24 de set. de 2014

22 - O beijo da morte

Saí do vernissage e fui tomar meu café, estava exausto, precisava da cafeína esquentando minhas veias e me dando algum incentivo. Não sei como eu conseguia tocar o piano, por sentimento nas melodias, sincronizar ritmo. Fazia aquilo no piloto automático, mas quando terminava o vazio me continha novamente. Era como se todos tivessem direito à felicidade, sim, eu acreditava que ela existia, mas não era pra mim. Amedrontava era a total ausência de desejo sexual, eu que já tinha sido tão desesperado por ter o corpo de uma mulher, e mais que isso, eu que me apaixonava tanto e tão facilmente, agora não queria tocar ninguém e nem ser tocado.
- Boa noite meu amigo – respondi ao motoboy que chegava.
- Só agora? – disse Raimundo pra ele.
- Nem te conto o que aconteceu – respondeu Givanildo.
- Esse endereço sempre dá zica – disse Rai.
- Zica foi pouco, ainda bem que a chuva parou – disse Giva, colocando o capacete em cima do balcão.
- Raimundo, um café, por favor – fiz meu pedido.
- Chegou mais cedo hoje? – perguntou-me Rai.
- Toquei aqui na cidade mesmo. Meu amigo, não vi mais o Breno por aqui – perguntei.
- Breno? – perguntou-me Raimundo.
- Sim – respondi, Rai foi para o fundo do bar pegar pó de café.
Três moças estavam numa mesa do bar, deveriam ter mais ou menos trinta anos de idade, portanto não eram maduras o suficiente para dizer não a uma insensatez e nem jovens o suficiente para dizer sim. Para os homens, essas são as mulheres mais difíceis de serem conquistadas, principalmente se são bem formadas e com bons empregos. Mulheres assim não precisam de homens, são eles que precisam delas, portanto elas podem escolher, isso se em algum momento são os homens que escolhem as mulheres. Se homens bonitos, bem sucedidos e experientes na arte da conquista têm dificuldades com mulheres assim, eu então era um nada para elas.
Bem, todo o raciocínio que fiz no parágrafo anterior você desconsidere, é tudo mentira, simplesmente pelo fato de que as mulheres são incompreensíveis, incontroláveis e intangíveis, eu entenderia isso naquela noite. Enquanto tomava meu café eu passei os olhos pela mesa das garotas, quando percebi que uma delas me olhou. Virei o rosto no mesmo instante, pensei, “o que uma mulher daquele naipe quereria comigo?”. Antes de pedir que Raimundo enchesse um segundo copo com café, elas se levantaram e vieram até o caixa pagar a conta.
- O café é cortesia da casa – disse a menina do caixa. Então elas pagaram a conta e encostaram-se ao balcão, ao meu lado.
- No copo ou na xícara? – perguntou Rai.
- Elas se olharam e aquela que tinha cruzado olhares comigo respondeu, xícara.
Até aquele momento eu só tinha visto os olhos da mulher que me olhava, quando elas se aproximaram eu virei para frente, concentrei-me em meu vazio e desliguei-me do mundo. Uma voz meiga e clara, com um jeito de falar bem paulistano, tremendo os erres para deixar bem claro que era da capital e não do interior do estado, me acordou de minha solidão.
- Você é aqui de Itu? – perguntou-me a mulher que antes me olhara.
- Estou aqui há algum tempo, mas não nasci aqui não – respondi um tanto o quanto seco.
- Onde fica a Fazendo do Chocolate? – perguntou-me com um sol tamanho no rosto que me fez apertar os olhos.
- Fica na estrada para Cabriúva – respondi sem perder a concentração. Raimundo veio em meu auxílio e informou à mulher.
- Aqui ao lado, naquele balcãozinho, temos folhetos com os pontos turísticos da cidade, lá tem a localização certa da Fazenda.
- Obrigado – respondeu ela.
- Com vontade de comer chocolate, amiga? – disse uma das moças.
- Está querendo sentir o gosto da paixão? – disse a outra referindo ao fato de que o chocolate causa em nosso organismo a mesma sensação que temos quando estamos apaixonados, pelo menos é isso que dizem os cientistas.
- Que coisa boa é estar apaixonado – respondeu ela, contudo, insistindo em conversar comigo fez uma nova pergunta, enquanto levantava a xícara para tomar um gole de café. – A noite está fria.
- Eu prefiro assim – respondi.
- Não tem muitos hotéis aqui na cidade – ela me disse.
- São hotéis mais simples, sem muito luxo. Vocês estão a passeio? – perguntei.
- Não, somos auditoras, já era para termos ido embora, mas o serviço no banco acabou atrasando. Reservamos o hotel e viemos aqui jantar – ela disse.
- Esse hotel aqui perto da praça? – perguntei.
- Sim – respondeu ela.
- Gosto de andar por esse centro – eu disse.
- É bem gostosa esta cidade, ruas estreitas, cheia de igrejas – a palavra gostosa na boca dela parecia tão gostosa.
- Igreja é o que mais tem aqui – constatei com certo tédio.
- Rosana, a gente já está indo – disse uma das amigas.
- Podem ir, eu já vou, pode me servir um pouco do café do bule? – disse ela a Rai que a serviu imediatamente.
Elas estavam hospedadas num hotel na rua ao lado da matriz. Acabamos de tomar o café saímos juntos, eu esperava acompanhá-la até o hotel, contudo, quando passamos pela praça eu a convidei para sentar-se um pouco, não entendi bem porque fiz aquilo, mas sentia aquela sensação de asas batendo dentro do estômago, havia alguma coisa em Rosana que me atraía.
- Já está tarde – disse ela ao meu convite.
- Aqui é tranquilo – respondi apontando para uma viatura de polícia estacionada na frente da matriz, ao lado do ponto de taxi que estava vazio.
- Você não vai me atacar, não é? – disse ela com um sorriso maroto no rosto.
- Exatamente agora não, ainda faltam cinco minutos para a meia-noite, é só então que me transformo em lobisomem – rimos os dois.
Por que parece tão fácil a gente se entender com certas pessoas? Por que a confiança é tão certa, mesmo sendo alguém um completo desconhecido? Por que Rosana tinha que despertar em mim algo que eu não queria ser naquele momento? O que era? Era ser feliz. Se eu fosse feliz perderia o direito de morrer, teria que viver e enfrentar a realidade, e mais, teria que assumir que era eu o covarde, a vida poderia ser boa sim, se eu acreditasse nisso, se eu quisesse.
Rosana tinha uma pele branca e limpa de bebê, com certeza nem precisava usar maquiagem para ser bela, nem batom eu notava em sua boca. Seu perfume era doce, do jeito que eu gostava, um cheiro natural, limpo e fresco. Olhos pequenos, sensuais, queixo delgado, cabelos lisos, castanhos escuros. Estava de roupa social, tailleur e uma aliança de brilhantes no dedo anelar da mão direita, ela deveria ser noiva, com certeza uma mulher tão linda não estaria sozinha, pensei eu. Ela pareceu ler meus pensamentos quando disse:
- Célio não gosta do interior, diz que é muito parado, adora a agitação da cidade grande, Célio é meu noivo – disse revelando o brilho forte de seus olhos miúdos, disse sem culpa, disse apenas para que eu soubesse, para que as coisas ficassem claras, sem jogos.
- Faz muito tempo que não vou à praia – não estendi o assunto do noivo, entendi o toque discreto que ela me deu.
- Preciso vir aqui com mais tempo – do banco da praça onde estávamos dava pra ver suas duas amigos na frente do hotel.
- Carpe diem – ri com uma astúcia que há tempo não tinha.
- Acho que preciso fazer mais isso – ela disse.
- O quê? – perguntei com uma falsa ingenuidade.
- Aproveitar o momento – ela disse isso, se virou no banco, segurou minhas bochechas com as mãos e beijou minha boca, um beijo curto e intenso, então, ainda segurando meu rosto, sorriu e disse:
- Não sei por que fiz isso, talvez por carência, por cansaço, ouço as meninas mais novas dizer que beijam cada final de semana um cara diferente. Eu namoro há dez anos com meu primeiro e único homem, nunca o traí, mas não sei, de um tempo pra cá ando com umas ideias. Talvez devesse acabar com o noivado, viver um pouco, conhecer outras pessoas, sair desse meu mundinho.
- Por que fez isso comigo? – respondi gaguejando.
- Confiei em você, você se parece com o professor de piano que me dava aulas na infância.
- É, eu sou pianista profissional.
- Não brinca, é verdade – ela tirou as mãos do meu rosto e começou a gargalhar, eu também ri.
- Qual a graça? – eu perguntei.
- Eu era apaixonada por ele, mas descobri, só depois de muito tempo, que ele era gay.
- Eu não sou gay.
- Espero que não.
Ela se levantou, deu alguns passos, se virou e me olhou.
- Não vai ficar com impressão errada de mim.
- Não, – respondi, ainda sem entender o que estava acontecendo – quando quiser, fique à vontade, disse com indiferença.
- E quanto você cobra por um beijo?
- Pra você faço de graça – ela riu alto.
- Me acompanha até o hotel?
- Claro.
Eu tinha dois talentos: um era tocar o piano, o outro, impressionar mulheres certas do jeito errado. Por que ela se sentiu tão à vontade comigo, a ponto de beijar um estranho, uma mulher bonita, bem qualificada profissionalmente? Talvez ela me achasse meio gay, como seu antigo professor de piano. Estava aí uma pergunta que eu me fazia, eu era gay? Será que toda a insatisfação que eu sentia com a vida, com mulheres, comigo mesmo, não estava em uma sexualidade mal resolvida? Nunca tive preconceitos com homossexuais, não me sentia menor por pensar isso de mim, ao contraio sempre invejei essa tribo pela coragem que tem de assumir seus desejos mais íntimos e enfrentar o mundo. Não, eu não era gay, nunca teria coragem para sê-lo. Eu a deixei no hotel, dei meia volta, peguei à esquerda na matriz e desci para casa.

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Depois disso, Davi retirou-se daquele lugar e fugiu para a caverna de Adulão. Quando seus irmãos e toda a casa de seu pai souberam disso, desceram ali para se encontrarem com ele.
Ajuntaram-se a ele todos os que se achavam em dificuldades, todos os endividados e todos os insatisfeitos. Ele se tornou chefe deles; cerca de quatrocentos homens o acompanhavam.”
I Samuel 22.1-2

Davi tinha uma promessa de Deus, ocupar o lugar de Saul como rei de Israel. Saul perderia seu reinado porque desobedeceu a Deus, contudo ele não aceitou Davi como rei, antes o perseguiu, tentando matá-lo. As histórias bíblicas são as metáforas perfeitas das lutas comuns a homens de todos os tempos e de todos os lugares. Quantos de nós nos vemos como Davi, possuidores de uma promessa de Deus e perseguidos por um Saul violento e injusto?
Contudo, muitas vezes ocorre de Davi e Saul, habitarem um mesmo coração, pode acontecer de nós mesmo sermos Davi e Saul, ao mesmo tempo. Enquanto parte de nós tem a certeza da vitória prometida por Deus, a outra está descrente, procurando matar os sonhos. O Senhor, em sua infinita sabedoria e transbordante misericórdia, consegue discernir esse conflito interior, auxilia o Davi sonhador e enfraquece o cético Saul, até que o plano de vitória seja realizado em nós.
O pior momento desse conflito nós vivemos quando estamos sozinhos dentro de uma caverna escura, procurando abrigo com gente solitária e amarga, tão distantes do palácio luxuoso e da posição real que o Senhor nos reserva em Cristo Jesus. Neste momento a morte até parece a solução melhor, neste momento nada de belo há em nós, neste momento a luz desaparece e nós perdemos o rumo.
Esquecemos-nos que as trevas da caverna são uma mentira, como as trevas sempre são. De tão escuras, ampliam o espaço, esticam o tempo, super dimensionam o sofrimento, mas é somente uma ilusão do mal. A caverna é pequena, basta nos levantarmos que a poucos passos alcançaremos a porta da liberdade. A luz ainda existe, e é forte, a luz da amizade de Deus, amizade que nos leva à vida, diferente daquelas amizades com as quais fazemos alianças quando estamos em fuga.
Levantemo-nos, saiamos da caverna, mesmo nossos companheiros de reclusão poderão ser abençoados por Deus se dermos um passo de fé, sim, porque Deus em sua graça salva mesmo os errados com os quais nos aliamos, aqueles ímpios que Deus nos deu como amigos, não para que nos fizessem mal, mas para que não ficássemos sozinhos. Quantos se desviam, casam-se no mundo e depois têm suas vidas, e as de seus companheiros, restauradas por Deus. Nisso não reside o plano ideal de Deus, mas uma prova de sua benevolência e de seus misteriosos caminhos.
Aquele povo sem qualidade que se uniu a Davi na caverna foi base do exército que o novo rei usaria para conquistar e manter seu reino. É assim que Deus faz, e faz na hora certa, em sua hora. Davi nunca levantou sua mão contra Saul, temeu ao Senhor e honrou quem um dia foi honrado por Deus como rei. Acredito que essa tenha sido a maior virtude de Davi, sabedor do aval de Deus não se levantou contra aquele que não aceitava esse aval, ele honrou quem não o honrou por confiar na maior de todas as honras, a do Senhor.

Então Abisai disse a Davi: Hoje Deus te entregou o teu inimigo em tuas mãos; deixa-me agora encravá-lo na terra, com a lança, em um só golpe; não o ferirei uma segunda vez. Mas Davi respondeu a Abisai: Não o mates; pois quem pode estender a mão contra o ungido do SENHOR e ficar inocente?
Davi disse mais: Assim como vive o SENHOR, ou o SENHOR o ferirá, ou chegará o seu dia e morrerá, ou descerá para a batalha e morrerá; porém o SENHOR me guarde de estender a mão contra o ungido do SENHOR. Agora, pega a lança que está à sua cabeceira, e o jarro d'água, e vamos embora.
I Samuel 26.8-11

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