntei.
- Fazer as pós para dar aulas na universidade, bem melhor que dar aulas na rede pública, mas sei lá, com o tempo tudo fica chato – respondeu ela bebendo um gole do vinho, repousando a taça na mesa e olhando para ela, Celma não tinha pousado os olhos em mim até aquele momento.
- Dar aulas na Unicamp, sempre foi seu sonho – eu disse.
- Realmente, o Carlos vai mudar para o norte, tem uma federal lá pagando o dobro – disse ela, enfim, me olhando.
Celma tinha um jeito todo dela de dizer uma coisa enquanto pensava em outra. Diferente de mim, ela não se delatava com facilidade, com tiques, ao contrário, ficava ainda mais lenta quando queria esconder algo, falava devagar, olhava-me com firmeza. Mas ela já me dava pistas há algum tempo, eu é que não queria entendê-las.
- Você quer se mudar? – perguntei olhando para ela com agonia, tentando ler suas entrelinhas.
- O que você acha? – sempre fazia assim, jogava a responsabilidade sobre mim, respondia uma pergunta com outra pergunta, depois que eu respondia, ela então dizia o que pensava, isso me fazia sentir culpado.
- O que acha você? – insisti.
- Sei lá, seria diferente – respondeu distante, com os olhos novamente presos à taça. Eu tomei um gole maior de vinho, virei a cabeça de um lado para o outro, segurei a irritação e tornei a olhar pra ela.
- Não posso sair daqui, estabeleci contatos na região, você sabe como é difícil para um músico entrar no meio, já fizemos isso uma vez e demorou tempo até que eu voltasse a trabalhar. Pra você é mais fácil.
- O Carlos se separou da mulher, sozinho as coisas ficam diferentes – citou, ela, novamente o colega.
- É – respondi monossilabicamente, eu via com os olhos da alma uma realidade que eu não queria admitir para mim mesmo. Nesses momentos a alma voa, tenta nos arrastar, mas nosso corpo está pesado demais, preso a uma mentira. Seguiu-se um silêncio, que já tinha sido bom, num tempo em que falar ou se calar era agradável, já que se estava ao lado de quem se amava.
Num relacionamento temos várias fases, sempre revezando períodos de silêncio e de diálogo. Primeiro existe o silencio do encantamento, quando veneramos o ser amado como se fosse um santo, alguém fora desse mundo. Depois existe o momento do falar-se tudo, é quando revelamos quase todos os segredos, quase todos, e em se tratando de mulheres, menos do que os homens. Neste momento não nos cansamos de falar, nem de ouvir. Então tornamos a nos calar, mas agora um silêncio de paz, a paz de ter encontrado alguém com quem nos sentimos bem mesmo sem ter nada a dizer. Esse é o momento de ver televisão juntos, de ir ao cinema, de andar pelas praças, de amanhecer em Campos do Jordão e de entardecer numa praia qualquer do litoral paulista, é o momento mais maduro, fruto maduro, contudo, cai do pé e apodrece. A esse momento deveriam seguir filhos, então um novo assunto ocuparia o tempo e vida seguiria com desafios.
Mas não foi isso o que ocorreu conosco, os filhos não vieram, não achávamos nunca que era o momento, então começaram os atritos, atritos causado pelo tédio, pela falta de prazer. Esses atritos ainda são uma tentativa de reconstrução num relacionamento, a última. Contudo, não tínhamos mais nada de graça para oferecer um ao outro. Começamos a fazer as contas, a contabilizar o que era dado e o que era recebido, o balancete mostrava saldo negativo para os dois, assim atenções de fora eram requeridas para equilibrar esse saldo, assim a traição na vida de gente sem Deus tornou-se opção viável.
Finalmente estávamos nós naquela fase, a última, quando o silêncio profundo revelava que não havia mais nada a ser dito, nada para ser lutado. Acho que ela desistiu primeiro, nem sei, ela sempre foi tão enigmática, se antes era isso o que mais me prendia a ela, agora era o que me afastava dela.
- O Carlos... – ela disse, mas eu não permiti que ela terminasse a frase.
- Novamente esse Carlos, você só fala nele...
Ela abriu seus grandes olhos e me queimou com eles, sua alma vazou e me confrontou, com todas as forças que tinha, jogou em minha cara tudo o que eu poderia ter sido e não fui. Então ela voou, para longe daquele restaurante, longe daquela cidade, longe de mim.
Nos calamos, o filé chegou e eu pedi mais uma garrafa de Cabernet. Sempre gostei daquele restaurante em Campinas, o conhecia há muito tempo, eu a tinha levado lá no começo de nosso namoro, quando ainda morávamos naquela cidade, namoro que nunca terminou, já que nunca nos casamos.
Essa coisa da modernidade deixa tudo sem compromisso, tudo sempre aberto ao erro, ao fim, nada nunca é para sempre. Não que tenha que ser, ou que possa ser, mas deveríamos querer isso, lutar por isso, insistir nisso. Eu, que sempre fui um falador, estava calado, aquilo doía, eu tinha perdido uma mulher especial, a mulher da minha vida.
Eu bem que podia ter insistido, se ela queria se mudar, que a gente se mudasse, o que ela ganhava dava pra segurar nosso orçamento até que eu me estabilizasse novamente em uma nova cidade, mas não, me acomodei, tive medo, como sempre.
Então eu mostrei meu lado mais negro, que não era o que expressava uma reação agressiva, de jogar no outro a culpa, mas que se resignava, aceitando a situação, com autocomiseração, como vítima. O prazer em sofrer era algo que eu produzia com calma, com o melhor de mim, depois deixava envelhecer, para então sorver bem devagar, um gole de cada vez, como aquele Cabernet importado.
Ela não gostava de bebida alcoólica, cerveja não bebia, era apenas espumante nas festas de final de ano e vinho, em situações especiais. Com a terceira taça ela ficou tonta, enquanto trocava a faca de mão esbarrou na taça que caiu ao chão. O cristal se quebrou, fazendo um barulho espalhado e agudo. O garçom se aproximou.
- Não tem problema, isso acontece – disse ele.
Eu olhei para a taça despedaçada no chão, o líquido vermelho espalhado, aquele ambiente com pouca luz, uma versão instrumental de “Insensatez” do Tom tocando bem baixinho, era tudo tão surreal, era julho, dois anos atrás. As vidraças embaçadas do restaurante me mostrava uma Campinas que não era mais aquela da minha juventude, quando eu me apaixonei por Celma. Eu que fui àquela cidade naquela noite para recuperar meu presente descobri que tem certas coisas que são melhores que fiquem no passado, não poderão ser refeitas, assim pelo menos teremos boas lembranças. Mas naquele momento pareceu-me que até as recordações foram destruídas, não sobrou nada.
Deixei Campinas nas memórias e voltei para a varanda em Itu, o gato estava na calçada da frente, encolhido, odiando-me por tê-lo expulsado do abrigo. Eu não podia mais dormir, entrei em casa e fui até a geladeira, ainda havia um resto de Cabernet barato numa garrafa, deu pra encher um copo, mas não daria para encher a cara. Toda a cachaça do mundo não atordoaria a dor que sentia naquele momento. Com o copo na mão sentei-me no sofá da sala e liguei a televisão, quanta solidão, Celma devia estar bem, ao lado de Carlos.
Peguei o celular e procurei na memória aquele número pelo qual ela havia deixado uma mensagem de voz. Olhei o número, era um número novo, não era o que estava registrado nos meus “Contatos”. Selecionei “Opções”, escolhi “Apagar”, mas na hora de responder “Sim”, hesitei, pensei e pensei. Respondi “Não” para confirmar “Apagar” e selecionei “Ligar”. Eu estava dividido, queria ouvir a voz de Celma, que fosse pela última vez, por outro lado meu orgulho dizia que aquilo seria uma humilhação pra mim. Ouvi o telefone tocando, torcendo para que ela não atendesse, mas ela atendeu, eram duas horas da madrugada.
- Alo? Pronto? Quem fala? Então vou desligar...
Não falei nada, apenas ouvi, sua voz suave sempre mexeu comigo, uma voz diferente de todas, na hora pensei, “tudo bem, ouvi a voz dela, mas consegui resistir, não falei nada”. Tolo que fui, meu número de celular não tinha mudado, deveria ainda estar na memória do celular dela, e eu não tinha desligado a função de identificação de chamada. Me arrependi, agora ela sabia que eu ainda pensava nela.
Na rua o gato, enfrentando-me deu um miado alto e agudo, parecia risada de uma bruxa, ele parecia possuído. De alguma maneira eu senti que aquele gato tinha sido meu sétimo encontro.

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Irmãos, não penso que eu mesmo já o tenha alcançado; mas faço o seguinte: esquecendo-me das coisas que ficaram para trás e avançando para as que estão adiante, prossigo para o alvo, pelo prêmio do chamado celestial de Deus em Cristo Jesus.
Por isso, todos os que somos aperfeiçoados tenhamos esse mesmo modo de pensar; e, se em alguma coisa pensais de outro modo, Deus também vos revelará isso. Mas prossigamos na medida da perfeição que já atingimos.”
Filipenses 3.13-16

De passado também se vive, diz o ditado popular. Mas o único passado que nos traz vida é aquele em que Deus se fez homem, veio, morreu e ressuscitou, e na verdade esse é o único passado de Deus, já que Deus não tem começo nem fim, ele era, é e sempre será o mesmo. Em Jesus ele se fez passado, se fez mortal, para resgatar o nosso presente e nos dar um futuro. Mesmo muitas boas lembranças de nossas vidas, com o tempo, descobrimos que não foram tão boas assim, foram importantes naquele momento, para aquilo que éramos. Se fossemos viver novamente, faríamos diferente.
Na verdade o conceito de tempo está ligado ao pecado, é o pecado que nos dá a sensação de passado, de presente e de futuro, já que ele corrompe a carne. O espírito renovado por Deus não envelhece, não se cansa, está sempre novo, sempre bem. Pensar que quem mais nos quer prender à matéria é justamente um ser espiritual. Satanás teve sua natureza mudada, porque pecou, e ele vive a pior e maior das dores, a de sendo espiritual possuir fraquezas carnais. Por isso não há salvação pra ele, mesmo que temporariamente ele viva ao redor desse planeta, no segundo céu, o inferno foi preparado para ele e o aprisionará na eternidade, ele nunca terá direito ao terceiro céu.
Mas nesta vida não podemos viver a novidade do espírito transformado pelo Espírito de Deus em sua plenitude, já que estamos presos à matéria. Por isso um esforço constante, para vencer as inclinações naturais do corpo e da alma, deve ser feito para que se possa ter paz. Não tem outro jeito, a vida espiritual nesta existência é assim, não há tempo para descansar, não há possibilidade de ficar em cima do muro, qualquer tipo de neutralidade é impossível, ou se vive em Deus, ou não se vive.  

Mas graças a Deus, que nos dá a vitória por meio de nosso Senhor Jesus Cristo. Portanto, meus amados irmãos, sede firmes e constantes, sempre atuantes na obra do Senhor, sabendo que nele o vosso trabalho não é inútil.”
I Coríntios 15.57-58

28 de set. de 2014

18 - Andor

Dona Vera era uma velha que me incomodava, todos na rua a tratavam com respeito, era a moradora mais antiga da vila, mas entre eu e ela não havia química, se posso dizer assim, talvez porque ela representasse tudo aquilo que eu mais não queria ser, e que ao mesmo tempo estava propenso a ser, talvez porque de alguma maneira ela lembrava meus pais, o que eles tinham de ruim, a maneira como eles tinham me criado.
Não gosto que me obriguem a fazer algo, só porque todos fazem assim, isso lembrava a vida rotineira de meus pais, com horários fixos para as refeições, padrões de vida que nunca mudavam tirando deles o direito à liberdade e às boas surpresas. Incomoda-me gente, por exemplo, que só gosta de música erudita ou de jazz, porque foram ensinados assim por seus pais. Não se expõem a outros estilos, e pior que isso é que se sentem superiores às outras pessoas por achar que suas dileções são as melhores. Gente assim priva-se de aprender com sabedorias e artes que não são as consideradas mais sofisticadas pelos críticos e acadêmicos, mas que representam experiências reais de vida de gente simples. Há beleza numa música sertaneja de raiz tanto quando num concerto de Tchaikovsky ou num improviso de Miles Davis.
Para resumir em uma frase: odeio dogmas e dona Vera era o tipo de pessoa absolutamente dogmática, a começar por sua religião. Gente que sempre fez a mesma coisa porque foi assim que foi ensinada, é assim que ensinam a seus filhos e assim serão até a morte. Ela tinha o horário certo para acordar, às seis da manhã todos os dias, fizesse chuva ou sol, fossem dias da semana, finais de semanas ou feriados. Ela tinha as missas certas para ir, e ela ia a três missas semanais, fora os terços e correntes de oração. Ela fechava as janelas e apagava as luzes para dormir sempre que a novela das nove da rede Globo acabava. Ela não era uma pessoa, mas um andor de dogmas, era assim que se sentia valorizada, era isso que arrogava para todos.
Tinha sido casada com um militar, o que a tinha graduado com louvor na escola dos dogmas, hierarquias e cerimoniais, já era viúva a mais de trinta anos. Não era uma mulher feia, pequena, magra, sempre alinhada, alguém que viveria até os cem anos, e viveu, contudo, nunca despertou em nenhum outro velho desejo para se aproximar dela e por fim em seu luto. Tem gente que já nasce de luto, se enclausuram dentro de vestes emocionais negras que as afastavam da felicidade, meus pais eram assim. Mas acho que Vera não era mulher para casar, deveria ter permanecido solteira, religiosa e casta.
Ela morava sozinha, na casa do lado esquerdo à minha, seus filhos, que também residiam na cidade, sempre a visitavam, mas ela, com mais de setenta anos, era independente. Essa era a vantagem de se morar no velho centro de Itu, facilidade de se chegar ao comércio, aos templos, às escolas, rapidamente e sem automóvel.
Como eu disse, não havia química entre nós, ela me olhava com o canto do olho, enojada, como quem vê o diabo na frente, já que como vigilante da moral e dos bons costumes me interpretava, sozinho e trabalhando em casas noturnas, como um libertino. Para alguém que jogava na cara de todo mundo sua religiosidade inabalável, faltava, convenientemente ao seu cristianismo, a compaixão e a caridade, pelo menos comigo, mas que vantagem ela teria em demonstrar virtudes para com um amaldiçoado como eu?
Algumas pessoas conseguem passar pela vida se protegendo dos confrontos que poderiam levá-las à consciência da fraqueza humana, de seus limites. É essa consciência que nos torna humildes, que faz com que tenhamos misericórdia pelos outros porque entendemos que também precisamos de misericórdia. Dona vera era alguém assim, escondida dentro dos templos romanistas tinha se mantido protegida dela mesma. Mas é claro que ela pagava preços caros para se manter assim equivocada, já que a vida não perdoa ninguém, está sempre chamando as pessoas para a realidade. Quem se nega a ver a verdade, vai se esfriando e se distanciando de tudo.
Seu calcanhar de Aquiles era Fabinho, o filho mais novo. Demorou-se a casar, casou-se com uma professora, demoraram a ter um filho, e logo após o nascimento do menino veio a público o romance dela com um colega professor. Separam-se sobre total desaprovação de dona Vera, e a dúvida sobre a paternidade da criança sempre existiu, já que uma das reclamações da esposa, e isso era conhecido na vila, era que o marido não tinha relações sexuais com ela.
Fabinho tinha duas facetas, uma delas insistia em querer a esposa de volta, pressionado pela moralidade da família que o acusava, a outra o levava a casos com rapazes. Diziam que ele tinha aquela sexualidade denominada bi, se é que isso seja possível, eu acredito que isso não existe, não se pode ter as duas coisas com prazer. Acho que ele era apenas alguém, como tantos, sem coragem para assumir aquilo que realmente o fazia feliz.
Se ele era ou não homossexual ou se ele era isso por motivos legítimos, se é que existem motivos legítimos para isso, eu não sei. Todavia, sempre que o encontrava, e eu sempre o tratava com respeito, sentia nele uma alma em luta, parte dominada por sua mãe, que exigia dele a heterossexualidade, e outra parte também dominada pela mãe, só que de forma inconsciente. Essa outra parte, usando uma interpretação freudiana, queria homens, já que sua mãe, dominadora, era seu exemplo de sexo forte, era quem ele queria ser, e não seu pai, sempre distante e passivo, mais preocupado com o quartel do que com a família.
Lembro-me de ter sido acordado às oito horas de um sábado, depois de ter chegado às três horas em casa do Grande Hotel, por uma gritaria na rua. Um homem, dentro de um carro, gritava para Fabinho, na varanda da casa da mãe. Ele dizia algo como, “sai daí, para de se esconder debaixo da saia de sua mãe, vem aqui que eu te mostro o que é ser homem”. Fábio não saía pra rua e o homem só foi embora quando um veículo policial chegou, chamado por dona Vera. Depois desse incidente outro ocorreu, uma bomba foi jogada na garagem da casa de Fábio, por sorte não atingiu o tanque de gasolina do carro estacionado e mandou tudo para o ar. Disseram que isso foi feito pelo homem que tinha brigado com Fabinho no sábado de manhã, seu nome era Clóvis, ele era quem vivia com a ex-mulher do caçula de dona Vera.
Esses confrontos entre Clóvis e Fábio eram constantes na cidade, e só terminaram quando um fim trágico levou Clóvis para a outra vida. Numa festa junina, Clóvis brigou com a amante, agindo com violência com ela e com o menino, isso na frente de pais que assistiam a quadrilha dos filhos. Coagido por outras pessoas que o viram cometer tal abuso, ele se refugiou no banheiro da escola onde a festa acontecia. Só saiu de lá quando a polícia chegou e o levou preso. Alguns dias depois soubemos que Clóvis foi encontrado morto, enforcado numa cela da prisão municipal. Comentava-se que dona Vera, viúva de um militar importante da cidade, poderia ter tido alguma influência na morte, morte que não teria sido por suicídio.
Segredos macabros escondem-se atrás de velhinhas aparentemente ingênuas que vão às missas todos os domingos, violências desmedidas escondem-se em casas de famílias tradicionais, depravação sexual pode esquentar noites de casais que caminham tranquilamente nas manhãs de sábado pelas feiras locais.
O destino, todavia, tinha outros planos para dona Vera e eu. Se destino é preconcebido por Deus ou resultado de escolhas humanas posteriores, não vou discutir aqui, apenas usarei o termo como significando o caminho de cada ser humano. Na madrugada da terça-feira, seguida àquela segunda-feira quando o gato havia me acordado, eu conseguia dormir quando fui acordado por um barulho. “É aquele gato de novo”, pensei, contudo, à medida que fui despertando percebi que era um barulho diferente.
Minha casa e a casa de dona Vera eram conjugadas, tinham sido construídas por uma mesma pessoa, num único terreno. Ela era proprietária, eu alugava o imóvel. Uma única parede separava-nos, leves ruídos feitos por um eram ouvidos pelo outro, de madrugada então, com televisores desligados e com a cidade repousando, cidade que já era calma durante o dia, um simples murmúrio feito por Vera eu podia ouvir com clareza.
Levantei-me, fui até a cozinha, abri a porta dos fundos e cheguei ao quintal, de lá ouvi um choro baixo, revezado com um pedido de socorro. “Meu Deus”, pensei eu, “essa velha está morrendo, o que é que eu faço?”. Não tinha o número de telefone dela, mas peguei a lista e rapidamente achei o endereço e liguei. De casa eu podia ouvir o telefone fixo dela tocando, mas ninguém atendia. “Vou ter que entrar nesta casa”, eu resolvi.
Se ela não podia atender telefone, muito menos poderia abrir a porta da sala, então encostei um cadeira no muro do meu quintal e olhei. A porta dos fundos que dava para o quintal dela, era de vidro, seria mais fácil de quebrar do que a de madeira da frente, com sorte ela teria deixado a chave na fechadura do lado de dentro e eu poderia abrir. Então subi no muro, sentei-me nele e pulei para o quintal de dona Vera. Fui até a porta e levantei o braço para quebrar o vidro, então parei, pensei, “vou me cortar todo”. Olhei para o varal e vi um pano de prato secando, peguei o pano, enrolei em volta da mão e bati no vidro, que se quebrou. Sim, a chave estava na fechadura do lado de dentro, eu abri a porta e entrei.
“Socorro”, eu ouvia bem baixinho, liguei a lâmpada da cozinha e vi, no corredor, a velha caída.
- Dona Vera, o que é que ouve – perguntei assustado.
- Dói muito, do lado esquerdo, eu caí, acho que quebrei o pé – ela sussurrava com uma voz abafada, sem forças. Eu me abaixei e passei a mão sobre sua cabeça, ela estava deitada de frente.
- Vou ligar pro hospital – eu disse.
- O telefone está na sala, ao lado dele tem os números de emergência – ela respondeu.
Entrei na sala, acendi a lâmpada, achei o telefone, numa mesinha, ao lado da televisão, e sobre a mesinha havia uma relação com números de emergência, então liguei para o hospital.
- Alo, de onde fala? – eu perguntei.
- Hospital São Camilo, emergência – uma voz me respondeu.
- Preciso de uma ambulância... – antes que eu passasse o endereço a pessoa me respondeu.
- Aí é a residência da dona Vera?
- Sim.
- Já identifiquei pelo número.
- Acho que ela está tendo um enfarte.
- Ok, já estamos enviando uma ambulância.
- Obrigado.
Voltei ao corredor, e me ajoelhei.
- Dona vera, a ambulância já está vindo.
Ela me olhou por um instante, balançou a cabeça e tornou a olhar para o lado. Eu tinha que fazer mais alguma coisa, não poderia ficar lá, indiferente, aqueles poderiam ser os últimos momentos dela. Todo o incômodo que ela sempre me causava foi desaparecendo, tive dó, então com muito cuidado me aproximei um pouco mais e coloquei a cabeça dela em meu colo, ela não esboçou qualquer reação.
Nunca tinha entrado dentro daquela casa, era tudo tão velho, tão grande, tão frio. Com o tempo uma casa, seus móveis e sua decoração, transformam-se no corpo de seu dono. Sofás, mesas, cadeiras a aparadores antigos, deveriam ser aqueles que ela adquiriu quando se casou quarenta anos atrás. Couro escuro e madeira pesada, davam ao local uma aparência litúrgica, não parecia um lar, mas um templo. Aquela casa era o andor de Vera.
Na posição onde estava, eu via quase tudo, a minha frente estavam os dois quartos, à esquerda a sala, à direita um banheiro e atrás de mim a cozinha. A planta daquela casa tinha sido mudada, era diferente da minha, de maneira que a cozinha era maior, também servia de sala de jantar, e havia outro banheiro no fundo. O quintal era menor que o da minha casa. No primeiro quarto à esquerda, que dava para a rua, havia uma cama de solteiro, um guarda-roupa e uma máquina de costura, uma Vigorelli antiga, relíquia, nem era elétrica. No outro quarto, dos fundos, havia uma cama de casal, dois criados mudos, uma penteadeira, fazia tempo que eu não via uma assim, uma cômoda, um imenso guarda-roupa e uma poltrona.
Contudo, o que revela não o corpo, mas a alma de uma pessoa em uma casa são os quadros e fotografias. Eu não tinha fotos em casa, eu não tinha lembranças que queria guardar, Vera, não, havia muitas fotos espalhadas pela casa. Fotografias de jovens, que já deveriam ser velhos, de crianças, que sempre seriam crianças para uma mãe ou uma avó, e imagens de santos, de muitos santos. Aquele quadro clássico, de Maria mãe de Jesus e de Jesus, ambos com os corações figurados em seus peitos, o dela com galhos de rosas brancas ao redor, e o dele com galhos de espinhos, ocupava o centro da parede direita da sala, na parede esquerda ficava um televisão, enorme e antiga. No centro da sala, sobre uma mesinha, a Bíblia da Barsa, aberta, reposava sobre um aparato. Lembrei-me da casa de meus avós maternos, me lembrei daquele sentimento de limpeza clínica e de vazio afetivo. Meu coração apertou e sangrou, igual ao coração do Cristo no quadro.
Vera tinha vida, família, amigos, eu ouvia com despeito o barulho das festas que ocorriam naquela casa, a mais frequentada delas no dia doze de outubro. Pensei, “meu Deus, essa velha é mais feliz do que eu”. Mas não havia, pelo que eu percebi naquele momento, uma foto sequer do falecido, não vi nenhum homem fardado, ou ao lado de Vera, com idade próxima a dela. Nas fotos, vi sim, muitos registros dela e de Fabinho juntos, vi também uma de Fabinho com a esposa e o filho.
Foram dez ou quinze minutos, aguardando a ambulância, a cabeça de Vera em meu colo parecia tão tranquila, ela se queixava de dor, gemia baixinho, mas recebia meu aconchego com serenidade. Naquele momento todo preconceito e rancor desapareceram, éramos dois seres humanos sem diferenças de idades, de moral ou de religião, tive dó da fragilidade em que se encontrava aquela mulher. Naquela hora que poderia ser sua última, Deus tinha levantado alguém, que sempre se colocou como seu inimigo, como seu amigo.
“Será que ela me odiava do jeito que eu achava? Será que ela realmente tinha algo contra mim? Será que ela era uma senhora orgulhosa que se achava melhor do que os outros? Ou seria tudo invenção de meu coração amargo? Será que eu mereceria um fim daquele jeito? Acolhido por alguém? Ou morreria sozinho num beco sujo da cidade, com uma bala na cabeça, desprezado pelo mundo? Será que o problema era o mundo ou era eu? Era o mundo que me rejeitava ou era eu, e eu sim, no meu grande orgulho, que negava a mim o direito de ser amado?”. Essas perguntas estavam em minha cabeça naquele momento.
Ouvi a ambulância chegando, coloquei a cabeça de dona Vera com cuidado no chão e fui abrir a porta.
- A chave está na fechadura – disse-me ela.
Eu acompanhei-a na ambulância até o hospital. As recepcionistas, como tanta gente naquela cidade, conheciam dona Vera, eles entraram em contato com Fabinho que veio rapidamente até o hospital. Eu o cumprimentei e fui embora. No dia seguinte, no horário do almoço, Fabinho veio até em casa me agradecer por ter ajudado sua mãe, eu pedi desculpas pela porta da cozinha, tinha sido apenas um aviso. Vera, naquela madrugada, tinha sido meu oitavo encontro, daquele momento em diante minha atitude com ela mudou, passamos a ser bons amigos e ela está viva até hoje.

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Quem sabe do coração das pessoas? Quem realmente conhece suas intenções? Quem sabe o que se passa naquele momento, o último? Quem sabe quem está pronto para morrer?
 O que é pior, acreditar numa mentira ou acreditar em nada? O que é mentira? Um desvio doutrinário, a idolatria de uma imagem ou de uma escultura, isso é uma mentira? De verdade, no mesmo nível que a idolatria de Israel no antigo testamento?
Quem pode julgar a sinceridade de um católico? Os evangélicos, até que ponto são melhores do que alguém, até que ponto não são mais arrogantes do que tantos que eles mesmos criticam? Até que ponto não são idólatras, não de homens santos, mas de ideias, de pregadores, de adoradores?
Julgamos, julgamos e julgamos, se são diferentes, então estão errados, são heréticos, estão desviados. Que engano, a diferença é tão diferente, tão variada, tão complicada. Deus ama, ama e ama, não o pecado, nem a atitude do pecador, mas seu coração. Esse amor é verdadeiro porque é o único que vê, não aquilo que a pessoa é ou foi, mas aquilo que ela pode vir a ser, caso se converta a ele.
E o que somos, de verdade? Em última instância somos o que fazemos, as consequência reais de nossas intenções. Ações são mais importantes que intenções? Quantas vezes nós evangélicos clamamos a Deus para que ele leve em consideração não o que fazemos, mas o que queremos fazer, nossas intenções, enquanto que outros, que julgamos piores, estão conseguindo por em prática aquilo que creem, ajudando quem precisa, executando caridade.
Não, não estou diminuindo de forma alguma o poder do nome de Jesus, em salvar mesmo aquele que foi crucificado ao lado de Cristo, que creu e não teve tempo de descer da cruz para fazer nenhuma boa ação, ele foi salvo simplesmente pela fé, pela intenção. Mas quem conhece o coração dos homens, repito? Tantos fariseus, que tiveram todo o tempo do mundo para fazer, e fizeram, tantas boas ações, crucificaram Jesus e podem estar condenados ao inferno eterno.

Quem entre vós é sábio e tem conhecimento? Mostre suas obras pelo seu bom procedimento, em humildade de sabedoria.
Mas não vos orgulheis, nem mintais contra a verdade, se tendes inveja amarga e sentimento ambicioso no coração. Essa não é a sabedoria que vem do alto, mas é terrena, animal e demoníaca. Pois onde há inveja e sentimento ambicioso, aí há confusão e todo tipo de práticas nocivas.
Mas a sabedoria que vem do alto é, em primeiro lugar, pura, depois pacífica, moderada, tratável, cheia de misericórdia e de bons frutos, imparcial e sem hipocrisia. O fruto da justiça semeia-se em paz para aqueles que promovem a paz.”
Tiago 3.13-18

27 de set. de 2014

19 - Cientista e astronauta

Era uma sexta-feira, o Grande Hotel não tinha me chamado pra tocar naquele final de semana, tocaria num vernissage no sábado, mas naquela noite eu estava livre. Eu não queria café, não queria conversa, não queria televisão, não queria sair, nem queria ficar em casa. Peguei meu celular e comecei a olhar a lista de contatos, houve épocas em que meu caderninho de telefones era cheio, um caderninho que mantive até que comecei a me relacionar com Celma.
Quando eu era mais jovem dificilmente passaria uma noite em casa, sozinho, nem sabia qual era a novela das oito. Queria conhecer pessoas, queria namorar, precisava do afeto que só as mulheres podem oferecer a um homem. Não que eu fosse um homem, eu era um menino, o corpo já estava pronto, mas a alma cheirava talco, alma ingênua que machucava os outros e a si mesma sem nem perceber o que estava fazendo. Como esses hematomas que só vemos no dia anterior e que nem lembramos como os adquirimos, de tão excitados ou embriagados que estávamos. Os hematomas da alma, contudo, não somem facilmente, permanecem conosco por muito tempo, alguns para sempre.
Mas esse tempo tinha passado, naquele momento em que eu olhava meu celular eu era um velho, o mais velho que fui, com a alma azul de tão ferida. Minha lista digital não era tão grande quanto o caderninho, de alguma maneira eu tinha virado monge, me escondia das mulheres. Entre donos de barzinhos, gerentes de clubes, gerentes de hotéis, empresários e músicos, achei o número de Juliana, aquela que atropelou o Reinaldo. Olhei para ele, olhei para o céu negro que pela janela entreaberta de minha sala de estar afrontava minha depressão, e apertei a tecla de discar. Não tocou muito e alguém atendeu.
- Alo? – eu falei.
- Pronto – respondeu-me uma voz manhosa.
- Sou o Zé Renato, quem me passou este número foi a Juliana.
- É ela, Zé, é o Zé do acidente? – disse ela sorrindo.
- Não o que foi atropelado – respondi também rindo.
- Lembro-me de você, me ajudou com o corpo, te levei em casa. – falava com uma voz quente – E aí, o que manda?
- Liguei pra saber como estão as coisas – respondi quase que indiferente.
- Aproveitando o começo do final de semana, – disse ela relaxada – e você, não foi tocar hoje? Você é músico, não é? – acho que comentei com ela que era pianista, geralmente as pessoas não dão atenção quando a gente fala que é músico, parece que não acreditam na gente, mas pelo jeito ela deu alguma importância.
- É difícil pra músico se divertir, quando todos estão fazendo isso, estamos trabalhando, quando temos tempo pra diversão, não temos o que fazer. A profissão de músico rouba do homem a diversão casual que a música pode proporcionar.
- Achei que fosse legal trabalhar na noite, divertindo as pessoas, ganhar para fazer algo que muitos pagam pra ter.
- Trabalho é trabalho, é claro que o ofício da música tem suas vantagens, sobre outros ofícios, mas também tem desvantagens.
- Como tudo na vida, algo nos é dado, mas algo é pedido em troca, nunca nada é de graça, às vezes isso cansa. 
- A arte vicia, trabalhar com ela gera uma adrenalina que outros profissionais não experimentam, não o tempo todo.
- Bebe alguma coisa pra relaxar – disse ela novamente rindo.
- Com o tempo bebida nenhuma relaxa mais, adrenalina é a pior das drogas justamente porque é a melhor, é natural, insubstituível. Ficar em casa uma noite sem sentir as teclas debaixo dos dedos, o som de seu instrumento tomando o ambiente, as pessoas sendo levadas pela música a viajar em suas memórias, em suas ilusões, consumindo umas as outras, buscando prazer de uma noite que não será eterna, isso é uma experiência única – filosofei eu.
- Isso é fantástico – disse ela.
- O coração do homem não está preparado para tanto prazer, já que essa sensação é fugaz, passa e fica um grande vazio.
- É o tempo, com o passar dos anos tudo acaba perdendo o sabor.
- E você, não vai namorar hoje?
- Quem me dera, está aí algo que não perde o sabor – ela riu maliciosamente.
- Pra mim perdeu – disse resignado.
- Perdeu nada, é você que não achou a pessoa certa.
- Também, não procuro, como vou achar? – gargalhei com gosto.
- Nem precisa procurar muito, quando a gente quer a encrenca corre atrás da gente.
- No meu caso, elas fogem de mim.
- Não fale assim, estou ficando com dó – uma mulher é sempre mãe, e um homem é sempre um garoto querendo colo.
- Não está a fim de tomar uma cerveja? – eu pedi colo.
- Agradeço o convite, mas estou cansada, vou ficar por aqui, quietinha, tomei meu banho, vou ver se tem alguma estreia na TV.
- Sempre tem algum filme que a gente quer ver de novo.
- Verdade, tem filmes que a gente vê e vê e não enjoa, eu gosto de “O casamento do meu melhor amigo”.
- As personagens da Julia Roberts nunca se dão bem nos finais dos filmes, eu gosto de “Crimes e pecados” do Woody Allen.
- Não conheço esse filme.
- O Woody trata a morte como uma solução viável para um cara que não sente culpa, ele é cínico, mas como sempre é muito engraçado. Gosto do humor intelectualizado dele, que pena que a vida não é assim.
- Você está muito pra baixo...
- Estou chato. Está bom então...
- Mas pode ligar quando quiser, estou sempre disponível para um papo...
- Vou ligar sim, abraço.
- Beijo.
Por que eu não me apaixonava por uma mulher assim, direta? Talvez porque ela não me desafiava com sua verdade escrachada. Acho que eu gostava era de sofrer, de ser enganado. Masoquismo herdado de meus pais? Sei lá, eles não eram desafiados pelo mistério, a isso eles tinham aversão, já que gostavam de ter o controle de tudo. Por outro lado, eles criavam mentiras, e elas os protegiam. Talvez fosse isso então, o mistério me seduzia porque era algo que eu não tinha controle, era tudo o que meus pais não queriam, talvez eu fosse só um adolescente imaturo querendo desafiar as ordens de meus pais.
Criei coragem e saí, resolvi ir até o bar do carioca para tomar alguma coisa, eu precisava ver o céu, minha alma estava sufocada dentro de casa. Naquela sexta-feira o lugar estava cheio, não havia mesa vazia, gente dentro do bar, gente fora, fumando e bebendo, somente homens. Há algo de gay enrustido nesses botecos frequentados somente por homens. Eles até falam de mulheres, mas para ganhar a atenção dos outros homens, para mostrar para esses que eles são homens. Como dizia minha mãe, cachorro que late não morde, falavam e falavam, mas eram um bando de solitários.
Em pé encostado no balcão, eu era embriagado, não pelo copo de vinho doce, mas pelo barulho, aquela conversa uniforme onde não se pode discernir pessoa, mas um ruído de multidão, um ruído alegre. Um homem encostou ao balcão perto de mim e pediu uma coca-cola.
- Bebendo coca, aqui? – eu disse, não como crítica, mas tentando puxar assunto.
Não havia padrão naquele bar, como eu já disse, gente de todo tipo o frequentava, esse cara, porém, era um pouco diferente da maioria.
- Eu prefiro – respondeu ele seriamente.
- Você é daqui? – eu perguntei.
- Sou, isso é, fui – tinha um jeito concentrado, o tipo que pensa bem antes de falar, um tipo bem diferente de mim, um tipo racional e não passional.
- Parece paulistano – fale, e me arrependi, mas eu sempre falo demais e depois me arrependo.
- Já moro em São Paulo há mais de quinze anos, meus pais moram aqui, mas atualmente estou trabalhando em Campinas.
- Já morei em Campinas, durante muito tempo.
- Frequentava esse bar quando era jovem, acho que meu primeiro porre tomei aqui – barba comprida, igual a minha, óculos fortes, mais que o meu, calça preta desbotada, camisa branca, era um pouco mais novo que eu, mas parecia mais cansado.
- Frequento este bar há pouco tempo.
- Você trabalha com que?
- Sou pianista.
- Músico, que legal, eu sou bioquímico.
- Na minha infância parte das crianças sonhavam em ser astronauta, a outra parte, cientista, desses que trabalham em laboratórios, com tubos de ensaio, microscópio.
- Eu era uma dessas crianças, queria ser cientista.
- Eu queria ser astronauta, acho que sou.
- Por quê?
- Vivo no mundo da lua – ele riu.
- Acho que o cientista é o oposto disso, vive trancado num laboratório, olhando microambientes, preso a uma verdade que não é vista a olhos nus.
- Poeta vive olhando pras estrelas, para o universo, imaginando mundos que talvez nem existam.
- Você não precisa de microscópio.
- Só de imaginação.
- Ninguém vê um vírus, mas muitos podem morrer com a atuação deles.
- A poesia nos faz viver, mesmo que de coisas que não são reais, mas o que é real afinal de contas?
- Aquilo que a ciência prova que é real.
- Então Deus não é real?
- Depende do que você chama de Deus.
- Eu falo com ele.
- Acho que não, você fala consigo mesmo – ele disse com um sorriso clínico nos olhos.
- Ele fala comigo – respondi olhando para fora do bar, procurando o céu, ele riu.
- Se você fala com ele, é porque é religioso, mas se ele fala com você, é porque você é maluco, não se ofenda – Tales, esse era o seu nome, era um materialista, não um ateu, porque um ateu não acredita em Deus, ele cria em um deus, o tanto quanto a ciência permitia que ele cresse.
- O que é Deus pra você? – perguntei curioso.
- Penso que há uma possibilidade de existir uma energia que de alguma forma tem acompanhado a transformação do universo, a criação dos sistemas solares, a evolução de substâncias orgânicas de átomos de carbono em seres unicelulares, que evoluíram para vidas microscópicas, saíram da água, foram para a terra, para o ar, até que nós, homo sapiens, aparecêssemos. Existe a possibilidade de que uma entidade maior, consciente e positiva, tenha acompanhado esse trajeto, uma força que existe na natureza ou que é a própria natureza.
- Assim? Algo impessoal, inodoro, insípido, incolor?
- Sim, essa possibilidade existe, já que em alguns momentos admite-se que se fez necessário que algo externo interagisse de alguma maneira com a vida para que ela prosseguisse em sua transformação.
- Algo assim não pode se comunicar com o homem?
- Mas pra que o homem precisa se comunicar com um deus?
- Tem momentos na vida em que a gente não tem ninguém, não acredita em nada, não vê saída, nesses momentos a fé em um Deus que nos ouve e que pode mudar as coisas é a nossa única saída – eu percebi que algo se moveu dentro dele neste momento, mas ele parece ter engolido seco, havia uma espécie de conflito no coração daquele homem, um conflito que ele não admitiria para ninguém.
- O homem precisa é de seu trabalho e de seu positivismo. Ser positivo é ter fé, não em algo que não existe, mas em si mesmo. Ciente disso, mãos à obra, trabalhe e consiga tudo o que você quer e precisa.
- Acho que você tem razão, talvez eu esteja onde estou porque sempre joguei a responsabilidade por mudar a minha vida em outros.
- Não fique triste, meu amigo, muita gente crê nesse Deus pessoal que você está dizendo, e conquista as coisas. Não acho que aquilo em que elas acreditam seja verdade, mas, como diria Maquiavel, os fins justificam os meios. Se as pessoas conseguem ser felizes e prósperas com uma religião, que seja assim, mas não venham querer me convencer que eu também tenho que acreditar dessa maneira.
Tales me falou mais sobre sua vida, ele era realmente um sujeito vitorioso. Graduado e pós-graduado na melhor universidade do país, com um emprego que o colocava na linha de frente das necessidades do mundo moderno. Ele trabalhava na pesquisa de combustíveis alternativos, era casado também com uma química, tinha imóveis próprios, fazia viagens constantes ao exterior, tudo por conta de seu trabalho e talento. Com isso tudo, Tales era uma pessoa sem vaidades, via-se isso pelo modo como ele se vestia, pelo carro que tinha, além de ser um cara culto, que valoriza arte e literatura. Eu o invejei com todo o meu coração.
Ele tomou mais uma coca-cola, eu mais uns copos de vinho, pagamos a conta juntos e ele me deu uma carona até em casa. Para surpresa minha, seus pais moravam na rua debaixo da minha, mas a maior surpresa eu tive conversando com ele dentro do carro, em frente de casa.
Conversávamos sobre música erudita, ele declarava sobre sua dileção por Brahms e Mendelssohn, eu confessava minha paixão pelos russos modernistas. Eu começava a discorrer sobre o início da história do jazz quando ele me interrompeu.
- Zé, – ele disse em um tom grave, como se tivesse acordando de um sonho, interrompeu o resumo da biografia de Louis Armstrong que eu fazia, olhando com seriedade pra mim, ele faria algo difícil pra ele, abrir-se, falar sobre seus sentimentos e não sobre seus conhecimentos – vou falar isso pra você porque é um cara que acabei de conhecer, talvez nunca mais nos vejamos, mas eu preciso dizer isso para alguém – bêbado é amigo de todo mundo, eu estava alto, mesmo que ele não estivesse.
- Se eu puder ajudá-lo – músico está acostumado a lidar com o coração alheio, manipulamos sentimentos o tempo todo enquanto produzimos música.
- Esse envelope aí, – eu olhei e vi um envelope na parte de cima do painel – são exames, acabei de vir do médico. Há algum tempo tenho sentido uma dor de cabeça, fui a vários especialistas, tomei um monte de remédios, e nada de passar, bem, hoje eu descobri.
Ele era um cara muito focado, do tipo reservado, que por algum motivo resolveu me eleger naquela noite um confidente. Como ele mesmo disse, talvez estivesse fazendo comigo, um estranho, algo que ele não teria coragem de fazer com um conhecido.
- O que você tem meu amigo?
- Câncer no cérebro, não tem cura, o risco de retirá-lo através de cirurgia torna a operação impraticável, enfim, seis meses, é isso o que eu tenho.
Naquele momento me faltavam referências para aconselhar, eu era um ser humano não resolvido que estava querendo tirar a própria vida, não era a pessoa indicada para ouvir aquela confissão, portanto fiquei quieto, mas creio que era exatamente isso que ele precisava, já que não era pra mim que ele falava, mas para si mesmo.
- É isso mesmo?
- É, já pensei muito sobre o assunto, não vou contar pra minha família, pra que fazê-los sofrer? Que seja por uma semana só, no final da coisa, quando eu realmente parar de funcionar. Até lá vou guardar segredo, não vou torturá-los com uma tragédia dessas por seis meses.
Ele pensava como um cientista, o termo que ele usou, funcionar, mostrava como ele via a vida, a si mesmo, as pessoas. Mas ele via só o corpo, só a matéria, não via a alma, mais que isso, o espírito. Como um cientista pode se importar com algo que ninguém provou que existe?
De novo a morte confrontava-me, foi assim com aquela senhora que faleceu no sábado de manhã, em meio de estranhos, foi com o revólver do ladrão que não funcionou, foi com os acidentes de carro que aconteceram tão próximos, foi com dona Vera, sem falar com aqueles velhinhos do asilo. Tales tinha sido meu nono encontro, mas meu coração estava frio, não dei o valor devido a dor alheira porque não dava nenhum valor a minha.
Tales sofria porque amava viver, acreditava na vida, em fazer o seu melhor com o tempo que tinha. Ele acreditava que podia mudar o mundo com sua inteligência, com seu esforço, ele não queria morrer. Ele procurava a realidade com lentes de aumento, eu contemplava o céu a olhos nus para fugir da realidade. Eu queria a morte, queria ser espírito livre, para voar entre as estrelas, eu era astronauta, ele era um cientista, ambos meninos com brinquedos de homens.

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Ó SENHOR, nosso Senhor, como teu nome é magnífico em toda a terra! Tu, que puseste tua glória nos céus! Da boca dos pequeninos e de bebês fizeste brotar força, por causa dos teus adversários, para fazer calar o inimigo e vingador.
Quando contemplo os teus céus, obra dos teus dedos, a lua e as estrelas que estabeleceste, que é o homem, para que te lembres dele? E o filho do homem, para que o visites? Tu o fizeste um pouco menor que os anjos e o coroaste de glória e honra.
Deste-lhe domínio sobre as obras das tuas mãos; tudo puseste debaixo de seus pés: todas as ovelhas e os bois, assim como os animais selvagens, as aves do céu, os peixes do mar e tudo o que percorre as veredas dos mares. Ó SENHOR, nosso Senhor, como teu nome é magnífico em toda a terra!
Salmos 8

Prisões, as pessoas as criam, e não são prisões de ferro, de concreto, são feitas de ouro. Que metal precioso é esse? É a cultura, a arte, o conhecimento, a razão, tudo isso protege as pessoas de seus próprios corações, de seus limites, de suas dores. Para não olhar para dentro de si mesmas, elas olham para dentro das coisas, da matéria, daquilo que pode ser controlável. A alma não pode ser mapeada, não se pode ter um guia que nos encaminhe por seus mistérios, por seus melindres, por seus vícios, por suas questões não respondidas, sim porque a alma não encontra respostas na ciência, na filosofia ou mesmo na religião. Então olhamos por um microscópio dentro daquilo que a mente humana pode explicar e entender, dentro de um laboratório fechado, com clima controlado, um clima estéril e sem vida.
Outros, contudo, transviam-se no vazio infinito, deixam suas almas tão soltas pra voar que essas acabam se perdendo. Inventam realidades que não existem, vivem de fantasias, tentam o impossível, existir no espírito estando ainda presos à carne. Esses perdem o respeito pelo tempo, por seus corpos, e esses sim, os corpos, são a única prisão real para o homem. Está aí o maior de todos os desafios, captar a eternidade, segurá-la, compreendê-la, mesmo que presos em corpos corruptíveis.
A existência encarnada é um teste, curtíssimo, uma gota d´água, um teste de uma única pergunta: você está pronto para morrer? Contudo, só estamos prontos para morrer quando estamos dispostos a viver, com todas as suas consequências, pagando todos os preços. O maior de todos os preços é deixar que Jesus viva em nós, já que nele e somente nele existe vida. Quando isso acontece a morte desaparece, a falta de funcionamento do corpo torna-se apenas passagem, quando se sai de dentro de uma gaiola e se pode voar livremente para sempre. Mas o voo do espírito é aprendido estando no corpo, eis aí o maior dos mistérios, por isso o teste da existência encarnada é tão importante.
Voar livre através do espírito é entender que amar é melhor que invejar, que perdoar é melhor que amargar rancores, que uma vida simples e humilde materialmente é a única forma de se obter paz real, livre de vaidades, de orgulhos, que pensar no outro, que fazer o outro feliz, a custo de não satisfazermos as nossas prioridades, é provar a excelência da existência. Só se voa livre no espírito quando Jesus voa em nós, quando ele nos pilota, e não o contrário. Quando paramos de tentar achá-lo com um microscópio e permitimos que ele venha em nosso encontro e nos revele sua vontade, de cima para baixo, de dentro para fora.
Cientista ou astronauta? Jesus, esta é a resposta. Só ele nos tira do laboratório fechado do nosso egoísmo, do nosso orgulho, da nossa mente. Só ele nos livra da liberdade equivocada, seja dos prazeres do corpo ou da ilusão da alma. Jesus é o equilíbrio, é a porta e é a sala, nos dá as margens e nos lança ao infinito. Em Jesus vivenciamos Deus, experimentamos a eternidade ainda no corpo, somos completados, ele nos contem e nós contemos a ele. Jesus nos alcança para que nós o alcancemos, no toca para que nós o toquemos. Jesus morre em nós para que nós vivamos através dele.