26 de set. de 2014

20 - Vernissage

- Por favor, Marco Cintra está por aqui? – ouvi um cara perguntando ao recepcionista na entrada do salão. Ele era de estatura mediana, barba por fazer, mullets, um sujeito fora do padrão de moda atual que tinha a maioria das pessoas no lugar. Deveria ser mais um artista, geralmente não ligamos muito para aparência. Sua fala afetada, com a língua presa, me chamou atenção.
- Não posso dar essa informação? – respondeu o recepcionista. O homem então quis entrar ao que foi questionado – O senhor tem convite?
- Não – respondeu o homem.
- Fabrício? – gritou um cara vindo em direção à porta.
- Leninho? Tudo bom? – Heleno era o organizador do vernissage – Estou tentando entrar, mas não tenho convite – respondeu o sujeito.
- Pode liberar – disse Leninho ao recepcionista. Heleno e Fabrício seguiram até um garçom mais próximo para pegar bebidas.
Fernando Rui Souza era um cinquentão que tinha passado a vida dando aulas de Educação Artística em colégios católicos, era isso que sustentava seu atelier e suas viagens ao exterior. Não era de família tradicional da cidade ou mesmo um novo rico, mas tinha talento. Infelizmente artes plásticas só são consumidas por gente rica, é esse mercado que precisa ser persuadido a comprar um quadro. Gente rica, em sua maioria, não adquire arte, mas poder, que possa distingui-los de outros ricos. Chega-se a um ponto onde dinheiro não basta mais, é preciso algo que vá além. Trinta mil dólares poderiam ser expostos em uma sala de estar de várias formas, um quadro, todavia, dá ao seu dono uma posição social diferenciada, não só financeiramente, mas culturalmente. Contudo, não pode ser qualquer quadro, tem que ser de alguém famoso. Famoso entre quem? Entre os pares. Quem convence esses ricos que um quadro é bom o suficiente para se gastar trinta mil dólares com ele? Os críticos. Então caindo nas graças de um crítico, alguém abastado pode comprar um trabalho seu, se um comprar, outros comprarão. Fernando tinha conseguido convencer um crítico, Heleno Avancini, que seus trabalhos eram interessantes, assim ele pode fazer aquele vernissage.
De frente da maior tela da sala, Fernando tentava explicar para um casal, herdeiros de uma indústria de cervejas e refrigerantes da região, que havia nas cores espalhadas pedaços dele. Isso era literal, já que Rui misturava à tinta vermelha gramas do líquido carmesim retirado de suas veias, era uma maneira, dizia ele, de tornar sua arte original. Ele sabia usar aquela linguagem de arquiteto, onde se diz coisa nenhuma com palavras que ninguém conhece, bem, era isso o que aqueles fúteis queriam ouvir. No painel em questão, numa tela de quatro metros por três, ele havia pintado uma série de siluetas, de cores e tamanhos diferentes. O interior delas havia estava em branco, e ao redor as cores se devoravam, se confundiam, insinuavam formas fantasmagóricas que riam sarcasticamente das siluetas. Quem eram as siluetas? Aquele bando de gente rica e vazia. Os fantasmas eram as vaidades do mundo moderno, comendo e viciando as pessoas. Mas não foi essa a explicação que Fernando deu ao casal. Pobres, não sabiam que estavam querendo comprar uma piada sobre eles mesmos, assim são os falsos eruditos, estão nus e não sabem, como o rei da fábula.
Eu estava hipnotizado com o barulho, o tilintar de taças estreitas que entregavam vinho branco para bocas que entretinham os ouvidos com o som de suas próprias vozes. O vinho era tomado rapidamente para que a conversa não fosse interrompida. Existem pessoas que vivem assim, para convencer as outras através de argumentação que elas têm experiências legítimas sobre algumas coisas. Esse tipo de gente não é artista, mas ensina sobre arte, não é espiritual, mas conhece religião, não é humilde, mas se faz de caridosa, gente assim é pós-graduada em teorias, em todas elas, mas nunca conheceu nenhuma na prática. Gente assim não vive, apenas contempla a vida, flutua sobre ela, gente que não come carne, que não bebe álcool, que cultua o corpo, promove cultura, não faz mal a ninguém, mas que também não faz o bem para não se envolver com tudo aquilo que consideram medíocre demais, gente assim é sinceramente convencida que é superior às outras, gente patética.
Não a arte, mas aquilo que as pessoas entendem sobre arte, que ditam como sendo arte, que acham que se parece com arte, é isso que um vernissage atual expõe na maioria das vezes. Engano, já que o único que faz algo que se parece com arte é o falsário, o artista faz arte original, uma expressão que se transforma à medida que vai sendo materializada. Existe uma arte na alma do artista, quando ele contempla dentro de si algo que lhe é revelado, sim, porque arte genuína não é inventada, mas recebida. De onde vem? Do mundo espiritual. Essa arte recebida espiritualmente é materializada, através de sons e ritmos, pelo músico, através de cores e formas, pelo pintor e escultor. Aquela arte que o artista viu dentro de si não é a mesma que soa através das notas do piano ou que é vista num quadro ou numa escultura. O artista é homem, a inspiração é divina, o trabalho de conceber a arte é carnal tentando copiar uma manifestação do espírito. Finalmente a arte materializada é entregue aos outros, agora ela se multiplica, é diferente atrás dos olhos de cada um, alguns tentam entendê-la, outros, mais simples e generosos, sentem a arte, permitem que sons, cores ou formas tomem conta de seus sentidos e criem dentro deles uma arte espiritual, não mais a divina, mas a humana. Enfim, começa no Espírito de Deus e termina no espírito do homem, passando por tantos corpos, tomando-os, eis o trajeto da arte.
A arte não deve ser definida, nem entendida, fazer isso é matar algo que se torna material por um curto espaço de tempo, somente para que possa ser compartilhado. A arte é viva e só existe vida no espírito. Aquelas pessoas naquele lugar, contudo, pelo menos a maioria delas, queria definir a arte, aprisionar o espírito, para que somente elas pudessem ter acesso ao prazer proporcionado pela estética. Eu estava num canto da sala, através de um Yamaha de meia-cauda, assistindo a uma competição de braço de ferro entre sons e cores, entre a minha música e as telas de Fernando Rui.
Uma moça magérrima, de cabelos claros, ralos e lisos, atrás das fortes lentes de seu óculo e de uma distância considerável de tudo aquilo que se considerava intimidade, pelo menos a princípio era esse o peixe que ela vendia, encostou-se ao piano. Trajava um vestido básico longo de cor vinho, que destoava das variações de bege e marrom vestidas pela maioria, mas que harmonizava com a grande tela da sala. Vestia sapatos de saltos baixos, direito que uma mulher alta e desprovida de certas vaidades possui. Enquanto passava o dedo indicador direito sobre a boca do cristal, acompanhava meus dedos sobre as teclas. Percebi que havia alguém próximo a mim, mas continuei tocando, tinha experiência com gente esnobe, eles mantinham ao redor de si um perímetro extenso de privacidade. Já passava por minha cabeça o que ela iria dizer, elogiaria o lugar, o piano, mesmo a música, mas não emitiria opinião sobre o pianista. Na verdade, como eu já havia constatado antes, para a maioria de pessoas como ela, o pianista era uma peça a mais, que vinha para ser colocada sobre o banquinho, quando se comprava o instrumento. Isso já não me incomodava tanto como quando comecei a tocar em ambientes mais requintados.
- Lembro-me de minha infância quando ouço Chico – eu tocava “João e Maria”, burguês brasileiro adora Chico Buarque, eu gostava mais dele antes de tocar para burgueses. Chico tem um jeito nobre de falar sobre assuntos vulgares, um jeito só dele, arroz e feijão, trabalho braçal, amor errado e mal pago, na boca do Chico prostituta vira duquesa.
  - Ótimo letrista, nem precisa de harmonias muitos sofisticadas – eu respondi.
- Beatriz também é linda – divagou ela.
- Aí tem a parceria do Edu, a música brasileira chega à excelência quando junta-se Chico a Edu Lobo, a Francis Hime e é claro ao Tom, harmonia e poesia que não têm pra ninguém – falei demais e me arrependi, mas nunca consigo controlar minha ótica técnica e filosófica sobre tudo.
- Toca alguma coisa do Tom – toquei “Anos dourados”, do Chico e do Tom. Ela falava pouco e divagar, parecia entediada com o lugar, com as pessoas. Era educada e culta, deveria ter sido criada com tudo aquilo, aquilo tudo, porém, mesmo que fosse natural para ela, não a agradava.
- Não sabe um samba mais animado? – ela se soltou e me surpreendeu.
- Sei, mas a orientação que recebi e para tocar coisas mais tranquilas – respondi com um sorriso complacente no rosto, tentando não ser indelicado com ela.
- Entendo – ela riu e tomou um belo gole de vinho.
Um jovem se aproximou do piano e cumprimentou a moça.
- Samia, como está? – disse ele.
- Tudo bom, e você Marco? – respondeu ela.
- Causando, causando, minha amiga – héteros às vezes nos enganam, mas um gay é sempre verdadeiro.
- E aí, prestigiando o vernissage do namorado? – perguntou Samia.
- Pois é, ele merece – disse Marco orgulhoso.
- Como você o manteve em segredo por tanto tempo? – riu ela com a intimidade que lhe permitia um velho amigo.
- Ele é lindo, não é? – respondeu ele sem responder.
- Acho que você está apaixonado – ela o abraçou, colocando sua cabeça sobre o peito dele com carinho, ele era ainda mais alto que ela.
- Estou a fim de ficar com alguém para sempre – disse ele lançando sobre mim um olhar lascivo.
- Sempre, sempre acaba – disse ela derramando o coração ao chão através dos olhos.
- Eu sei, mas vou tentar fazer durar mais desta vez. E você e o Túlio, nada de herdeiro?
- Estamos pensando em pegar para criar – ela voltou a se proteger, afastou-se, bebeu um novo gole de vinho e acenou para um garçom.
- Eu também penso nisso, bem no meu caso só assim mesmo. Mas já entraram na fila, soube que isso demora um pouco? – respondeu ele, enquanto o garçom enchia as taças.
- Já estamos na fila há mais de um ano, mas ninguém sabe, é um assunto meio chato, principalmente para o Túlio – se era segredo para muitos, não era para o pianista, sim, eu ainda estava tocando ao piano, mas parece que para eles eu não existia. Pianista é que igual terapeuta, ouve tudo, não fala nada, a única diferença é que cobramos bem menos.
- Coisa de macho, bem, não é o meu caso. Falando nisso, cadê ele? – disse Marco com aquele sorriso malicioso, olhos caídos e sorriso blasé sempre presente no rosto de gays.
- Viajando – ela respondeu, virando o rosto, procurando no salão algo que não estava por lá.
- Vocês deveriam mudar para o exterior, passam mais tempo lá do que aqui – disse ele com certa ironia.
- Já pensamos nisso.
- Oi você, tudo bom? – disse Marco, chamando minha atenção, enquanto eu acabava de tocar um dos temas de “Fantasma da Ópera”.
- Boa noite senhor – respondi educadamente enquanto saia do manto de invisibilidade.
- Toque mais alguma de Lloyd Webber pra gente, adoro musicais, já vi “Cats” três vezes, duas na Broadway e uma vez em Londres – toquei “Memory”, eles ouviram em silêncio, aplaudiram quando terminei e então foram embora.
Comecei a tocar às sete horas da noite, fui até às onze horas, quando enfim pude comer alguma coisa. Peguei alguns salgadinhos em um prato, um copo com guaraná e me dirigi à saída dos fundos, eu precisava olhar o céu, minha vista estava carregada de notas e teclas. Havia chovido forte à tarde, mas agora a chuva tinha parado, um céu molhado deixava um ar fresco entrar nos meus pulmões. Enquanto comia ouvi uma conversa que vinha do estacionamento. A voz de Marco deu para discernir claramente, falando com outro cara.
- O que é que eu faço agora? – dizia Marco.
- Sei lá, eu estou condenado mesmo – dizia o outro cara.
- Poxa, logo agora, eu não mereço isso, mas só ficamos juntos uma vez?
- Isso pode bastar, só estou te dando um toque, faça os exames, sei lá, de repente você não pegou.
- E se eu passei pro Fernando? Ele é todo certinho, não é promíscuo como você.
- Mas bem que você gostou de mim.
- Eu estava bêbado.
- Não estava não. Bem, estou indo, lá vem ele.
O cara parece ter ido embora, eu não pude ver o que estava acontecendo, só ouvi, foi então que me lembrei do homem que queria entrar sem convite, sim, era ele quem falava com Marco, o tal do Fabrício, pelo menos tinha o mesmo jeito de falar com a língua presa.
- Vamos embora? – disse o outro cara chegando.
- Vamos Fernando – sim, era Fernando, o pintor.
Pelo que eu entendi o tal do Fabrício deveria ter sido algum caso de Marco, me pareceu que ele estava doente e poderia ter passado a doença para o Marco. Pela maneira que falaram, era algo sério, não tive certeza disso, mas poderia ser AIDS, pelo tom de voz deles.
Não consegui nem terminar o lanche, entrei, deixei o prato e o copo em cima da primeira mesa que achei e fui embora. AIDS não nos aterroriza porque mata, mas porque mata aos poucos e grita para o mundo todo que a morte foi causada por algo sujo, algo errado, um grande pecado. AIDS mata e envergonha, mesmo que muitos possam viver com ela numa condição razoável de vida, através dos coquetéis de remédios, ainda é algo estigmatizado, que agoniza a alma, antes do corpo. Um castigo? Não sei. Um extermínio planejado e direcionado aos gays? Acho que não. Mais uma doença? É o que muitos querem acreditar. Estava aí uma morte que eu não queria pra mim.
Marco, Fabrício e Fernando tinham sido meu décimo e último encontro, com certeza.

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Morre-se quando se perde o prazer pelas coisas simples, quando se esgota o prazer do corpo para tentar saciar a alma. A alma nunca será satisfeita com uísques de cinquenta anos de envelhecimento, com iguarias de luxo de ovas de esturjão, com carros italianos de quinhentos mil dólares. Variedade de parceiros sexuais e de maneiras de se obter orgasmos, fantasias e fetiches, isso também não traz paz à alma. Toda essa sofisticação leva as pessoas a uma compulsão por prazeres exóticos e antinaturais esvaziando a alma e acelerando a morte.
O que mais relaxa e satisfaz a alma humana que a natureza? Quanta paz sentimos num jardim florido? Num bosque cheio verde, recebendo na pele os raios filtrados do sol pelos galhos e folhas de árvores fortes e antigas? Isso não é melhor que diversões tecnológicas, frias e artificiais? O homem consegue criar tudo, menos a simplicidade da natureza, o panorama único que pode ser visto em cima do pico gelado de uma montanha, o canto dos pássaros, o pelo macio de um cão amigo, a nobreza de um cavalo de corrida bem tratado, um céu limpo e estrelado de outubro. Carinho não pode ser fabricado, um abraço não pode ser comprado, são coisas simples e sem preço.
Contudo, para a maioria de nós, grande parte de nosso tempo é usado para a sobrevivência, para ganhar o pão e pagar um teto para se abrigar das intempéries. Para a maioria de nós, ver as ondas do mar morrendo na praia, ouvir aquele barulho infinito das águas vindo e indo numa região litorânea menos valorizada pelo mercado imobiliário, é todo o prazer que podemos ter num período de férias, já que não podemos pagar uma viagem pelo Mediterrâneo ou pelas melhores praias da América Central ou da Ásia.
A carne se tornou uma grande armadilha quando o homem pecou e se afastou de Deus, e eu não estou me referindo a Adão, mas a cada um de nós. Num determinado momento da vida nós cometemos o nosso primeiro pecado, algo que desagrada a Deus e que nos enche de culpa. Nesse momento deixamos de ser crianças inocentes e nos tornamos adultos, mesmo que na maioria das vezes ainda em corpos adolescentes. Se dermos vazão à fome insaciável da carne por prazer, ela nunca se sentirá satisfeita, sempre desejará mais. Portanto, tentar achar razão para vier saciando a carne é um poço sem fundo.
Então concluímos aquilo que o evangelho nos ensina em Lucas 18.25, “Pois é mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no reino de Deus.”. Por quê? Porque um pobre está limitado por sua própria condição financeira de ficar viciado nos prazeres da carne, pelo menos nos mais caros. Um pobre está mais próximo que um rico do equilíbrio entre a carne e o espírito, já que não pode comprar tudo o que deseja, assim ele pode entender mais facilmente que as virtudes do espírito, oferecidas graciosamente por Deus, são melhores que os vícios da carne.
Contudo, é preciso entender que deve haver equilíbrio, só na eternidade, em um corpo transformado, é que ficaremos livres da carne. Nesse mundo é preciso conviver com ele, pois assim como é equivocado o princípio de que felicidade é saciar os desejos da carne, também é uma armadilha achar que é possível satisfação completa vivenciando somente os valores espirituais. Se viver pela carne é ser levado cativo por um furacão, viver só pelo espírito é correr atrás do vento. Nesse engano muitos escravizam o corpo em religiões que tentam privar a carne de seus apetites, não, isso não é a vontade de Deus para ninguém. Viver como monges celibatários desprovidos de estética exterior é um engodo, além de ser inviável e desnecessário.
O desafio de viver e de experimentar a Deus nesse mundo está em nivelar o corpo e o espírito, sem extremos, com alegria e paz. Para isso nascemos, estudamos, somos criados em uma família amorosa, nos tornamos jovens, escolhemos profissões, fazemos opções morais e sociais, amadurecemos, criamos filhos, nos alegramos com netos, envelhecemos bem. Talvez nesse final de vida, quando a carne está naturalmente saciada, ou cansada, podemos enfim entender o que é vida no espírito, prazer nas coisas eternas e incorruptíveis. Nesse momento estamos realmente próximos do homem espiritual que Deus deseja que sejamos, mais prontos para viver toda uma eternidade com o Senhor.

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