23 de set. de 2014

23 - Black sabbath

Um dia que não era pra ter começado, e que acabaria somente dois dias depois. Todas as vozes do mundo parecem gritar pra nós aquilo que não queremos ouvir, em determinados momentos de nossas vidas, dizem não para uma decisão errada que tomamos insistentemente por anos e que finalmente tornamos fato. Ela se levantou da cama com a mãe gritando qualquer coisa, acabando com a pouca privacidade que tinha na casa. Vestiu seu único par de tênis, sua velha calça jeans, mas procurou com cuidado uma camiseta, não que ela tivesse muitas opções, mas queria uma especial, escolheu a do “Black sabbath”, ela seria sua companhia naquele sábado negro.
Sobre a pia da cozinha, uma velha garrafa térmica ainda guardava resto de café, ela entornou o líquido num copo americano, tomou-o e saiu. Parecia caminhar no solo de um oceano, pesadamente, em meio a uma água viscosa. O ar estava engrossava com o fardo que vazava de seu coração que teimava em procurar a solução errada para seu problema. Na manhã daquele dia, o ônibus estava vazio, ela chegou depressa ao centro, mas mesmo com o céu pesado de chuva as pessoas entravam e saíam das lojas. A praça estava cheia de alegria, ela, porém, queria estar só, não queria nem Daniela e as meninas, então se pôs a andar.
A solidão é a cama onde se deitam os mais terríveis males do homem, esses males são amantes ciumentos, não aceitam outra companhia além do coração solitário. As inseguranças geram a desconfiança e o medo, esses geram o ódio, o ódio gera a morte, quando o coração se torna assassino, ele caminha só. Ela alienava-se porque se sentia só, ninguém a entendia, ninguém a amava, e aquela que ela precisava tanto estava longe. Na cama da solidão o ódio começou a fortalecê-la, a enchê-la de coragem para matar. A morte é o silenciar da razão, ela não queria mais papo, mais argumentos, precisava agir, mudar seu destino, mudar sua vida, impor-se, com todas as forças que tinha.
Seu corpo endureceu-se à medida que caminhava, não pediu licença, que os outros saíssem do caminho, e tinha sido sempre assim? Se ela se fragilizasse não ficaria de pé no meio daquela gente preconceituosa. Ela não queria ser homem, talvez outras até quisessem, ela não queria sexo errado, talvez outros quisessem, ela queria ser feliz, queria ser ela mesma, sem precisar dar explicações por isso.
Pode-se dizer que todos os homens querem o amor de um único jeito, e que essas diferenças fazem de uns menos homens que os outros? É certo dizer que todas as mulheres amam da mesma maneira, e umas são menos mulheres do que outras por causa dessas diferenças? Então por que ela tinha que ser igual a todas as mulheres que também gostavam de mulheres? Além do mais ela não se sentia menos mulher pelo fato de não gostar de homem, isso era o que muita gente, muita mesmo, não entendia.
Ela era mulher, gostava de se sentir assim, eram as outras pessoas que não aceitavam o jeito dela ser, e era esse incômodo, dos outros, que antes a incomodava. Agora ela entendia as coisas, que todo o nojo que sentia dela mesma, quando era mais nova, era o nojo que os outros tinham por ela. Entendida, ela começava a se assumir, contudo fazia isso do jeito errado, ao invés de anular o ódio que sentiam por ela com amor, ela o direcionou para os outros como morte.
Que segurança existe quando ela é obtida a troco de roubar a segurança do outro? Paz a troco de guerra precisará de guerra constante para ser mantida. A paz verdadeira liberta-se do opressor, contudo, lançando-o pra longe, a sua própria sorte, sem precisar exterminá-lo. O mal não pode ser exterminado com outro mal, se assim for feito, ele retornará mais forte, como as cabeças da Hidra de Lerna que cortadas davam origem a outras duas. É melhor caminharmos em direção oposta a ele, o ignorarmos, o mal não desaparece com o confronto, mas com o desprendimento, ele se enfraquece quando é desprezado. Ele morre porque para de ser alimentado pelo ódio, o ódio que dorme na cama da solidão e que mata, antes do odiado, aquele que odeia.
Ela caminhou pela rua Floriano Peixoto até à delegacia, depois pegou à direita e à direita novamente e voltou pela Santa Rita, então pegou à direita e outra vez à direita e estava de novo na Floriano. Naquele looping ela não via as pessoas, eram sombras que passavam por ela, através dela, ela não ouvia ninguém, apenas uma voz dizendo a ela que precisava matar. Ela sentia o aço frio do revólver na mão, o gatilho no dedo, e esse pressionando em slow motion dando o start que colocaria o projétil fatal dentro da carne de um homem, que homem? Aqueles que tanto a tinham machucado, aquele que a havia molestado. Se o bem tem visão precisa, sabe o que faz e para quem faz, o mal é cego e sem noção, não espere justiça de coração cheio de ódio, ele se vinga contra todos, traiçoeiramente.  
Ébria de ódio, nem percebeu quando esbarrou numa mulher, essa não saiu de sua frente, quando ela quis passar, também se achava no direito de ter prioridade à passagem por estar cheia de outro mal, a soberba.
- Mas que menina insolente, – disse a mulher – quase me derrubou – os enormes óculos escuros escondiam a alma da perua assim como a ressaca de muitos gins com tônica que a tinham feito dormir na madrugada passada.
- Quem você acha que é? – disse o cara que a acompanhava.
- Bandidinha – continuou a mulher, protegida em cima de saltos altos que teimavam em ficar de pé sobre as calçadas ruins de Itu.
- Trate assim suas comparsas – disse o homem debaixo de implantes capilares que pareciam tão artificiais quanto o estilo de milionário que ele queria que todos acreditassem que tinha. Nunca entendi porque alguns homens fazem implantes ou usam perucas, são de uma falsidade tão óbvia que nunca convence ninguém.
Ela não dizia nada, apenas olhava, mas não os via, ainda estava presa às imagens do plano do crime. Contudo, não fora a bala que havia sido disparada, mas uma sessão de humilhação, não havia fim para as palavras-facas que eles lançavam contra ela. Tem gente que não vive, mas existe aguardando uma oportunidade para impor-se sobre os outros.
- Machona – disse a mulher, enquanto o homem ria arrogantemente alto, na cara dela. Ela não aguentou, empurrou-o, a calçada estreita acabou e o homem parou no meio da rua. Um carro brecou em cima, uma senhora gritou, a polícia veio.
- Ela tentou matar meu marido – disse a mulher ao policial, esse conhecia a garota das ruas do centro.
- Eles ofenderam a menina – disse um senhor, alguém teve a coragem de defender a menina.
- Ela me empurrou – disse a mulher.
- Alguém se machucou? – perguntou o policial, ao que ninguém respondeu.
- Não aconteceu nada – disse a menina.
- Se quiserem dar queixa podem ir até a delegacia, fica no final da rua – informou o guarda, não levando a sério o surto do casal.
- Não vou mais perder tempo com essa gentinha – disse a mulher pegando a mão do marido e pondo-se a caminho.
- Vai com calma menina – disse o policial, ela deu meia volta e dirigiu-se à praça.
O casal poderia ter dado queixa por causa da grosseria dela, ela, contudo, tinha que engolir quietinha a atitude preconceituosa deles. Essa diferença existiu por causa da sexualidade dela ou devido ao status social deles? Talvez se fosse ela a riquinha e eles os pobres, mesmo tento ela a característica sexual que tinha, o ocorrido teria tido uma interpretação diferente. Na verdade o maior preconceito ainda é contra os pobres, sejam eles o que forem, brancos, negros, héteros ou gays.
Viver o tempo todo como vítima de preconceito torna as pessoas psicóticas, elas sabem que precisam se proteger, elas fazem isso se anulando ou partindo pra cima. Contudo, a explosão que ela tinha tido com o casal não havia aplacado sua revolta, então voltou a pensar em matar. A tarde acabou-se, a chuva começou a cair, sentada nos degraus do coreto ela assistia as lágrimas do céu lavando o chão da praça, quanta água limpa seria necessária para lavar aquele lugar? Naquele lugar ela se sentia mais em casa do que junto da mãe e dos irmãos, naquele território de párias e desgraçados.
O tempo passou, o pouco de sol que apareceu se foi, em sua mente a decisão já estava tomada. A buzina do motoboy a tirou do transe, agora já era noite, na cidade e em seu coração.

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Ele levou os meus irmãos para longe de mim, e os que me conhecem tornaram-se como estranhos para mim. Os meus parentes se afastam, e os meus conhecidos se esquecem de mim. Os que me visitam e também as minhas servas me consideram estrangeiro; sou como um estranho aos seus olhos. Chamo o meu servo, e ele não me responde; minha boca tem que lhe suplicar. O meu hálito é intolerável para a minha mulher; sou repugnante para os filhos de minha mãe. Até os pequeninos me desprezam; quando chego, fazem comentários a meu respeito. Todos os meus amigos chegados me rejeitam, e até os que eu amava se voltaram contra mim.
Jó 19.13-19

A pior armadilha que o diabo arma para o homem é a solidão, talvez porque assim o inimigo de nossas almas ache que consiga nos prender a uma situação semelhante a que ele se encontra, a absoluta solidão de quem se rebelou contra Deus e que como consequência ficou sem acesso às obras da luz. Muitas vezes nós seguimos nos enganando, dando ouvidos ao diabo, colocando-nos num distância de tudo querendo nos proteger da dor. A solidão humana, contudo, enquanto há vida na carne, tem cura, visto que enquanto há existência neste mundo é possível ter acesso a Deus.
A solidão é um processo de demarcação de território que começa separando um espaço reservado de proteção, esse se torna um local fechado de aprisionamento, e depois se transforma num mundo particular, repleto de monstros acorrentados nos cantos escuros que tratamos como animais de estimação. Nesse surrealismo tenebroso onde procuramos conforto para continuar vivendo, cultivamos gostos exóticos, adquirimos prazeres torpes, distorcendo todo o bem que Deus planejou originalmente para o homem.
A incredulidade em Deus, a desconfiança nos homens, mas acima de tudo, o orgulho de nos colocarmos como indignos dos julgamentos humanos, como se estivéssemos acima de todos, como deuses, é o que nos leva a mapear a solidão. O humilde nunca fica só, o simples está sempre cercado de amigos, aquele que se considera parte sempre achará outras partes para formar com ele um todo útil para compartilhar o bem. O completo, contudo, se basta e se distancia, torna-se um micro lúcifer, melhor que todos, acima do criador.
Não fique só, não definitivamente, sim, a solidão é positiva e necessária de vez em quando, é bom separar-se para ver-se, mas faça isso debaixo do temor de Deus. Horizontalize-se, se analise, se sinta, veja-se como o ser único que você é, que independe de família, de amigos, de esposa ou de marido, mesmo da profissão e dos bens, uma identidade espiritual eterna, mas que isso seja um momento de reflexão. Então, depois de se medir, verticalize-se, se apresente a Deus, em nome de Jesus, lavado pelo sangue do cordeiro, permita que os raios de luz da sabedoria divina possam iluminar todas as suas dimensões.
Não permaneça só, busque ajuda, não desconfie tanto assim do ser humano, existe muita gente boa neste mundo, muitos que podem ser amigos leais, que podem nos ajudar, não por serem melhores, mas por serem semelhantes. A melhor coisa de viver a vida, estudando, trabalhando, casando-se, participando de grupos sociais, é aumentar nossas referências. As pessoas são referências, se não for do que você pode ser, é do que você não precisa ser. Ouça todas as opiniões, não se amedronte com aquilo que pode colocá-lo numa posição de desconforto, a novidade sempre traz receio, aterroriza, às vezes. Mas isso é somente o choque inicial, se tiver paciência, de sentir, depois de entender, você pode tomar para si uma parte que vai fazê-lo alguém melhor, e o resto, bem, o resto você joga fora, sem culpa, conscientemente.
Deus usa tantas coisas para que possamos aprender novas coisas, às vezes ele até usa a igreja, mas sempre usa a Bíblia, e até mesmo filósofos mundanos e ateus podem ensinar sabedoria ao que tem olhos e ouvidos corteses. Deus só se manifesta aos filhos? Não, Deus se manifesta a todos, através de tudo, da natureza e do universo, principalmente. A diferença é que as obras da luz trazem aos filhos de Deus salvação, os conduzem à adoração, enquanto que os cegos de coração falam, ouvem, tocam, mas não entendem, não veem a manifestação maravilhosa e onipresente da pessoa de Deus.
Todo esse conhecimento está disponível para aquele que se envolve com as diferenças, se expõe aos confrontos, não tem receio de pensar, de argumentar e contra-argumentar, aquele que deixando a solidão, se faz parte do todo permitindo que o Espírito Santo ligue, cure e transforme. Jesus é a mão de Deus estendida para que o homem saia da solidão, sem ele sempre haverá solidão, sem ele ciência e filosofia, luxúria e violência, rancor e incredulidade, são as mesmas coisas, paredes de mundos individuais prendendo o homem a si mesmo.
Jesus é o único que pode libertar-nos de nós mesmos, autocontrole e boa saúde física não podem, sincera religiosidade não pode, atitude social e política correta não pode, por melhor que o homem tente ser, sozinho, sem experimentar a redenção de Deus através de Jesus, ele sempre construirá templos para si mesmo, mesmo que sejam discretos e humildes, serão centros de adoração do próprio eu. O que tem mais poder do que Deus não é o diabo ou ações e intenções do homem mentiroso e violento, mas é o nosso próprio eu quando escolhe ser o centro de tudo. Somente a entronização de Deus em nossos corações através de Jesus é que pode libertar-nos de nós mesmos, somente assim é que podemos sair da solidão.

Porque o SENHOR consolará Sião; consolará todos os seus lugares destruídos e fará o seu deserto como o Éden e a sua solidão como o jardim do SENHOR. Nela haverá prazer e alegria, ação de graças e som de cântico.
Isaías 51.3

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