- Givanildo, uma
parmegiana no Terras – disse Rai ao motoboy.
- Esse endereço? É
aquele que pede e quando a gente chega à portaria, ninguém atende, já aconteceu
isso duas vezes – disse Giva, pronto para a viagem no início da noite do sábado.
Dizem que motoboy é
a última tentativa decente de serviço antes de se cair na marginalidade, mas não
era o caso de Giva. Ele tinha trabalho fixo e fazia entregas aos sábados e
domingos, quando o turno permitia, para aumentar a renda. A mulher estava
grávida do primeiro filho e havia parado de trabalhar, eles não tinham com quem
contar na cidade, os parentes moravam longe. Giva se dobrava para se manter
trabalhador honesto, mesmo que às vezes fosse tentado por amigos próximos a
ganhar dinheiro fácil com meios ilícitos.
Fazer entregas naquela
chuva ninguém merecia, também ninguém queria sair de casa com aquele tempo,
então motoboy faturava bastante. Giva foi devagar, os paralelepípedos estavam
escorregadios, ele já tinha se acidentado algumas vezes, motoqueiro nenhum se
livra disso, mesmo tomando todo o cuidado do mundo.
- Entrega do Lu&Toni...
– Givanildo passou o endereço ao porteiro que interfonou. A ligação demorou um
pouco para ser atendida, mas enfim a pessoa atendeu e ele teve a permissão para
entrar no condomínio.
Estes condomínios
modernos pretendem proteger os ricos dos bandidos, mas não os livram da
violência interna presente na classe que se preocupa tanto com valores
materiais quanto os marginais, talvez porque também sejam marginais. Talvez a
classe média ainda esteja protegida no fio da navalha por onde ela anda, entre
a prosperidade que lhe dá acesso à cultura e a uma sobrevivência mais
confortável, e aos valores morais que ainda importam a quem sabe o preço das
coisas assim como sabe que muitas outras coisas não têm preço. A classe alta pensa
poder comprar tudo, achando-se o alto extremo da sociedade acaba se portando da
mesma maneira que o baixo extremo, que se distancia das virtudes pensando que
tudo o que pode ser comprado também pode ser arrancado à força, sem pagar
nenhum preço.
Gláucia era uma
solitária de quarenta e cinco anos, que tinha se casado depois dos trinta, tido
um filho e se separado logo em seguida. Bem, tinha sido o suficiente para ter
uma boa pensão paga pelo ex-marido, com direito a carro trocado todo ano e uma
boa casa num condomínio de luxo. Gláucia era o tipo de mulher que não era pra
casar, filha única de um funcionário público, teve boa educação, em colégios
particulares de alto nível, mas o que o pai ganhava nunca foi suficiente para
acompanhar o estilo de vida dos colegas. Ela não queria um marido, mas um pai
mais rico, foi isso que conseguiu tendo um caso com o patrão, que se divorciou
para ficar com ela. Tolo, ela só queria tempo para dispensá-lo e obter uma
mesada que desse a ela a boa vida que suas amigas sempre tiveram.
Agora ela estava,
num sábado chuvoso, carente por companhia masculina. Givanildo apertou a
campainha e esperou. Lá na frente, depois de um lindo gramado de uma casa que
dispensava muros, abriu-se a fresta de uma porta. Ele já havia feito algumas
entregas antes naquela casa, mas nunca no sábado, eram durante a semana e quem
vinha atender era um adolescente de treze anos.
- Por favor, venha
até aqui – disse Gláucia para Givanildo. A chuva não dava trégua, ele
atravessou o gramado e foi até a porta.
Gláucia estava de
roupão de banho, cabelos molhados e descalça. Com uma olheira enorme, falou com
a voz rouca e ainda carregada de preguiça, ela tinha acordado às duas horas da
tarde, tomado um café, e ia fazer do jantar sua primeira refeição. Não dormiria
cedo, vararia a madrugada assistindo televisão na companhia de uma garrafa de
scoth. O filho ainda não havia chegado da noite de sexta-feira.
- Vou pegar o
cartão – disse ela, depois de pegar a embalagem com a comida. Debaixo da chuva
Giva acenou com a cabeça sem prestar muita atenção à mulher.
Ela demorava-se
para voltar, à porta, ele estava encharcado, dentro de casa, ela gritou:
- Está chovendo, se
quiser pode entrar – ele não gostava de fazer isso, gente rica sempre quer
distância, além do mais uma mulher sozinha representava o tipo de b.o. que ele
não queria. Como ela se demorava, ele resolveu entrar, ele a viu saindo do
corredor que dava acesso aos quartos e indo à cozinha.
- Pode se sentar –
ela insistiu.
Só naquela sala
cabia a casa toda de Givanildo, dois jogos de sofás, pequenas mesas espalhadas
por todo o ambiente, um piano de armário branco, quadros enormes que não diziam
nada para o motoboy. No meio de tanta informação e cor, ele sentiu falta da
televisão, “ricos não colocam televisão na sala”, pensou ele.
- Meu Deus, não
acho meu cartão – disse a mulher.
- Tudo bem, eu
espero – respondeu Giva.
- Aquele moleque
fez de novo, pegou meu cartão de crédito – ele estava se referindo ao filho,
ele entendeu.
Gláucia pegou o
celular, “droga, está descarregado”, disse ela, então pegou o fixo e ligou para
o filho. Enquanto Gláucia gritava com o menino, a mãe natureza deu um berro mais
alto ainda. Um raio atingiu a casa e a descarga elétrica passou pelo fio do
telefone e atingiu a mulher. Ela gritou e caiu ao chão, desacordada, as
lâmpadas se apagaram. No escuro, Giva correu para socorrer Gláucia que estava
deitada de lado, ele a colocou de frente, achou que ela estivesse morta. “Meu
Deus, essa mulher morreu aqui comigo”, pensou ele, mas recobrando a
consciência, ela suspirou fundo e abriu os olhos. Ajoelhado no chão ele
segurava a cabeça de Gláucia com as mãos.
- Minha senhora? –
disse Givanildo – Minha senhora? – insistiu ele.
- O que houve? –
disse ela mais sonolenta que antes.
- Um raio, deve ter
atingido a instalação telefônica – disse ele.
- Estou bem – disse
ela.
- Tem certeza? –
perguntou o motoboy.
- Acho que sim –
ela disse, sentando-se no chão.
Ele ajudou-a a se
levantar e a se sentar no sofá. Ela se encostou e respirou fundo, com os olhos
parados no teto. Outro trovão iluminou a sala e enquanto ela se refazia a porta
se abriu e entrou um adolescente todo molhado.
- Tiago, onde você
estava? – gritou ela, se levantando.
- Fui ao shopping –
disse o garoto.
- Sempre te dou
dinheiro pra isso – disse Gláucia.
- Não muito –
ironizou Tiago.
- O suficiente,
então por que você pegou meu cartão? – perguntou a mãe. – Me devolva-o, preciso
pagar a comida.
Giva pegou o cartão
e passou-o na máquina, uma vez, duas vezes, passou como débito, depois tentou
como crédito, e nada, não havia saldo suficiente ou havia chuva demais. O
garoto virou as costas e seguiu em direção aos quartos quando a mãe o chamou:
- Tiago, volta aqui.
Você tirou dinheiro no banco?
- Não – respondeu
ele.
- Claro que tirou,
está sem saldo.
- Mãe, já estava
estourado quando peguei, lembra-se dos três pares de sapatos que você comprou
na sexta-feira?
- Pode ser a chuva
– disse Givanildo.
- Mas ainda deveria
ter pelo menos para pagar essa comida, você tirou dinheiro no caixa, não tirou?
– disse a mulher.
- Tirei, mãe.
- Pra quê?
- Pra pagar a
pizza.
- Você saiu com
trezentos reais de casa, dava muito bem pra pagar o cinema e a pizza.
- Mas não deu.
- Tiago, o que você
fez com o dinheiro?
- Nada, mãe.
- Você comprou
drogas?
- Não, mãe... –
disse ele um não, não muito convincente.
- Deixa-me ver esta
mochila...
- Não precisa mãe.,,
- Deixa-me ver...
Ela pegou a mochila
do garoto, virou-a de ponta-cabeça e o conteúdo veio ao chão. Quando bateu nos
tacos, fez um barulho alto e agudo, era um revólver, Gláucia se desesperou.
- Tiago, o que você
está fazendo com isso?
- A gente só queria
dar uns tiros...
- Você está louco?!
– ela começou a chorar.
- Mãe, não faz
drama, a gente foi até a chácara do pai do Léozinho pra dar uns tiros, ninguém
se machucou... – e era só aquilo mesmo, o garoto só queria um brinquedo novo.
- Mas quem te
vendeu isso?
- Uns manos do
Gabriel...
- Falei pra você
não andar mais com esse menino, ele foi expulso do colégio, o pai o colocou no
colégio do estado, ele é má companhia...
- Ele sabe das
coisas mãe...
Givanildo assistia
tudo calado.
- Moço, estou sem
dinheiro, me faz um favor, some com este negócio daqui – disse Gláucia, dando o
revólver para o Giva.
O motoboy pegou a
arma, colocou-a no bolso interno do macacão de plástico e foi embora. A chuva tinha
diminuído, ele ainda olhou o poste em frente da casa e viu a fumaça que saía. “Vou
levar carcada do chefe, tanto tempo para fazer uma entrega”, pensou ele.
Givanildo nunca foi
bandido, mas vivia próximo a eles, passou por sua cabeça a ideia de que poderia
vender a arma e ganhar alguma grana. Por outro lado, ele não queria ficar
andando com aquele “buldogue”, quando passou pela praça e viu, lá no coreto, uma
amiga, a possibilidade parecia virar realidade, foi tudo tão rápido que ele nem
pensou duas vezes.
Giva a conhecia a
menina das ruas, não sabia onde ela morava, não sabia seu sobrenome, mas tinha
por ela a consideração que os habitantes das ruas têm uns pelos outros. Dizem
que quando algo é para acontecer todo o universo conspira a favor, pois bem,
minha morte estava sendo arquitetada pelo deus desse mundo.
- E aí menina –
disse Giva, o gorro molhado do moletom matinha a moça longe do mundo.
- Fala aí “véio” –
disse a moça, encurvando a cabeça e dando seu meio sorriso.
- Então, tenho um
bagulho aqui, sei lá, pode interessar a alguém – ele disse abrindo a parte de
cima do macacão e mostrando o revólver.
- Oh loco, sabe que
não transo essas coisas – ela falou uma coisa, mas pensou outra, e rapidamente
manifestou isso.
- Se souber de
alguém, me dá um toque – disse o motoboy.
- Espera aí, quanto
você quer?
- Um pau.
- Me aluga, te
devolvo na segunda-feira...
- Nem sei quanto é
pra alugar...
- Dou duzentinho.
- Está feito.
- Mas só vou pagar só
na semana que vem – disse ela.
Eles não perceberam,
mas outra menina, conhecida deles, estava atrás de uma árvore, próxima a eles, ela
viu a arma sendo passada de mãos.
Givanildo nem ficou
satisfeito com a grana que poderia ganhar, ficou foi tranquilo com o fato de
poder ter se livrado da arma. “Quer saber, nem vou pegar isso de volta, que
fique com ela”, ele pensou. Ele seguiu mais meia quadra e estacionou a moto.
“Esse cara não sai daqui, toma café duas vezes por dia”, disse pra si mesmo o
motoboy com relação ao esquisitão de terno e gravada que estava no balcão, “mas
ele é boa gente, só meio esquisito”, terminou de refletir.
- Boa noite seu
Zé...
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Coincidências,
destino, quem está nas mãos de quem? Quem conspira contra quem? Aquilo que se
quer, que se quer muito, acaba se conseguindo. Quando alguém quer muito morrer
e outro alguém deseja matar, pouca coisa precisa ser feita para que ambos os
desejos sejam satisfeitos num sincronismo cósmico.
Casamentos de anos
de duração são constituídos em cima desse princípio sado-masoquista de amor às
avessas. Gente que só se sente valorizada quando é controlada se aliança à
gente que pensa que amar é controlar. Gente insegura, que se acostumou com
violência como única manifestação de proximidade, que se casa com gente
insegura, que precisa moldar a pessoa a sua imagem, como se fosse um deus, para
ter segurança de afeto, mais que afeto, de adoração.
Sim, se morre sem
levar um tiro e se mata sem disparar um, facetas distorcidas de almas de homens
e mulheres sem Deus. É necessário todo um reaprendizado para se aprender a amar
e a ser amado, um reaprendizado com Deus. Isso não se processa assim, de um dia
para o outro. As distorções que foram forjadas nos corações por anos, só são
endireitadas por anos de cura, reaceitação do que se é, perdão concedido a quem
causou as distorções, até que se possa ver as coisas da maneira certa.
Infelizmente não
conseguimos nos colocar num estado de neutralidade enquanto a cura é processada.
Não existe quarto de hospital para muitas das doenças que o ser humano contrai,
principalmente para as afetivas. Não conseguimos manter uma distância segura de
outras almas, muitas vezes tão ou mais machucadas que nós, para que possamos
ser curados. Então, nesse processo, adicionamos erros nossos aos erros dos
outros. Mas aquele que caminha com Deus, experimenta o milagre do amor de um
verdadeiro pai. Esse amor nos protege de nós mesmos, e mesmo os novos erros são
tratados e usados por Deus de uma forma positiva.
É preciso paciência
da igreja, se Deus continua o mesmo e sempre o será, assim não é o homem
moderno. O homem dificulta sua vida quando a torna muito mais complicada do que
é. Somente uma atitude de misericórdia que caminha junto, às vezes por anos,
aconselhando, amando, esperando em Deus pelas mudanças, é que pode ver se
realizar o evangelho de forma eficaz nas vidas de homens e mulheres. Isso não é
de forma alguma desacreditar em milagres, mas é entender a manifestação de Deus
de forma madura. Um processo de cura de anos pode ser mais útil a Deus que a
manifestação instantânea de um milagre.
“Porque Deus não nos deu espírito de
covardia, mas de poder, de amor e de moderação.”
II Timóteo 1.7
Esse versículo
sintetiza as disposições que são realizadas em nós através do Espírito Santo,
assim como maneiras diferentes de Deus agir em nossos corações:
o poder espetacular
do milagre instantâneo;
o processo do amor
que anda junto com temor esperando com paciência pelas decisões humanas e pelo
maneira original que Deus age com cada pessoa;
e a sabedoria que
nos dá moderação para saber quando uma cura imediata dever ser experimentada e
quando um procedimento mais lento precisa ser vivido.
Em todas essas
disposições é preciso coragem para se estar em Deus, animados e consolados, com
alegria e paz, confiantes de que Deus atua como e quando ele quer, segundo seus
propósitos e mistérios.
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