A porta abriu-se, o
sol não entrou, ele nem nasceu naquele domingo, ainda era noite, em meu coração
e no coração de Cíntia. O clima estava abafado, um calor fora de estação queria
impor-se ao inverno, mas isso seria por pouco tempo.
- Olá – disse uma
voz grave.
- Olá – respondi
enquanto tentava me levantar.
- Pode ficar aí –
ela disse, sentando-se à minha frente, no chão, entre o piano e a porta, com as
pernas dobradas. Eu ainda segurava o relógio e as fotos, mas nesse momento os
soltei e permaneci onde estava. Ela tinha um revólver na mão direita que se
apoiava no joelho, estava com os olhos fixos ao chão.
- Você vai me matar
– constatei com descaso.
- Foi o combinado –
ela respondeu com mais descaso.
Seguiu-se um
silêncio, eu tentava ver seus olhos, ela permanecia imóvel.
- Bonita sua casa,
organizada, você mora sozinho – disse ela afirmando, não perguntando.
- Você tem me
seguindo, não tem?
- Sim.
- Só agora foi que
achou oportunidade para me pegar?
- Só agora que achei
vontade para isso, mas não venha com graça, eu te apago num segundo se você der
bobeira.
- Ok, já entendi.
Seguiu-se um novo
silêncio.
- Por que um cara
como você quer morrer? – ela me perguntou.
- Não quero morrer,
só não quero viver.
- Quem quer?
- Por que alguém
como você quer matar? – ela não respondeu nada.
- Nunca tive isso –
ela disse instantes depois.
- O quê?
- Um quarto só pra
mim.
- Aqui tem quarto
sobrando agora.
- Os meninos dormem
num quarto, eu durma na sala.
- Quantos irmãos
você tem?
- Dois, dois irmãos
e três pais.
- Como assim?
- Eu e meu irmão
mais velho somos de um, meu irmão mais noivo é de outro, mas minha mãe vive com
outro cara.
- Entendo.
- Você mora aonde?
- Já está querendo
saber demais.
Nos calamos
novamente.
- Eu queria ir ao
banheiro.
- Pode ir – ela se
levantou, eu passei por ela, entrei no banheiro e ela ficou no corredor. Lá
dentro eu olhei para o vitrô, pensei na possibilidade de escapar, mas que
bobagem, eu tinha contratado aquela pessoa para me matar, agora eu queria
fugir? Eu saí, passei por ela, entrei no quarto e me sentei no chão, de costas
para a estante. Ela entrou e se sentou no mesmo lugar de antes, ao lado do
piano.
- O combinado foi
de você fazer o serviço rápido – eu disse.
- É – ela respondeu,
alisando o cano do revólver com a mão esquerda – Preciso devolver essa arma...
- Não é sua?
- Aluguei.
- Esse negócio não
é muito lucrativo, quanto vai ganhar com isso? – eu disse com ironia.
- O que é que você
faz da vida? – ela disse, olhando pela primeira vez na minha direção.
Ela tinha a minha
altura, encorpada, cabelos lisos e curtos, castanhos escuros, e pele clara.
Vestia uma calça jeans bem desbotada, camiseta branca, mas o moletom preto, cujo
gorro escondia seu rosto, ela havia tirado.
- Sou músico.
- Toca em barzinho?
- Já toquei.
- Gosto da Cássia
Eller.
- Ela cantando
Nando Reis é legal.
- Estranho seria se
eu não me apaixonasse por você, o sal viria doce para os novos lábios, Colombo
procurou as Índias, mas a Terra avistou em você, o som que eu ouço são as
gírias do seu vocabulário – ela cantarolou.
- Não conheço essa
– eu disse.
- É Nando.
- Você não vai me
matar? – agora eu perguntei.
- Está com pressa?
– não respondi nada, tive medo. Ficamos então algum tempo sem falar, acho que
uns vinte minutos.
- Gosto de manhãs
de domingo, é quando eu posso ficar sozinha em casa.
- Posso saber seu
nome?
- Cíntia.
- Meu nome você
sabe.
- Não sei não.
- Então como me
encontrou?
- Me disseram que te
acharia nas madrugadas de sexta-feira ou de sábado, tomando café de terno e
gravata no bar.
- Verdade, de terno
e gravada nesse horário é difícil achar alguém.
- Você toca assim,
todo engravatado?
- No ambiente que
trabalho, sou obrigado.
- Chique.
- Faz parte, mas
por que fica sozinha em casa no domingo de manhã? Pra onde vai sua família?
- Vão à igreja.
- Beijar a mão do
padre?
- Não, do pastor.
- Crentes?
- É.
- E você?
- Eu sou eu.
- Sem rótulo?
- Como assim?
- Sem tribo?
- Minha tribo é solitária.
- Que tribo é?
- Ainda não
percebeu?
- Não – eu tinha
percebido, mas fiquei com receio de rotulá-la.
- Minha mãe quer
morrer, por causa disso.
- Ela não aceita?
- Não vou mudar por
ela.
- Mas não foi ela
quem te mudou?
- Como assim.
- Tem gente que diz
que é uma questão de criação.
- Com dois irmãos,
sempre foi mais fácil pra ela colocar shorts ou calças compridas em todos, não
me lembro dela ter comprado um vestido ou um batom pra mim.
- E ela, como ela
se veste?
- Parecida comigo,
mas o negócio dela sempre foi homem, muitos homens.
- Você se dá bem
com eles?
- Com homens?
- Com os homens da
sua mãe?
- Este último até
que é legal, é ele quem está levando a turma para a igreja.
- E os outros?
- O pai do meu
irmão mais novo era um idiota.
- Por quê?
- Não quero falar
nisso, se eu pudesse eu dava um tiro nele.
- Mas sua mãe
gostava dele.
- Ela é uma tonta,
acredita na conversa de qualquer um.
- Por que eles não
ficaram juntos?
- Ela o pegou em
cima de mim, só assim para ela acreditar, eu falava pra ela e ela dizia que era
bobagem minha, nem mostrando pra ela minha calcinha com sangue, ela acreditou.
Ela se abria
comigo, com um revólver na mão, ela precisou de uma arma para que um homem a
ouvisse. Tola, eu a ouviria mesmo sem arma, sempre fui bom confidente para as
mulheres.
- E seu pai?
- Nunca o conheci,
ele voltou pro norte, tem outra família lá.
- Cíntia, meu nome
é Zé Renato, quer um café?
Ela se levantou, eu
passei por ela e fui à cozinha, ela me seguiu. Estava escuro, acendi a lâmpada.
- Só não abre a
porta da cozinha.
- Tudo bem.
Minha moka dava pra
duas canecas médias de café, coloquei a água, o pó e liguei o fogão. Enquanto
esperava a água ferver fiquei de pé, encostado a pia, Cíntia estava do outro
lado, encostada no armário, com os braços cruzados e os ombros erguidos,
escondendo o corpo. A arma estava em cima da mesa, entre nós.
A água ferveu, eu
enchi as canecas, passei uma pra ela. Meu sangue se agitou com a cafeína e eu
comecei a pensar na realidade daquela situação. Meu objetivo com aquele plano
era ser morto de surpresa, rapidamente e sem dor, mas não era assim que as
coisas estavam acontecendo.
- Cíntia, eu não
quero sentir dor, foi para parar de sofrer que resolvi morrer.
- Um tiro na cabeça
é o suficiente – ela disse com convicção, segurando a caneca com as duas mãos e
rindo com o canto da boca.
- Por favor...
- Desencana, na
hora certa as coisas vão acontecer, senta aí – ela não tinha pressa.
Puxamos as duas
únicas cadeiras da pequena mesa que eu tinha naquela cozinha e nos sentamos. A
ventania balançava o limoeiro no quintal, folhas secas eram arrastadas de um
lado para o outro, o mundo parecia que ia acabar lá fora. Estava quente, eu
queria abrir a porta. A minha frente eu via uma moça de vinte e cinco anos que
parecia ter quinze, ela era bonita. Rosto arredondado, queixo pequeno,
bochechas salientes, olhos amendoados. O corte de cabelo de garoto, curto atrás
com um largo topete, dava a sua androginia um ar de inocência.
- Quer comer alguma
coisa? – perguntei, pensando em torrar algumas fatias de pão de forma.
- Não, se estiver
com fome, pode comer.
- Não estou.
- Tem namorada?
- Algumas.
- Alguma em
especial?
- A primeira.
- Mulher tem dessas
coisas.
- Eu sou uma
mulher?
- Claro que é, e
muito bonita – ela sorriu pra mim, que belo sorriso, foi só então que vi
naquele domingo o sol, ele não apareceu no céu, mas no rosto de um anjo. Como o
anjo da morte poderia ser tão cativante? Ela sorriu e o sonho apareceu em seus
olhos.
- Eliza era minha
professora de educação física.
- Quem?
- Minha primeira.
- Entendi.
- Ela era
experiente, eu tinha dezessete anos, ia fazer dezoito naquele ano, que pressa
que tinha para fazer dezoito, hoje eu queria ter vinte novamente.
- Mas já? Quantos
anos você tem?
- Vinte e cinco.
- A gente tem
dezoito até os trinta.
- Ela não queria
nada comigo, mas eu me apaixonei. Ela era segura, inteligente, séria, até
demais. Ela se protegia, enquanto eu me entregava. Ela dizia que era de outra
geração, onde gays tinham que ficar bem escondidos no armário.
- Hoje as coisas
são mais abertas, existe mais liberdade.
- Nem tanto, vai
falar isso pra minha mãe, principalmente depois que ela virou crente.
- Isso é verdade,
essa liberdade que a mídia tanto prega só existe na burguesia, na área
artística, onde ser gay é cult. A coisa não é assim para os menos afortunados.
- Minha família é
pobre, mas eu sempre gostei de ler.
- Você parece uma
menina de classe média.
- Se eu fosse não
estaria aqui.
- Como assim?
- O dinheiro que
vou ganhar é para ver Eliza.
- O meu dinheiro?
- É, eu e ela
ficamos juntos um bom tempo, mas ela teve que voltar para sua cidade. A mãe
dela ficou doente e não tem mais ninguém, a Eliza teve que ir ajudá-la. Eu
preciso de dinheiro para ir embora, quero ficar com ela, se ela me aceitar...
- Ela sabe que você
vai?
- Não, é surpresa.
Minha mãe vai ficar doida quando souber, eu quero ir embora e nunca vai ver
esse povo. Quero andar de mão dada com ela sem medo, quero ter um canto nosso,
uma televisão, meus CDs. Quero ver o sol, quero ver a lua, com ela do meu lado.
- Você acha que lá
as coisas vão ser diferentes?
- Com certeza, com
ela tudo é diferente.
- Gente é gente em
qualquer lugar, você não pode fugir de você, pra onde você for, você se leva.
Se não resolver seu problema aqui, ele irá com você pra onde você for.
- Com Eliza eu não
tenho problemas.
- Ah, a paixão,
tudo parece fácil com ela.
- Está falando
igual a minha mãe. Quem é ela pra me dizer isso? Passou a vida correndo atrás
de paixões. Quem é você pra me dizer o que fazer? Você não tem coragem nem de
viver – eu tinha tocado num ponto nevrálgico dela, ela perdeu o controle, virou
outra pessoa. É preciso cuidado para mexer com os sonhos dos outros, ela estava
apostando todas as fichas naquela viagem, que aquilo iria mudar a vida dela. Eu
fui frio com ela, como era com todos, como era comigo.
- Desculpe-me.
- Já falamos
demais, vá para o quarto.
Eu entrei e ela
trancou a porta por fora. O vento batia na casa, flashes dos raios entravam
pelas frestas da janela. Iria chover a qualquer momento, o calor era apenas uma
ilusão, ele daria lugar ao frio. Aquela estranha manhã de um falso verão
acabaria, e o inverno retomaria seu lugar, frio, como meu coração.
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“E Deus lhe disse: Vem para fora e sobe o
monte diante do SENHOR. Então o SENHOR passou, e um grande e forte vento
separava os montes e despedaçava os penhascos diante do SENHOR; mas o SENHOR
não estava no vento. Depois do vento veio um terremoto; mas o SENHOR não estava
no terremoto. E depois do terremoto veio fogo; mas o SENHOR não estava no fogo.
E depois do fogo veio uma voz mansa e suave.”
I Reis 19.11-12
O coração mais machucado
do mundo pode colocar um sorriso no rosto quando um sonho é sonhado, a alma é
um herói da resistência, insiste em se desprender da decepção e se agarrar a
uma esperança.
Todo homem é um
artista visto que pode criar uma fantasia de felicidade para se libertar de
realidades de dor. Todo artista tem uma visão, mesmo que pequena, da presença
de Deus, já que somente a contemplação do mundo espiritual é que permite o
sonho. Um sonho, às vezes, é tudo o que queremos, uma visão, mesmo que
distorcida, de algo bom, a expectativa inexplicável de uma saída, de um novo
dia.
Contudo, lágrimas
podem se secar, assim como sonhos podem morrer, somente Deus pode derramar água
limpa e fresca num coração deserto, somente o Senhor é que pode sonhar em nós
sonhos maravilhosos, os únicos sonhos realmente verdadeiros, e os únicos que
podem se tornar uma realidade de vida abundante.
Vento, terremoto e
fogo, sonhamos muitas vezes sonhos impossíveis, exagerados, obsessivos, para
compensar aquilo que foi tomado de nós com violência. Muitos querem dominar
nações simplesmente porque não receberam colo da mãe, muitos tentam matar
multidões só porque não receberam do pai alguns minutos de atenção, muitos
roubam corações, honras, posições, e ficam viciados em poder, porque não foram
devidamente elogiados e incentivados.
Vento, terremoto e
fogo, devastam o mundo, impõem autoridade, dominam pela força, mas não consolam
o coração. Sexo desenfreado, cachaça, cigarro, cocaína e craque, vícios da
carne, tudo isso é vento, terremoto e fogo no coração de quem na verdade só
precisa de uma prova real de amor.
Jesus tem essa
prova, e ele compartilha isso mansa e suavemente, Jesus é o sonho que Deus
sonha em nós uma vida curada, consolada, equilibrada, vitoriosa e tranquila.
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