17 de set. de 2014

29 - "Que queres que te faça?"

Pessoas comuns, mas bem vestidas, como que para uma festa. Crianças, jovens, homens, mulheres, idosos, cadeirantes, até surdos numa ala especial com uma tradutora de libras. Todos eram tratados de maneira especial, com proximidade, com alegria, tão diferente das celebrações católicas que eu tinha ido.
A igreja católica é algo que nos acompanha de longe durante a nossa vida. De alguma maneira sempre nos envolvemos com ela, mas ela é tão distante quanto o deus que ela prega. Mas enquanto num templo romanista os símbolos cristãos são adorados e ritualizados, na igreja evangélica o Espírito Santo, vivo e invisível, é compartilhado e glorificado.
Naquela segunda-feira à tarde, depois do final da experiência com Dani e Cíntia, eu fiz um faxina em casa, uma faxina como há muito tempo não fazia. Comecei pela sala, e foi lá que achei duas coisas. A primeira foram os mil e setecentos reais, que eu achei que tinha dado para Breno em pagamento pelo negócio, eles ainda estavam em casa, dentro do meu livro de partituras. A outra coisa foi um folheto, deixado por Cíntia, com certeza, era um convite para um culto religioso. Na quinta-feira da mesma semana eu fui até o endereço do folheto. Lá eu tive a experiência mais importante de toda a minha vida.
Incomodei-me um pouco no início com o barulho, achei que fosse desrespeitoso todo aquele burburinho dentro de um templo, crianças correndo, jovens rindo, mulheres se abraçando e distribuindo a paz do Senhor para todos. Só entendi depois que o barulho não era irreverência, mas intimidade familiar, sim, porque aquelas pessoas não eram assistentes desconhecidos e frios de um rito, mas participantes de um culto de adoração ao Deus vivo.
Com as pessoas ainda conversando, um coral entrou pelas portas laterais da frente do lugar e de pé começou a cantar um hino à capela, a última estrofe dizia o seguinte: “De Deus o verbo ficará, sabemos com certeza, e nada nos assustará com Cristo por defesa! Se temos de perder família, bens, prazer! Se tudo se acabar e a morte enfim chegar, com ele reinaremos!
No painel de led, a letra estava exposta, eu vi o nome da música, “Castelo Forte”, de autoria do mais famoso reformador protestante de todos, Martinho Lutero. Algo diferente havia naquele lugar, algo que transcendia aquelas humildes pessoas, e que apesar de todo o preconceito que eu tinha apreendido sobre as igrejas evangélicas, fazia vibrar meu coração de um jeito que eu nunca tinha sentido.
Grupos começaram a fazer apresentações musicais, de todas as faixas etárias, começando pelas crianças, até um grupo de terceira idade. Era uma festa que não tinha fim, glórias e aleluais eram ditas em alto som, parecia que algo novo e vibrante era apresentado pela primeira vez e nessa surpreendente experiência todos vibravam, aplaudiam e agradeciam. Então uma moça pegou o microfone, ela ia cantar, mas antes pediu para dar um testemunho.
“Cheguei a esta cidade há dez anos, vim do nordeste. Meus pais tinham nove filhos, eu era a do meio, não havia comida para todo mundo, roupa para todo mundo, muito menos carinho. Também não havia emprego, então com dezessete anos vim para São Paulo. Tinha a promessa de uma família conhecida de meus pais que poderiam me ajudar aqui, contudo, quando cheguei, não achei nessa família mais cuidado do que aquele que recebia no nordeste.
Eu tinha um lugar pra dormir na sala, com mais duas meninas, quase nunca nos falávamos, já que todos precisavam trabalhar para manter a casa e cada um o fazia em horários e lugares diferentes. A casa nada mais era que uma pousada, os laços sanguíneos comuns não representavam nada naquela família, não se tinha privacidade, nem respeito.
Consegui emprego numa padaria, trabalhava das sete horas da manhã às dez horas da noite. Porém, a carência, a solidão e a proposta de ganhar dinheiro com mais facilidade, sem o estudo que eu não tinha, me colocou no caminho sujo da prostituição. Para suportar aquela vida eu comecei a me drogar, no começo usando maconha e depois cocaína. Graças a Deus não conheci o craque, senão não sei se estaria aqui hoje. Então perdi o emprego na padaria e fiquei só com as ruas.
Minha vida começou a mudar quando um casal de evangélicos se aproximou de mim. Não foi fácil, eu simplesmente não acreditava que havia uma vida melhor. Deixar a prostituição, para quê? Para trabalhar quinze horas por dia? Para voltar para o nordeste e sofrer com minha família? Meus sonhos tinham morrido, meu amor próprio nunca tinha existido, mas eu queria continuar vivendo.
Aqueles dois anjos mandados por Deus iam uma vez por semana até a rua onde eu fazia programas e conversavam comigo. Não me acusavam e nem sentiam vergonha de mim, mas me faziam companhia, nunca tinha sido respeitada daquela forma.
Então começaram a me levar a casa deles, eles abriram seu lar para mim. Às vezes eu conseguia parar com aquela vida por algumas semanas, mas que emprego eu arrumaria? A necessidade de cheirar o pó também tinha me acorrentado, quando a angústia apertava eu precisava da droga, e para pagá-la eu voltava a fazer programas, mesmo porque o mesmo cara que me vendia as drogas era o que me arrumava o ponto na rua.
Chega um momento que perdemos o contato físico coma vida, o gosto pelas coisas, o prazer de tocar, sentir, ouvir, olhar, tudo fica sem graça. Tornamos-nos fantasmas atormentando corpos de mulheres e de travestis, os homens que nos compram viram demônios, e Satanás é o líder que nos escraviza.
Com vinte e seis anos eu era uma velha, ria das mais novas que diziam que só estavam fazendo aquilo temporariamente, minha alma já estava completamente vendida.
Então o casal me convidou para ir à igreja, me lembro como se fosse hoje quando vim e me sentei ali, junto com a mocidade. Me sentia tão envergonhada no meio de jovens bonitos, felizes, cheios de esperança, e eu envelhecida pelo pecado. Sempre gostei de cantar, a música sempre me falou muito forte, sentia naquelas canções melancólicas cujo tema principal era traição, o único fio de felicidade que minha vida podia provar. Foi ouvindo uma canção, que Deus me falou, essa canção é a que vou cantar agora.”
Então ela cantou a seguinte canção:

Poderá alguém a Deus achar?
Seus caminhos são loucura, são altos demais.
O primeiro passo é Deus quem dá,
ele se fez homem, sacrifício numa cruz,
me amou Jesus,
o Senhor é Deus que se entrega.

Não fui eu quem te achei Senhor,
meus caminhos procuravam outra direção.
Foi misericórdia, tanto amor,
Deus me resgatou, ninguém jamais me viu assim,
algo bom em mim,
o Senhor se deixa ser achado.

Se revela a nós, se revela Deus,
manifesta sobre nós poder,
só a tua voz vai obedecer
a Igreja dos remidos teus.

Revela oh Deus o teu querer,
quero te ouvir, te conhecer,
teu manancial quero beber
pra te servir, te obedecer.

Se ouvir a voz de Deus chamar
deixa tudo, se entregue, abra o coração.
Venha para os braços de um Pai
que conhece todo o teu sofrer mais que ninguém,
ele quer teu bem,
o Senhor é Deus que se importa.”

Depois de cantar ela disse: “não, não somos nós que achamos a Deus, isso é impossível para os homens, podemos até querê-lo, num suplício solitário e agoniado, mas isso é apenas um pequeno passo, é Deus quem dá os outros nove em nossa direção, e ele fez isso quando entregou seu filho Jesus numa cruz para morrer em nosso lugar”. O testemunho daquela moça me deixou envergonhado, alguém com um problema tão grande tinha vontade de viver, quem era eu para querer desistir de tudo?
Então veio o momento maior de adoração, quando todos foram convidados a ficar de pé e cantar. Uma banda de jovens tomou posição em seus instrumentos, bateria, contrabaixo, guitarra, teclado, sax, trompete e trombone nos metais, mais um percussionista, acompanhando um quarteto vocal, dois moços e duas moças. Eles eram diferentes, não queriam brilhar, não faziam força para isso, apesar de terem muito talento.
Eu olhava para eles e via uma luz forte, entre eles e a igreja, era como se eles estivessem escondidos atrás da glória de Deus. Dessa forma, não eram seus maravilhosos talentos que apareciam, nem a sua adoração, mas o Deus a quem eles adoravam. Eles não cantavam e nem tocavam, adoravam a Deus com sons e ritmos.
Às vezes paravam de manejar a música para interagirem totalmente com Deus de forma espiritual, àquilo que seus espíritos já faziam, somavam-se seus corpos, suas palavras, celebrando a Deus em línguas estranhas. Não, não eram eles que tocavam uma bela música para Deus, era Deus que tocava em suas almas uma maravilhosa canção. Eu não conhecia a letra, mas a adoração me voou, me levou pra longe, o teto da igreja iluminava-se, eu via o Céu dos céus aberto para mim. A lua que antes parecia tão poética, tão linda, perdeu seu brilho diante do sol que eu via, o sol da presença de Deus.
Eu tive naquele momento minha primeira experiência espiritual, eu sentia, sem ver, via pelos olhos espirituais, a música subindo como pequenas chamas, e eu sabia, sem sentir, que as tais chamas eram perfumadas, eu via, sem entender, seres celestiais pegando as tais chamas e colocando-as em taças de ouro, então eu entendi, sem entender, que a adoração e a oração dos crentes perfumam o lugar mais santo do universo, a presença do Deus único e verdadeiro.
A decisão que tomaria depois da palavra pregada, me posicionaria diante dos homens com relação ao evangelho, contudo, foi naquele momento do louvor, que eu realmente me converti.
Então veio a palavra, quando o pastor tomou a frente e todos se colocaram de pé, quando ele anunciou o texto em que se basearia a pregação, imediatamente eu aliei aquele momento a um estudo de religião ou de filosofia. Coloquei em dúvida, ou em segundo plano, toda a experiência emocional que tinha tido com a música, achei, ainda num momento de incredulidade, que aquilo que ocorreria era uma argumentação racional para me convencer, e eu queria ser convencido, que precisava ter fé em Jesus, a fé que todos naquele local tinham, para então experimentar uma mudança de mente.
Tolo que eu estava sendo, queria pegar um pouquinho de água numa caneca enquanto Deus estava querendo derramar sobre mim uma fonte inteira e infinita. O texto lido foi evangelho de Marcos, capítulo 10, versículos 46 a 52:

E foram para Jericó. Quando ele, seus discípulos e uma grande multidão saíam de Jericó, junto do caminho estava sentado um mendigo cego chamado Bartimeu, filho de Timeu.
Quando ouviu que era Jesus Nazareno, ele começou a gritar: Jesus, Filho de Davi, tem compaixão de mim! Muitos o repreendiam para que se calasse, mas ele gritava ainda mais: Filho de Davi, tem compaixão de mim!
Jesus parou e disse: Chamai-o. Chamaram o cego, dizendo-lhe: Coragem! Levanta-te, ele está te chamando! Lançando de si a sua capa, levantou-se de um salto e dirigiu-se a Jesus.
E Jesus lhe perguntou: Que queres que te faça? O cego respondeu: Mestre, que eu volte a ver. Jesus lhe disse: Vai, a tua fé te salvou. Imediatamente ele recuperou a visão e foi seguindo Jesus pelo caminho.”

O pastor então disse:
“Muito já se pregou sobre esse texto, uma ênfase está em ensinar que devemos ter persistência em perseguir e alcançar nossos objetivos, mesmo diante de pessoas que nos impedem e não acreditam em nós. Realmente o cego Bartimeu experimentou essa resistência quando as pessoas diziam que ele deveria calar seu pedido de socorro, sucumbir sozinho, talvez porque achassem que sua dor não era digna de ter a atenção de Jesus. Sim, Bartimeu insistiu, e continuou clamando. Contudo, aquilo que o cego precisava entender e aprender não era que deveria insistir, ele já fazia isso e poderia continuar fazendo e nunca ser realmente abençoado.
A necessidade principal de Bartimeu foi atendida quando ele tomou duas atitudes: a primeira foi se levantar e jogar a capa. A capa era uma proteção que ele tinha, talvez a única que ainda lhe restasse. Todo o resto talvez ele já tivesse perdido, apoio de família, posse de uma casa, de bens materiais, honra na sociedade. Tudo isso poderia lhe fornecer uma condição equivocada de que ainda estava bem, mas quando ele perdeu tudo ainda lhe restou a capa. A capa era o que o preservava nessa condição, que poderia lhe dar alguma proteção contra as intempéries da vida, e que o mantinha confortável, chorando por seu estado de cegueira, mas resignado a permanecer nele. Clamando, sim, pedindo esmolas, sim, mas só retoricamente, afinal como cego e mendigo, ele podia viver a custa do auxílio dos outros, afinal de contas ele tinha uma capa.
Quando ele se pôs de pé e largou a capa e disse não ao conformismo, e então partiu para o segundo desafio, colocar-se face a face com Jesus. Por que Jesus perguntou a ele, o que é que ele queria que lhe fizesse? Não parecia óbvio a um cego que aquilo que ele mais desejava era ver? Não, não era óbvio, justamente porque um cego, não físico, mas espiritual, não consegue ver sua principal necessidade, a cegueira. Quando Bartimeu disse que queria ver, ele enfim entendeu sua principal necessidade. Se enxergasse, se libertaria de toda uma disposição que o amarrava a uma condição de covardia, de acomodar-se a uma deficiência que o fazia dependente dos outros. Curado da cegueira, ele poderia levantar-se e viver, trabalhar, ganhar seu sustento, ser honrado, e não mais rendido às esmolas dos outros, debaixo de uma capa velha e suja.”
 Aquela palavra realizou um milagre em minha vida: fez-me ver. Eu estava cego e achava que via, que entendia a vida, por isso pensava que a morte era a única saída para mim. Não enxergava que minha necessidade principal não era morrer, mas viver, viver de verdade, construir uma vida, meus sonhos pessoais, tê-los e realizá-los, com um casamento, um lar, mesmo resgatar minha relação com meus pais e meu irmão.
O coral voltou a cantar, agora um antigo hino de apelo, o começo dele dizia assim: “Manso e suave Jesus "stá chamando; Chama por ti e por mim. Eis que Ele à porta espera velando; Vela por ti e por mim. Vem já! Vem já! Alma cansada, vem já! Manso e suave Jesus "stá chamando; Chama: "Õ, vem, pecador!"
Novamente a música moveu-me, não me lembro de ter saído do banco e ter ido até a frente, mas nunca me esquecerei daquele momento, parado diante do altar, com as mãos do pastor sobre a minha cabeça, orando por mim. Suas palavras transformavam-se em energia elétrica, eu parecia estar sendo atingido por raios, raios de amor, um amor que eu nunca tinha provado antes.
Não, não foram argumentos racionais que mudaram a minha vida, foi a pessoa rela de Deus em mim através de Jesus pela manifestação do Santo Espírito que me transformaram. Não fui eu que me converti, foi Deus quem me converteu, não fui eu que entendi o evangelho, foi minha mente que foi transformada por Deus. Naquele instante eu ganhei um novo coração, o de pedra foi tirado, agora eu tinha um de carne, que sentia, que se importava em viver, só porque Jesus se importou em morrer por mim.
Os diáconos levaram a mim e as outras pessoas que tinham se decidido por Jesus naquela noite para uma sala onde foram anotados dados para contato. Quando voltei ao templo, avisos eram dados, e essa parte do culto também me alegrou, pois pude sentir como eram diferente aquele ambiente, aquilo decididamente não era uma religião, não eram pessoas tentando entender e seguir a Deus, era o supremo criador do universo se manifestando no meio dos homens e fazendo festa com eles.
Não tive qualquer dificuldade de voltar a aquela igreja, de começar a frequentar a escola bíblica aos domingos de manhã, ia com alegria, cada culto era especial, comecei ali uma nova vida. Todavia, eu não tinha ideia de tudo o que o Senhor faria em minha existência a partir daí, se alguém me contasse, eu não acreditaria, aquilo foi somente o começo, o nascimento de um novo José Renato.

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Que queres que te faça? Jesus é objetivo, o evangelho não perde tempo filosofando sobre os porquês, como fazem os pensadores seculares, nem descobrindo pessoas para jogar a culpa, como fazem os psicólogos. Jesus identifica a doença e oferece o remédio: a doença é a nossa disposição em aceitar a dor de viver e em continuar vivendo com ela, dor causada pela frustração de não se conseguir acertar. Ninguém é feliz com o que é, todos sofremos diante daquilo que não somos e gostaríamos de ser. Todos nós nos sentimos culpados por isso, e para aprender a lidar com essa culpa, é que inventamos tantas religiões, seja através de ideias próprias ou de sugestões de Satanás.
Não é argumentação que nos convence sobre o evangelho, mas é a presença de Deus, e ela não é entendida, mas sentida. Depois dessa experiência então podemos refletir, orar, e ler a Bíblia, para que nosso lado racional digira com mais humanidade a experiência única de Deus viver em nós. Então é momento de estudar, de entender, para que não somente nós nos alimentemos com mais integridade da verdade de Deus, mas também para que possamos compartilhar essa experiência com os outros homens.
Um passo do homem, e nove de Deus, esses são os dez passos que nos colocam na vida eterna. O primeiro passo é dado por fé, sem entender, sem ver, sem sentir, é dado muitas vezes no meio da dor, nas trevas interiores dos nossos próprios corações. Mas é dado quando se desiste de tentar pelas próprias forças, de entender pela mente humana, numa tentativa desesperada de achar algo que está além do egoísmo, da arrogância, da maldade do homem.
Esse passo só os humildes conseguem dar, pois abrem mão de tudo o que sabem e entendem, podem e conseguem, para se jogar nos braços de Deus. Ninguém volta igual dessa entrega, desse pulo no abismo, volta-se vivo, de verdade, tudo passa a ter um gosto diferente, uma razão nova, tudo passa a ter sentido. Quando Deus me olhou, eu o vi, então vi a mim mesmo e pude olhar todo o resto de uma nova forma. Onde eu via morte, agora eu via vida e vida em abundância.

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