21 de set. de 2014

25 - Sonhar é preciso

A porta abriu-se, o sol não entrou, ele nem nasceu naquele domingo, ainda era noite, em meu coração e no coração de Cíntia. O clima estava abafado, um calor fora de estação queria impor-se ao inverno, mas isso seria por pouco tempo.
- Olá – disse uma voz grave.
- Olá – respondi enquanto tentava me levantar.
- Pode ficar aí – ela disse, sentando-se à minha frente, no chão, entre o piano e a porta, com as pernas dobradas. Eu ainda segurava o relógio e as fotos, mas nesse momento os soltei e permaneci onde estava. Ela tinha um revólver na mão direita que se apoiava no joelho, estava com os olhos fixos ao chão.
- Você vai me matar – constatei com descaso.
- Foi o combinado – ela respondeu com mais descaso.
Seguiu-se um silêncio, eu tentava ver seus olhos, ela permanecia imóvel.
- Bonita sua casa, organizada, você mora sozinho – disse ela afirmando, não perguntando.
- Você tem me seguindo, não tem?
- Sim.
- Só agora foi que achou oportunidade para me pegar?
- Só agora que achei vontade para isso, mas não venha com graça, eu te apago num segundo se você der bobeira.
- Ok, já entendi.
Seguiu-se um novo silêncio.
- Por que um cara como você quer morrer? – ela me perguntou.
- Não quero morrer, só não quero viver.
- Quem quer?
- Por que alguém como você quer matar? – ela não respondeu nada.
- Nunca tive isso – ela disse instantes depois.
- O quê?
- Um quarto só pra mim.
- Aqui tem quarto sobrando agora.
- Os meninos dormem num quarto, eu durma na sala.
- Quantos irmãos você tem?
- Dois, dois irmãos e três pais.
- Como assim?
- Eu e meu irmão mais velho somos de um, meu irmão mais noivo é de outro, mas minha mãe vive com outro cara.
- Entendo.
- Você mora aonde?
- Já está querendo saber demais.
Nos calamos novamente.
- Eu queria ir ao banheiro.
- Pode ir – ela se levantou, eu passei por ela, entrei no banheiro e ela ficou no corredor. Lá dentro eu olhei para o vitrô, pensei na possibilidade de escapar, mas que bobagem, eu tinha contratado aquela pessoa para me matar, agora eu queria fugir? Eu saí, passei por ela, entrei no quarto e me sentei no chão, de costas para a estante. Ela entrou e se sentou no mesmo lugar de antes, ao lado do piano.
- O combinado foi de você fazer o serviço rápido – eu disse.
- É – ela respondeu, alisando o cano do revólver com a mão esquerda – Preciso devolver essa arma...
- Não é sua?
- Aluguei.
- Esse negócio não é muito lucrativo, quanto vai ganhar com isso? – eu disse com ironia.
- O que é que você faz da vida? – ela disse, olhando pela primeira vez na minha direção.
Ela tinha a minha altura, encorpada, cabelos lisos e curtos, castanhos escuros, e pele clara. Vestia uma calça jeans bem desbotada, camiseta branca, mas o moletom preto, cujo gorro escondia seu rosto, ela havia tirado.
- Sou músico.
- Toca em barzinho?
- Já toquei.
- Gosto da Cássia Eller.
- Ela cantando Nando Reis é legal.
- Estranho seria se eu não me apaixonasse por você, o sal viria doce para os novos lábios, Colombo procurou as Índias, mas a Terra avistou em você, o som que eu ouço são as gírias do seu vocabulário – ela cantarolou.
- Não conheço essa – eu disse.
- É Nando.
- Você não vai me matar? – agora eu perguntei.
- Está com pressa? – não respondi nada, tive medo. Ficamos então algum tempo sem falar, acho que uns vinte minutos.
- Gosto de manhãs de domingo, é quando eu posso ficar sozinha em casa.
- Posso saber seu nome?
- Cíntia.
- Meu nome você sabe.
- Não sei não.
- Então como me encontrou?
- Me disseram que te acharia nas madrugadas de sexta-feira ou de sábado, tomando café de terno e gravata no bar.
- Verdade, de terno e gravada nesse horário é difícil achar alguém.
- Você toca assim, todo engravatado?
- No ambiente que trabalho, sou obrigado.
- Chique.
- Faz parte, mas por que fica sozinha em casa no domingo de manhã? Pra onde vai sua família?
- Vão à igreja.
- Beijar a mão do padre?
- Não, do pastor.
- Crentes?
- É.
- E você?
- Eu sou eu.
- Sem rótulo?
- Como assim?
- Sem tribo?
- Minha tribo é solitária.
- Que tribo é?
- Ainda não percebeu?
- Não – eu tinha percebido, mas fiquei com receio de rotulá-la.
- Minha mãe quer morrer, por causa disso.
- Ela não aceita?
- Não vou mudar por ela.
- Mas não foi ela quem te mudou?
- Como assim.
- Tem gente que diz que é uma questão de criação.
- Com dois irmãos, sempre foi mais fácil pra ela colocar shorts ou calças compridas em todos, não me lembro dela ter comprado um vestido ou um batom pra mim.
- E ela, como ela se veste?
- Parecida comigo, mas o negócio dela sempre foi homem, muitos homens.
- Você se dá bem com eles?
- Com homens?
- Com os homens da sua mãe?
- Este último até que é legal, é ele quem está levando a turma para a igreja.
- E os outros?
- O pai do meu irmão mais novo era um idiota.
- Por quê?
- Não quero falar nisso, se eu pudesse eu dava um tiro nele.
- Mas sua mãe gostava dele.
- Ela é uma tonta, acredita na conversa de qualquer um.
- Por que eles não ficaram juntos?
- Ela o pegou em cima de mim, só assim para ela acreditar, eu falava pra ela e ela dizia que era bobagem minha, nem mostrando pra ela minha calcinha com sangue, ela acreditou.
Ela se abria comigo, com um revólver na mão, ela precisou de uma arma para que um homem a ouvisse. Tola, eu a ouviria mesmo sem arma, sempre fui bom confidente para as mulheres.
- E seu pai?
- Nunca o conheci, ele voltou pro norte, tem outra família lá.
- Cíntia, meu nome é Zé Renato, quer um café?
Ela se levantou, eu passei por ela e fui à cozinha, ela me seguiu. Estava escuro, acendi a lâmpada.
- Só não abre a porta da cozinha.
- Tudo bem.
Minha moka dava pra duas canecas médias de café, coloquei a água, o pó e liguei o fogão. Enquanto esperava a água ferver fiquei de pé, encostado a pia, Cíntia estava do outro lado, encostada no armário, com os braços cruzados e os ombros erguidos, escondendo o corpo. A arma estava em cima da mesa, entre nós.
A água ferveu, eu enchi as canecas, passei uma pra ela. Meu sangue se agitou com a cafeína e eu comecei a pensar na realidade daquela situação. Meu objetivo com aquele plano era ser morto de surpresa, rapidamente e sem dor, mas não era assim que as coisas estavam acontecendo.
- Cíntia, eu não quero sentir dor, foi para parar de sofrer que resolvi morrer.
- Um tiro na cabeça é o suficiente – ela disse com convicção, segurando a caneca com as duas mãos e rindo com o canto da boca.
- Por favor...
- Desencana, na hora certa as coisas vão acontecer, senta aí – ela não tinha pressa.
Puxamos as duas únicas cadeiras da pequena mesa que eu tinha naquela cozinha e nos sentamos. A ventania balançava o limoeiro no quintal, folhas secas eram arrastadas de um lado para o outro, o mundo parecia que ia acabar lá fora. Estava quente, eu queria abrir a porta. A minha frente eu via uma moça de vinte e cinco anos que parecia ter quinze, ela era bonita. Rosto arredondado, queixo pequeno, bochechas salientes, olhos amendoados. O corte de cabelo de garoto, curto atrás com um largo topete, dava a sua androginia um ar de inocência.
- Quer comer alguma coisa? – perguntei, pensando em torrar algumas fatias de pão de forma.
- Não, se estiver com fome, pode comer.
- Não estou.
- Tem namorada?
- Algumas.
- Alguma em especial?
- A primeira.
- Mulher tem dessas coisas.
- Eu sou uma mulher?
- Claro que é, e muito bonita – ela sorriu pra mim, que belo sorriso, foi só então que vi naquele domingo o sol, ele não apareceu no céu, mas no rosto de um anjo. Como o anjo da morte poderia ser tão cativante? Ela sorriu e o sonho apareceu em seus olhos.
- Eliza era minha professora de educação física.
- Quem?
- Minha primeira.
- Entendi.
- Ela era experiente, eu tinha dezessete anos, ia fazer dezoito naquele ano, que pressa que tinha para fazer dezoito, hoje eu queria ter vinte novamente.
- Mas já? Quantos anos você tem?
- Vinte e cinco.
- A gente tem dezoito até os trinta.
- Ela não queria nada comigo, mas eu me apaixonei. Ela era segura, inteligente, séria, até demais. Ela se protegia, enquanto eu me entregava. Ela dizia que era de outra geração, onde gays tinham que ficar bem escondidos no armário.
- Hoje as coisas são mais abertas, existe mais liberdade.
- Nem tanto, vai falar isso pra minha mãe, principalmente depois que ela virou crente.
- Isso é verdade, essa liberdade que a mídia tanto prega só existe na burguesia, na área artística, onde ser gay é cult. A coisa não é assim para os menos afortunados.
- Minha família é pobre, mas eu sempre gostei de ler.
- Você parece uma menina de classe média.
- Se eu fosse não estaria aqui.
- Como assim?
- O dinheiro que vou ganhar é para ver Eliza.
- O meu dinheiro?
- É, eu e ela ficamos juntos um bom tempo, mas ela teve que voltar para sua cidade. A mãe dela ficou doente e não tem mais ninguém, a Eliza teve que ir ajudá-la. Eu preciso de dinheiro para ir embora, quero ficar com ela, se ela me aceitar...
- Ela sabe que você vai?
- Não, é surpresa. Minha mãe vai ficar doida quando souber, eu quero ir embora e nunca vai ver esse povo. Quero andar de mão dada com ela sem medo, quero ter um canto nosso, uma televisão, meus CDs. Quero ver o sol, quero ver a lua, com ela do meu lado.
- Você acha que lá as coisas vão ser diferentes?
- Com certeza, com ela tudo é diferente.
- Gente é gente em qualquer lugar, você não pode fugir de você, pra onde você for, você se leva. Se não resolver seu problema aqui, ele irá com você pra onde você for.
- Com Eliza eu não tenho problemas.
- Ah, a paixão, tudo parece fácil com ela.
- Está falando igual a minha mãe. Quem é ela pra me dizer isso? Passou a vida correndo atrás de paixões. Quem é você pra me dizer o que fazer? Você não tem coragem nem de viver – eu tinha tocado num ponto nevrálgico dela, ela perdeu o controle, virou outra pessoa. É preciso cuidado para mexer com os sonhos dos outros, ela estava apostando todas as fichas naquela viagem, que aquilo iria mudar a vida dela. Eu fui frio com ela, como era com todos, como era comigo.
- Desculpe-me.
- Já falamos demais, vá para o quarto.
Eu entrei e ela trancou a porta por fora. O vento batia na casa, flashes dos raios entravam pelas frestas da janela. Iria chover a qualquer momento, o calor era apenas uma ilusão, ele daria lugar ao frio. Aquela estranha manhã de um falso verão acabaria, e o inverno retomaria seu lugar, frio, como meu coração.

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E Deus lhe disse: Vem para fora e sobe o monte diante do SENHOR. Então o SENHOR passou, e um grande e forte vento separava os montes e despedaçava os penhascos diante do SENHOR; mas o SENHOR não estava no vento. Depois do vento veio um terremoto; mas o SENHOR não estava no terremoto. E depois do terremoto veio fogo; mas o SENHOR não estava no fogo. E depois do fogo veio uma voz mansa e suave.”
I Reis 19.11-12

O coração mais machucado do mundo pode colocar um sorriso no rosto quando um sonho é sonhado, a alma é um herói da resistência, insiste em se desprender da decepção e se agarrar a uma esperança.
Todo homem é um artista visto que pode criar uma fantasia de felicidade para se libertar de realidades de dor. Todo artista tem uma visão, mesmo que pequena, da presença de Deus, já que somente a contemplação do mundo espiritual é que permite o sonho. Um sonho, às vezes, é tudo o que queremos, uma visão, mesmo que distorcida, de algo bom, a expectativa inexplicável de uma saída, de um novo dia.
Contudo, lágrimas podem se secar, assim como sonhos podem morrer, somente Deus pode derramar água limpa e fresca num coração deserto, somente o Senhor é que pode sonhar em nós sonhos maravilhosos, os únicos sonhos realmente verdadeiros, e os únicos que podem se tornar uma realidade de vida abundante.
Vento, terremoto e fogo, sonhamos muitas vezes sonhos impossíveis, exagerados, obsessivos, para compensar aquilo que foi tomado de nós com violência. Muitos querem dominar nações simplesmente porque não receberam colo da mãe, muitos tentam matar multidões só porque não receberam do pai alguns minutos de atenção, muitos roubam corações, honras, posições, e ficam viciados em poder, porque não foram devidamente elogiados e incentivados.
Vento, terremoto e fogo, devastam o mundo, impõem autoridade, dominam pela força, mas não consolam o coração. Sexo desenfreado, cachaça, cigarro, cocaína e craque, vícios da carne, tudo isso é vento, terremoto e fogo no coração de quem na verdade só precisa de uma prova real de amor.
Jesus tem essa prova, e ele compartilha isso mansa e suavemente, Jesus é o sonho que Deus sonha em nós uma vida curada, consolada, equilibrada, vitoriosa e tranquila.

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