Um dia que não era
pra ter começado, e que acabaria somente dois dias depois. Todas as vozes do
mundo parecem gritar pra nós aquilo que não queremos ouvir, em determinados
momentos de nossas vidas, dizem não para uma decisão errada que tomamos insistentemente
por anos e que finalmente tornamos fato. Ela se levantou da cama com a mãe
gritando qualquer coisa, acabando com a pouca privacidade que tinha na casa.
Vestiu seu único par de tênis, sua velha calça jeans, mas procurou com cuidado
uma camiseta, não que ela tivesse muitas opções, mas queria uma especial, escolheu
a do “Black sabbath”, ela seria sua companhia naquele sábado negro.
Sobre a pia da
cozinha, uma velha garrafa térmica ainda guardava resto de café, ela entornou o
líquido num copo americano, tomou-o e saiu. Parecia caminhar no solo de um
oceano, pesadamente, em meio a uma água viscosa. O ar estava engrossava com o
fardo que vazava de seu coração que teimava em procurar a solução errada para seu
problema. Na manhã daquele dia, o ônibus estava vazio, ela chegou depressa ao
centro, mas mesmo com o céu pesado de chuva as pessoas entravam e saíam das
lojas. A praça estava cheia de alegria, ela, porém, queria estar só, não queria
nem Daniela e as meninas, então se pôs a andar.
A solidão é a cama
onde se deitam os mais terríveis males do homem, esses males são amantes
ciumentos, não aceitam outra companhia além do coração solitário. As
inseguranças geram a desconfiança e o medo, esses geram o ódio, o ódio gera a
morte, quando o coração se torna assassino, ele caminha só. Ela alienava-se
porque se sentia só, ninguém a entendia, ninguém a amava, e aquela que ela precisava
tanto estava longe. Na cama da solidão o ódio começou a fortalecê-la, a
enchê-la de coragem para matar. A morte é o silenciar da razão, ela não queria
mais papo, mais argumentos, precisava agir, mudar seu destino, mudar sua vida,
impor-se, com todas as forças que tinha.
Seu corpo
endureceu-se à medida que caminhava, não pediu licença, que os outros saíssem
do caminho, e tinha sido sempre assim? Se ela se fragilizasse não ficaria de pé
no meio daquela gente preconceituosa. Ela não queria ser homem, talvez outras
até quisessem, ela não queria sexo errado, talvez outros quisessem, ela queria
ser feliz, queria ser ela mesma, sem precisar dar explicações por isso.
Pode-se dizer que
todos os homens querem o amor de um único jeito, e que essas diferenças fazem de
uns menos homens que os outros? É certo dizer que todas as mulheres amam da
mesma maneira, e umas são menos mulheres do que outras por causa dessas
diferenças? Então por que ela tinha que ser igual a todas as mulheres que
também gostavam de mulheres? Além do mais ela não se sentia menos mulher pelo
fato de não gostar de homem, isso era o que muita gente, muita mesmo, não
entendia.
Ela era mulher,
gostava de se sentir assim, eram as outras pessoas que não aceitavam o jeito
dela ser, e era esse incômodo, dos outros, que antes a incomodava. Agora ela
entendia as coisas, que todo o nojo que sentia dela mesma, quando era mais
nova, era o nojo que os outros tinham por ela. Entendida, ela começava a se
assumir, contudo fazia isso do jeito errado, ao invés de anular o ódio que
sentiam por ela com amor, ela o direcionou para os outros como morte.
Que segurança
existe quando ela é obtida a troco de roubar a segurança do outro? Paz a troco
de guerra precisará de guerra constante para ser mantida. A paz verdadeira
liberta-se do opressor, contudo, lançando-o pra longe, a sua própria sorte, sem
precisar exterminá-lo. O mal não pode ser exterminado com outro mal, se assim for
feito, ele retornará mais forte, como as cabeças da Hidra de Lerna que cortadas
davam origem a outras duas. É melhor caminharmos em direção oposta a ele, o
ignorarmos, o mal não desaparece com o confronto, mas com o desprendimento, ele
se enfraquece quando é desprezado. Ele morre porque para de ser alimentado pelo
ódio, o ódio que dorme na cama da solidão e que mata, antes do odiado, aquele
que odeia.
Ela caminhou pela
rua Floriano Peixoto até à delegacia, depois pegou à direita e à direita novamente
e voltou pela Santa Rita, então pegou à direita e outra vez à direita e estava de
novo na Floriano. Naquele looping ela não via as pessoas, eram sombras que
passavam por ela, através dela, ela não ouvia ninguém, apenas uma voz dizendo a
ela que precisava matar. Ela sentia o aço frio do revólver na mão, o gatilho no
dedo, e esse pressionando em slow motion dando o start que colocaria o projétil
fatal dentro da carne de um homem, que homem? Aqueles que tanto a tinham
machucado, aquele que a havia molestado. Se o bem tem visão precisa, sabe o que
faz e para quem faz, o mal é cego e sem noção, não espere justiça de coração
cheio de ódio, ele se vinga contra todos, traiçoeiramente.
Ébria de ódio, nem
percebeu quando esbarrou numa mulher, essa não saiu de sua frente, quando ela
quis passar, também se achava no direito de ter prioridade à passagem por estar
cheia de outro mal, a soberba.
- Mas que menina
insolente, – disse a mulher – quase me derrubou – os enormes óculos escuros
escondiam a alma da perua assim como a ressaca de muitos gins com tônica que a
tinham feito dormir na madrugada passada.
- Quem você acha
que é? – disse o cara que a acompanhava.
- Bandidinha –
continuou a mulher, protegida em cima de saltos altos que teimavam em ficar de
pé sobre as calçadas ruins de Itu.
- Trate assim suas
comparsas – disse o homem debaixo de implantes capilares que pareciam tão
artificiais quanto o estilo de milionário que ele queria que todos acreditassem
que tinha. Nunca entendi porque alguns homens fazem implantes ou usam perucas,
são de uma falsidade tão óbvia que nunca convence ninguém.
Ela não dizia nada,
apenas olhava, mas não os via, ainda estava presa às imagens do plano do crime.
Contudo, não fora a bala que havia sido disparada, mas uma sessão de
humilhação, não havia fim para as palavras-facas que eles lançavam contra ela.
Tem gente que não vive, mas existe aguardando uma oportunidade para impor-se
sobre os outros.
- Machona – disse a
mulher, enquanto o homem ria arrogantemente alto, na cara dela. Ela não
aguentou, empurrou-o, a calçada estreita acabou e o homem parou no meio da rua.
Um carro brecou em cima, uma senhora gritou, a polícia veio.
- Ela tentou matar
meu marido – disse a mulher ao policial, esse conhecia a garota das ruas do centro.
- Eles ofenderam a
menina – disse um senhor, alguém teve a coragem de defender a menina.
- Ela me empurrou –
disse a mulher.
- Alguém se
machucou? – perguntou o policial, ao que ninguém respondeu.
- Não aconteceu
nada – disse a menina.
- Se quiserem dar
queixa podem ir até a delegacia, fica no final da rua – informou o guarda, não
levando a sério o surto do casal.
- Não vou mais
perder tempo com essa gentinha – disse a mulher pegando a mão do marido e
pondo-se a caminho.
- Vai com calma
menina – disse o policial, ela deu meia volta e dirigiu-se à praça.
O casal poderia ter
dado queixa por causa da grosseria dela, ela, contudo, tinha que engolir
quietinha a atitude preconceituosa deles. Essa diferença existiu por causa da
sexualidade dela ou devido ao status social deles? Talvez se fosse ela a
riquinha e eles os pobres, mesmo tento ela a característica sexual que tinha, o
ocorrido teria tido uma interpretação diferente. Na verdade o maior preconceito
ainda é contra os pobres, sejam eles o que forem, brancos, negros, héteros ou gays.
Viver o tempo todo
como vítima de preconceito torna as pessoas psicóticas, elas sabem que precisam
se proteger, elas fazem isso se anulando ou partindo pra cima. Contudo, a
explosão que ela tinha tido com o casal não havia aplacado sua revolta, então
voltou a pensar em matar. A tarde acabou-se, a chuva começou a cair, sentada
nos degraus do coreto ela assistia as lágrimas do céu lavando o chão da praça, quanta
água limpa seria necessária para lavar aquele lugar? Naquele lugar ela se
sentia mais em casa do que junto da mãe e dos irmãos, naquele território de
párias e desgraçados.
O tempo passou, o
pouco de sol que apareceu se foi, em sua mente a decisão já estava tomada. A
buzina do motoboy a tirou do transe, agora já era noite, na cidade e em seu
coração.
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“Ele levou os meus irmãos para longe de mim,
e os que me conhecem tornaram-se como estranhos para mim. Os meus parentes se
afastam, e os meus conhecidos se esquecem de mim. Os que me visitam e também as
minhas servas me consideram estrangeiro; sou como um estranho aos seus olhos. Chamo
o meu servo, e ele não me responde; minha boca tem que lhe suplicar. O meu
hálito é intolerável para a minha mulher; sou repugnante para os filhos de
minha mãe. Até os pequeninos me desprezam; quando chego, fazem comentários a
meu respeito. Todos os meus amigos chegados me rejeitam, e até os que eu amava
se voltaram contra mim.”
Jó 19.13-19
A pior armadilha
que o diabo arma para o homem é a solidão, talvez porque assim o inimigo de
nossas almas ache que consiga nos prender a uma situação semelhante a que ele
se encontra, a absoluta solidão de quem se rebelou contra Deus e que como
consequência ficou sem acesso às obras da luz. Muitas vezes nós seguimos nos
enganando, dando ouvidos ao diabo, colocando-nos num distância de tudo querendo
nos proteger da dor. A solidão humana, contudo, enquanto há vida na carne, tem
cura, visto que enquanto há existência neste mundo é possível ter acesso a
Deus.
A solidão é um
processo de demarcação de território que começa separando um espaço reservado
de proteção, esse se torna um local fechado de aprisionamento, e depois se
transforma num mundo particular, repleto de monstros acorrentados nos cantos
escuros que tratamos como animais de estimação. Nesse surrealismo tenebroso onde
procuramos conforto para continuar vivendo, cultivamos gostos exóticos, adquirimos
prazeres torpes, distorcendo todo o bem que Deus planejou originalmente para o
homem.
A incredulidade em
Deus, a desconfiança nos homens, mas acima de tudo, o orgulho de nos colocarmos
como indignos dos julgamentos humanos, como se estivéssemos acima de todos,
como deuses, é o que nos leva a mapear a solidão. O humilde nunca fica só, o
simples está sempre cercado de amigos, aquele que se considera parte sempre
achará outras partes para formar com ele um todo útil para compartilhar o bem.
O completo, contudo, se basta e se distancia, torna-se um micro lúcifer, melhor
que todos, acima do criador.
Não fique só, não
definitivamente, sim, a solidão é positiva e necessária de vez em quando, é bom
separar-se para ver-se, mas faça isso debaixo do temor de Deus.
Horizontalize-se, se analise, se sinta, veja-se como o ser único que você é,
que independe de família, de amigos, de esposa ou de marido, mesmo da profissão
e dos bens, uma identidade espiritual eterna, mas que isso seja um momento de
reflexão. Então, depois de se medir, verticalize-se, se apresente a Deus, em
nome de Jesus, lavado pelo sangue do cordeiro, permita que os raios de luz da
sabedoria divina possam iluminar todas as suas dimensões.
Não permaneça só,
busque ajuda, não desconfie tanto assim do ser humano, existe muita gente boa
neste mundo, muitos que podem ser amigos leais, que podem nos ajudar, não por
serem melhores, mas por serem semelhantes. A melhor coisa de viver a vida,
estudando, trabalhando, casando-se, participando de grupos sociais, é aumentar
nossas referências. As pessoas são referências, se não for do que você pode
ser, é do que você não precisa ser. Ouça todas as opiniões, não se amedronte
com aquilo que pode colocá-lo numa posição de desconforto, a novidade sempre
traz receio, aterroriza, às vezes. Mas isso é somente o choque inicial, se
tiver paciência, de sentir, depois de entender, você pode tomar para si uma
parte que vai fazê-lo alguém melhor, e o resto, bem, o resto você joga fora, sem
culpa, conscientemente.
Deus usa tantas
coisas para que possamos aprender novas coisas, às vezes ele até usa a igreja, mas
sempre usa a Bíblia, e até mesmo filósofos mundanos e ateus podem ensinar
sabedoria ao que tem olhos e ouvidos corteses. Deus só se manifesta aos filhos?
Não, Deus se manifesta a todos, através de tudo, da natureza e do universo, principalmente.
A diferença é que as obras da luz trazem aos filhos de Deus salvação, os
conduzem à adoração, enquanto que os cegos de coração falam, ouvem, tocam, mas
não entendem, não veem a manifestação maravilhosa e onipresente da pessoa de
Deus.
Todo esse
conhecimento está disponível para aquele que se envolve com as diferenças, se
expõe aos confrontos, não tem receio de pensar, de argumentar e
contra-argumentar, aquele que deixando a solidão, se faz parte do todo
permitindo que o Espírito Santo ligue, cure e transforme. Jesus é a mão de Deus
estendida para que o homem saia da solidão, sem ele sempre haverá solidão, sem
ele ciência e filosofia, luxúria e violência, rancor e incredulidade, são as
mesmas coisas, paredes de mundos individuais prendendo o homem a si mesmo.
Jesus é o único que
pode libertar-nos de nós mesmos, autocontrole e boa saúde física não podem,
sincera religiosidade não pode, atitude social e política correta não pode, por
melhor que o homem tente ser, sozinho, sem experimentar a redenção de Deus
através de Jesus, ele sempre construirá templos para si mesmo, mesmo que sejam
discretos e humildes, serão centros de adoração do próprio eu. O que tem mais
poder do que Deus não é o diabo ou ações e intenções do homem mentiroso e
violento, mas é o nosso próprio eu quando escolhe ser o centro de tudo. Somente
a entronização de Deus em nossos corações através de Jesus é que pode
libertar-nos de nós mesmos, somente assim é que podemos sair da solidão.
“Porque o SENHOR consolará Sião; consolará
todos os seus lugares destruídos e fará o seu deserto como o Éden e a sua
solidão como o jardim do SENHOR. Nela haverá prazer e alegria, ação de graças e
som de cântico.”
Isaías 51.3
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