- Por favor, Marco
Cintra está por aqui? – ouvi um cara perguntando ao recepcionista na entrada do
salão. Ele era de estatura mediana, barba por fazer, mullets, um sujeito fora
do padrão de moda atual que tinha a maioria das pessoas no lugar. Deveria ser mais
um artista, geralmente não ligamos muito para aparência. Sua fala afetada, com
a língua presa, me chamou atenção.
- Não posso dar
essa informação? – respondeu o recepcionista. O homem então quis entrar ao que
foi questionado – O senhor tem convite?
- Não – respondeu o
homem.
- Fabrício? –
gritou um cara vindo em direção à porta.
- Leninho? Tudo
bom? – Heleno era o organizador do vernissage – Estou tentando entrar, mas não
tenho convite – respondeu o sujeito.
- Pode liberar –
disse Leninho ao recepcionista. Heleno e Fabrício seguiram até um garçom mais
próximo para pegar bebidas.
Fernando Rui Souza
era um cinquentão que tinha passado a vida dando aulas de Educação Artística em
colégios católicos, era isso que sustentava seu atelier e suas viagens ao
exterior. Não era de família tradicional da cidade ou mesmo um novo rico, mas
tinha talento. Infelizmente artes plásticas só são consumidas por gente rica, é
esse mercado que precisa ser persuadido a comprar um quadro. Gente rica, em sua
maioria, não adquire arte, mas poder, que possa distingui-los de outros ricos.
Chega-se a um ponto onde dinheiro não basta mais, é preciso algo que vá além.
Trinta mil dólares poderiam ser expostos em uma sala de estar de várias formas,
um quadro, todavia, dá ao seu dono uma posição social diferenciada, não só
financeiramente, mas culturalmente. Contudo, não pode ser qualquer quadro, tem
que ser de alguém famoso. Famoso entre quem? Entre os pares. Quem convence
esses ricos que um quadro é bom o suficiente para se gastar trinta mil dólares
com ele? Os críticos. Então caindo nas graças de um crítico, alguém abastado
pode comprar um trabalho seu, se um comprar, outros comprarão. Fernando tinha
conseguido convencer um crítico, Heleno Avancini, que seus trabalhos eram
interessantes, assim ele pode fazer aquele vernissage.
De frente da maior
tela da sala, Fernando tentava explicar para um casal, herdeiros de uma
indústria de cervejas e refrigerantes da região, que havia nas cores espalhadas
pedaços dele. Isso era literal, já que Rui misturava à tinta vermelha gramas do
líquido carmesim retirado de suas veias, era uma maneira, dizia ele, de tornar
sua arte original. Ele sabia usar aquela linguagem de arquiteto, onde se diz
coisa nenhuma com palavras que ninguém conhece, bem, era isso o que aqueles
fúteis queriam ouvir. No painel em questão, numa tela de quatro metros por
três, ele havia pintado uma série de siluetas, de cores e tamanhos diferentes. O
interior delas havia estava em branco, e ao redor as cores se devoravam, se
confundiam, insinuavam formas fantasmagóricas que riam sarcasticamente das
siluetas. Quem eram as siluetas? Aquele bando de gente rica e vazia. Os
fantasmas eram as vaidades do mundo moderno, comendo e viciando as pessoas. Mas
não foi essa a explicação que Fernando deu ao casal. Pobres, não sabiam que
estavam querendo comprar uma piada sobre eles mesmos, assim são os falsos
eruditos, estão nus e não sabem, como o rei da fábula.
Eu estava
hipnotizado com o barulho, o tilintar de taças estreitas que entregavam vinho
branco para bocas que entretinham os ouvidos com o som de suas próprias vozes.
O vinho era tomado rapidamente para que a conversa não fosse interrompida.
Existem pessoas que vivem assim, para convencer as outras através de
argumentação que elas têm experiências legítimas sobre algumas coisas. Esse
tipo de gente não é artista, mas ensina sobre arte, não é espiritual, mas
conhece religião, não é humilde, mas se faz de caridosa, gente assim é
pós-graduada em teorias, em todas elas, mas nunca conheceu nenhuma na prática.
Gente assim não vive, apenas contempla a vida, flutua sobre ela, gente que não
come carne, que não bebe álcool, que cultua o corpo, promove cultura, não faz
mal a ninguém, mas que também não faz o bem para não se envolver com tudo
aquilo que consideram medíocre demais, gente assim é sinceramente convencida que
é superior às outras, gente patética.
Não a arte, mas
aquilo que as pessoas entendem sobre arte, que ditam como sendo arte, que acham
que se parece com arte, é isso que um vernissage atual expõe na maioria das
vezes. Engano, já que o único que faz algo que se parece com arte é o falsário,
o artista faz arte original, uma expressão que se transforma à medida que vai
sendo materializada. Existe uma arte na alma do artista, quando ele contempla
dentro de si algo que lhe é revelado, sim, porque arte genuína não é inventada,
mas recebida. De onde vem? Do mundo espiritual. Essa arte recebida
espiritualmente é materializada, através de sons e ritmos, pelo músico, através
de cores e formas, pelo pintor e escultor. Aquela arte que o artista viu dentro
de si não é a mesma que soa através das notas do piano ou que é vista num
quadro ou numa escultura. O artista é homem, a inspiração é divina, o trabalho
de conceber a arte é carnal tentando copiar uma manifestação do espírito.
Finalmente a arte materializada é entregue aos outros, agora ela se multiplica,
é diferente atrás dos olhos de cada um, alguns tentam entendê-la, outros, mais
simples e generosos, sentem a arte, permitem que sons, cores ou formas tomem
conta de seus sentidos e criem dentro deles uma arte espiritual, não mais a
divina, mas a humana. Enfim, começa no Espírito de Deus e termina no espírito
do homem, passando por tantos corpos, tomando-os, eis o trajeto da arte.
A arte não deve ser
definida, nem entendida, fazer isso é matar algo que se torna material por um
curto espaço de tempo, somente para que possa ser compartilhado. A arte é viva
e só existe vida no espírito. Aquelas pessoas naquele lugar, contudo, pelo
menos a maioria delas, queria definir a arte, aprisionar o espírito, para que
somente elas pudessem ter acesso ao prazer proporcionado pela estética. Eu
estava num canto da sala, através de um Yamaha de meia-cauda, assistindo a uma
competição de braço de ferro entre sons e cores, entre a minha música e as
telas de Fernando Rui.
Uma moça magérrima,
de cabelos claros, ralos e lisos, atrás das fortes lentes de seu óculo e de uma
distância considerável de tudo aquilo que se considerava intimidade, pelo menos
a princípio era esse o peixe que ela vendia, encostou-se ao piano. Trajava um
vestido básico longo de cor vinho, que destoava das variações de bege e marrom
vestidas pela maioria, mas que harmonizava com a grande tela da sala. Vestia
sapatos de saltos baixos, direito que uma mulher alta e desprovida de certas
vaidades possui. Enquanto passava o dedo indicador direito sobre a boca do
cristal, acompanhava meus dedos sobre as teclas. Percebi que havia alguém
próximo a mim, mas continuei tocando, tinha experiência com gente esnobe, eles
mantinham ao redor de si um perímetro extenso de privacidade. Já passava por
minha cabeça o que ela iria dizer, elogiaria o lugar, o piano, mesmo a música,
mas não emitiria opinião sobre o pianista. Na verdade, como eu já havia
constatado antes, para a maioria de pessoas como ela, o pianista era uma peça a
mais, que vinha para ser colocada sobre o banquinho, quando se comprava o
instrumento. Isso já não me incomodava tanto como quando comecei a tocar em
ambientes mais requintados.
- Lembro-me de
minha infância quando ouço Chico – eu tocava “João e Maria”, burguês brasileiro
adora Chico Buarque, eu gostava mais dele antes de tocar para burgueses. Chico
tem um jeito nobre de falar sobre assuntos vulgares, um jeito só dele, arroz e
feijão, trabalho braçal, amor errado e mal pago, na boca do Chico prostituta
vira duquesa.
- Ótimo letrista, nem precisa de harmonias
muitos sofisticadas – eu respondi.
- Beatriz também é
linda – divagou ela.
- Aí tem a parceria
do Edu, a música brasileira chega à excelência quando junta-se Chico a Edu Lobo,
a Francis Hime e é claro ao Tom, harmonia e poesia que não têm pra ninguém –
falei demais e me arrependi, mas nunca consigo controlar minha ótica técnica e
filosófica sobre tudo.
- Toca alguma coisa
do Tom – toquei “Anos dourados”, do Chico e do Tom. Ela falava pouco e divagar,
parecia entediada com o lugar, com as pessoas. Era educada e culta, deveria ter
sido criada com tudo aquilo, aquilo tudo, porém, mesmo que fosse natural para
ela, não a agradava.
- Não sabe um samba
mais animado? – ela se soltou e me surpreendeu.
- Sei, mas a
orientação que recebi e para tocar coisas mais tranquilas – respondi com um
sorriso complacente no rosto, tentando não ser indelicado com ela.
- Entendo – ela riu
e tomou um belo gole de vinho.
Um jovem se
aproximou do piano e cumprimentou a moça.
- Samia, como está?
– disse ele.
- Tudo bom, e você
Marco? – respondeu ela.
- Causando,
causando, minha amiga – héteros às vezes nos enganam, mas um gay é sempre
verdadeiro.
- E aí,
prestigiando o vernissage do namorado? – perguntou Samia.
- Pois é, ele
merece – disse Marco orgulhoso.
- Como você o
manteve em segredo por tanto tempo? – riu ela com a intimidade que lhe permitia
um velho amigo.
- Ele é lindo, não
é? – respondeu ele sem responder.
- Acho que você
está apaixonado – ela o abraçou, colocando sua cabeça sobre o peito dele com
carinho, ele era ainda mais alto que ela.
- Estou a fim de
ficar com alguém para sempre – disse ele lançando sobre mim um olhar lascivo.
- Sempre, sempre
acaba – disse ela derramando o coração ao chão através dos olhos.
- Eu sei, mas vou
tentar fazer durar mais desta vez. E você e o Túlio, nada de herdeiro?
- Estamos pensando
em pegar para criar – ela voltou a se proteger, afastou-se, bebeu um novo gole de
vinho e acenou para um garçom.
- Eu também penso
nisso, bem no meu caso só assim mesmo. Mas já entraram na fila, soube que isso
demora um pouco? – respondeu ele, enquanto o garçom enchia as taças.
- Já estamos na
fila há mais de um ano, mas ninguém sabe, é um assunto meio chato,
principalmente para o Túlio – se era segredo para muitos, não era para o
pianista, sim, eu ainda estava tocando ao piano, mas parece que para eles eu
não existia. Pianista é que igual terapeuta, ouve tudo, não fala nada, a única
diferença é que cobramos bem menos.
- Coisa de macho,
bem, não é o meu caso. Falando nisso, cadê ele? – disse Marco com aquele
sorriso malicioso, olhos caídos e sorriso blasé sempre presente no rosto de
gays.
- Viajando – ela
respondeu, virando o rosto, procurando no salão algo que não estava por lá.
- Vocês deveriam
mudar para o exterior, passam mais tempo lá do que aqui – disse ele com certa
ironia.
- Já pensamos
nisso.
- Oi você, tudo
bom? – disse Marco, chamando minha atenção, enquanto eu acabava de tocar um dos
temas de “Fantasma da Ópera”.
- Boa noite senhor
– respondi educadamente enquanto saia do manto de invisibilidade.
- Toque mais alguma
de Lloyd Webber pra gente, adoro musicais, já vi “Cats” três vezes, duas na
Broadway e uma vez em Londres – toquei “Memory”, eles ouviram em silêncio, aplaudiram
quando terminei e então foram embora.
Comecei a tocar às sete
horas da noite, fui até às onze horas, quando enfim pude comer alguma coisa.
Peguei alguns salgadinhos em um prato, um copo com guaraná e me dirigi à saída
dos fundos, eu precisava olhar o céu, minha vista estava carregada de notas e
teclas. Havia chovido forte à tarde, mas agora a chuva tinha parado, um céu
molhado deixava um ar fresco entrar nos meus pulmões. Enquanto comia ouvi uma
conversa que vinha do estacionamento. A voz de Marco deu para discernir
claramente, falando com outro cara.
- O que é que eu
faço agora? – dizia Marco.
- Sei lá, eu estou
condenado mesmo – dizia o outro cara.
- Poxa, logo agora,
eu não mereço isso, mas só ficamos juntos uma vez?
- Isso pode bastar,
só estou te dando um toque, faça os exames, sei lá, de repente você não pegou.
- E se eu passei
pro Fernando? Ele é todo certinho, não é promíscuo como você.
- Mas bem que você
gostou de mim.
- Eu estava bêbado.
- Não estava não.
Bem, estou indo, lá vem ele.
O cara parece ter
ido embora, eu não pude ver o que estava acontecendo, só ouvi, foi então que me
lembrei do homem que queria entrar sem convite, sim, era ele quem falava com
Marco, o tal do Fabrício, pelo menos tinha o mesmo jeito de falar com a língua
presa.
- Vamos embora? –
disse o outro cara chegando.
- Vamos Fernando –
sim, era Fernando, o pintor.
Pelo que eu entendi
o tal do Fabrício deveria ter sido algum caso de Marco, me pareceu que ele
estava doente e poderia ter passado a doença para o Marco. Pela maneira que
falaram, era algo sério, não tive certeza disso, mas poderia ser AIDS, pelo tom
de voz deles.
Não consegui nem
terminar o lanche, entrei, deixei o prato e o copo em cima da primeira mesa que
achei e fui embora. AIDS não nos aterroriza porque mata, mas porque mata aos
poucos e grita para o mundo todo que a morte foi causada por algo sujo, algo
errado, um grande pecado. AIDS mata e envergonha, mesmo que muitos possam viver
com ela numa condição razoável de vida, através dos coquetéis de remédios,
ainda é algo estigmatizado, que agoniza a alma, antes do corpo. Um castigo? Não
sei. Um extermínio planejado e direcionado aos gays? Acho que não. Mais uma
doença? É o que muitos querem acreditar. Estava aí uma morte que eu não queria
pra mim.
Marco, Fabrício e
Fernando tinham sido meu décimo e último encontro, com certeza.
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Morre-se quando se
perde o prazer pelas coisas simples, quando se esgota o prazer do corpo para
tentar saciar a alma. A alma nunca será satisfeita com uísques de cinquenta
anos de envelhecimento, com iguarias de luxo de ovas de esturjão, com carros
italianos de quinhentos mil dólares. Variedade de parceiros sexuais e de
maneiras de se obter orgasmos, fantasias e fetiches, isso também não traz paz à
alma. Toda essa sofisticação leva as pessoas a uma compulsão por prazeres exóticos
e antinaturais esvaziando a alma e acelerando a morte.
O que mais relaxa e
satisfaz a alma humana que a natureza? Quanta paz sentimos num jardim florido?
Num bosque cheio verde, recebendo na pele os raios filtrados do sol pelos
galhos e folhas de árvores fortes e antigas? Isso não é melhor que diversões
tecnológicas, frias e artificiais? O homem consegue criar tudo, menos a
simplicidade da natureza, o panorama único que pode ser visto em cima do pico
gelado de uma montanha, o canto dos pássaros, o pelo macio de um cão amigo, a
nobreza de um cavalo de corrida bem tratado, um céu limpo e estrelado de
outubro. Carinho não pode ser fabricado, um abraço não pode ser comprado, são
coisas simples e sem preço.
Contudo, para a
maioria de nós, grande parte de nosso tempo é usado para a sobrevivência, para
ganhar o pão e pagar um teto para se abrigar das intempéries. Para a maioria de
nós, ver as ondas do mar morrendo na praia, ouvir aquele barulho infinito das
águas vindo e indo numa região litorânea menos valorizada pelo mercado
imobiliário, é todo o prazer que podemos ter num período de férias, já que não
podemos pagar uma viagem pelo Mediterrâneo ou pelas melhores praias da América
Central ou da Ásia.
A carne se tornou
uma grande armadilha quando o homem pecou e se afastou de Deus, e eu não estou
me referindo a Adão, mas a cada um de nós. Num determinado momento da vida nós
cometemos o nosso primeiro pecado, algo que desagrada a Deus e que nos enche de
culpa. Nesse momento deixamos de ser crianças inocentes e nos tornamos adultos,
mesmo que na maioria das vezes ainda em corpos adolescentes. Se dermos vazão à
fome insaciável da carne por prazer, ela nunca se sentirá satisfeita, sempre
desejará mais. Portanto, tentar achar razão para vier saciando a carne é um
poço sem fundo.
Então concluímos
aquilo que o evangelho nos ensina em Lucas 18.25, “Pois é mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha do que um
rico entrar no reino de Deus.”. Por quê? Porque um pobre está limitado por
sua própria condição financeira de ficar viciado nos prazeres da carne, pelo
menos nos mais caros. Um pobre está mais próximo que um rico do equilíbrio
entre a carne e o espírito, já que não pode comprar tudo o que deseja, assim
ele pode entender mais facilmente que as virtudes do espírito, oferecidas
graciosamente por Deus, são melhores que os vícios da carne.
Contudo, é preciso
entender que deve haver equilíbrio, só na eternidade, em um corpo transformado,
é que ficaremos livres da carne. Nesse mundo é preciso conviver com ele, pois
assim como é equivocado o princípio de que felicidade é saciar os desejos da
carne, também é uma armadilha achar que é possível satisfação completa vivenciando
somente os valores espirituais. Se viver pela carne é ser levado cativo por um
furacão, viver só pelo espírito é correr atrás do vento. Nesse engano muitos
escravizam o corpo em religiões que tentam privar a carne de seus apetites,
não, isso não é a vontade de Deus para ninguém. Viver como monges celibatários
desprovidos de estética exterior é um engodo, além de ser inviável e
desnecessário.
O desafio de viver
e de experimentar a Deus nesse mundo está em nivelar o corpo e o espírito, sem
extremos, com alegria e paz. Para isso nascemos, estudamos, somos criados em
uma família amorosa, nos tornamos jovens, escolhemos profissões, fazemos opções
morais e sociais, amadurecemos, criamos filhos, nos alegramos com netos,
envelhecemos bem. Talvez nesse final de vida, quando a carne está naturalmente
saciada, ou cansada, podemos enfim entender o que é vida no espírito, prazer
nas coisas eternas e incorruptíveis. Nesse momento estamos realmente próximos
do homem espiritual que Deus deseja que sejamos, mais prontos para viver toda uma
eternidade com o Senhor.
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