28 de set. de 2014

18 - Andor

Dona Vera era uma velha que me incomodava, todos na rua a tratavam com respeito, era a moradora mais antiga da vila, mas entre eu e ela não havia química, se posso dizer assim, talvez porque ela representasse tudo aquilo que eu mais não queria ser, e que ao mesmo tempo estava propenso a ser, talvez porque de alguma maneira ela lembrava meus pais, o que eles tinham de ruim, a maneira como eles tinham me criado.
Não gosto que me obriguem a fazer algo, só porque todos fazem assim, isso lembrava a vida rotineira de meus pais, com horários fixos para as refeições, padrões de vida que nunca mudavam tirando deles o direito à liberdade e às boas surpresas. Incomoda-me gente, por exemplo, que só gosta de música erudita ou de jazz, porque foram ensinados assim por seus pais. Não se expõem a outros estilos, e pior que isso é que se sentem superiores às outras pessoas por achar que suas dileções são as melhores. Gente assim priva-se de aprender com sabedorias e artes que não são as consideradas mais sofisticadas pelos críticos e acadêmicos, mas que representam experiências reais de vida de gente simples. Há beleza numa música sertaneja de raiz tanto quando num concerto de Tchaikovsky ou num improviso de Miles Davis.
Para resumir em uma frase: odeio dogmas e dona Vera era o tipo de pessoa absolutamente dogmática, a começar por sua religião. Gente que sempre fez a mesma coisa porque foi assim que foi ensinada, é assim que ensinam a seus filhos e assim serão até a morte. Ela tinha o horário certo para acordar, às seis da manhã todos os dias, fizesse chuva ou sol, fossem dias da semana, finais de semanas ou feriados. Ela tinha as missas certas para ir, e ela ia a três missas semanais, fora os terços e correntes de oração. Ela fechava as janelas e apagava as luzes para dormir sempre que a novela das nove da rede Globo acabava. Ela não era uma pessoa, mas um andor de dogmas, era assim que se sentia valorizada, era isso que arrogava para todos.
Tinha sido casada com um militar, o que a tinha graduado com louvor na escola dos dogmas, hierarquias e cerimoniais, já era viúva a mais de trinta anos. Não era uma mulher feia, pequena, magra, sempre alinhada, alguém que viveria até os cem anos, e viveu, contudo, nunca despertou em nenhum outro velho desejo para se aproximar dela e por fim em seu luto. Tem gente que já nasce de luto, se enclausuram dentro de vestes emocionais negras que as afastavam da felicidade, meus pais eram assim. Mas acho que Vera não era mulher para casar, deveria ter permanecido solteira, religiosa e casta.
Ela morava sozinha, na casa do lado esquerdo à minha, seus filhos, que também residiam na cidade, sempre a visitavam, mas ela, com mais de setenta anos, era independente. Essa era a vantagem de se morar no velho centro de Itu, facilidade de se chegar ao comércio, aos templos, às escolas, rapidamente e sem automóvel.
Como eu disse, não havia química entre nós, ela me olhava com o canto do olho, enojada, como quem vê o diabo na frente, já que como vigilante da moral e dos bons costumes me interpretava, sozinho e trabalhando em casas noturnas, como um libertino. Para alguém que jogava na cara de todo mundo sua religiosidade inabalável, faltava, convenientemente ao seu cristianismo, a compaixão e a caridade, pelo menos comigo, mas que vantagem ela teria em demonstrar virtudes para com um amaldiçoado como eu?
Algumas pessoas conseguem passar pela vida se protegendo dos confrontos que poderiam levá-las à consciência da fraqueza humana, de seus limites. É essa consciência que nos torna humildes, que faz com que tenhamos misericórdia pelos outros porque entendemos que também precisamos de misericórdia. Dona vera era alguém assim, escondida dentro dos templos romanistas tinha se mantido protegida dela mesma. Mas é claro que ela pagava preços caros para se manter assim equivocada, já que a vida não perdoa ninguém, está sempre chamando as pessoas para a realidade. Quem se nega a ver a verdade, vai se esfriando e se distanciando de tudo.
Seu calcanhar de Aquiles era Fabinho, o filho mais novo. Demorou-se a casar, casou-se com uma professora, demoraram a ter um filho, e logo após o nascimento do menino veio a público o romance dela com um colega professor. Separam-se sobre total desaprovação de dona Vera, e a dúvida sobre a paternidade da criança sempre existiu, já que uma das reclamações da esposa, e isso era conhecido na vila, era que o marido não tinha relações sexuais com ela.
Fabinho tinha duas facetas, uma delas insistia em querer a esposa de volta, pressionado pela moralidade da família que o acusava, a outra o levava a casos com rapazes. Diziam que ele tinha aquela sexualidade denominada bi, se é que isso seja possível, eu acredito que isso não existe, não se pode ter as duas coisas com prazer. Acho que ele era apenas alguém, como tantos, sem coragem para assumir aquilo que realmente o fazia feliz.
Se ele era ou não homossexual ou se ele era isso por motivos legítimos, se é que existem motivos legítimos para isso, eu não sei. Todavia, sempre que o encontrava, e eu sempre o tratava com respeito, sentia nele uma alma em luta, parte dominada por sua mãe, que exigia dele a heterossexualidade, e outra parte também dominada pela mãe, só que de forma inconsciente. Essa outra parte, usando uma interpretação freudiana, queria homens, já que sua mãe, dominadora, era seu exemplo de sexo forte, era quem ele queria ser, e não seu pai, sempre distante e passivo, mais preocupado com o quartel do que com a família.
Lembro-me de ter sido acordado às oito horas de um sábado, depois de ter chegado às três horas em casa do Grande Hotel, por uma gritaria na rua. Um homem, dentro de um carro, gritava para Fabinho, na varanda da casa da mãe. Ele dizia algo como, “sai daí, para de se esconder debaixo da saia de sua mãe, vem aqui que eu te mostro o que é ser homem”. Fábio não saía pra rua e o homem só foi embora quando um veículo policial chegou, chamado por dona Vera. Depois desse incidente outro ocorreu, uma bomba foi jogada na garagem da casa de Fábio, por sorte não atingiu o tanque de gasolina do carro estacionado e mandou tudo para o ar. Disseram que isso foi feito pelo homem que tinha brigado com Fabinho no sábado de manhã, seu nome era Clóvis, ele era quem vivia com a ex-mulher do caçula de dona Vera.
Esses confrontos entre Clóvis e Fábio eram constantes na cidade, e só terminaram quando um fim trágico levou Clóvis para a outra vida. Numa festa junina, Clóvis brigou com a amante, agindo com violência com ela e com o menino, isso na frente de pais que assistiam a quadrilha dos filhos. Coagido por outras pessoas que o viram cometer tal abuso, ele se refugiou no banheiro da escola onde a festa acontecia. Só saiu de lá quando a polícia chegou e o levou preso. Alguns dias depois soubemos que Clóvis foi encontrado morto, enforcado numa cela da prisão municipal. Comentava-se que dona Vera, viúva de um militar importante da cidade, poderia ter tido alguma influência na morte, morte que não teria sido por suicídio.
Segredos macabros escondem-se atrás de velhinhas aparentemente ingênuas que vão às missas todos os domingos, violências desmedidas escondem-se em casas de famílias tradicionais, depravação sexual pode esquentar noites de casais que caminham tranquilamente nas manhãs de sábado pelas feiras locais.
O destino, todavia, tinha outros planos para dona Vera e eu. Se destino é preconcebido por Deus ou resultado de escolhas humanas posteriores, não vou discutir aqui, apenas usarei o termo como significando o caminho de cada ser humano. Na madrugada da terça-feira, seguida àquela segunda-feira quando o gato havia me acordado, eu conseguia dormir quando fui acordado por um barulho. “É aquele gato de novo”, pensei, contudo, à medida que fui despertando percebi que era um barulho diferente.
Minha casa e a casa de dona Vera eram conjugadas, tinham sido construídas por uma mesma pessoa, num único terreno. Ela era proprietária, eu alugava o imóvel. Uma única parede separava-nos, leves ruídos feitos por um eram ouvidos pelo outro, de madrugada então, com televisores desligados e com a cidade repousando, cidade que já era calma durante o dia, um simples murmúrio feito por Vera eu podia ouvir com clareza.
Levantei-me, fui até a cozinha, abri a porta dos fundos e cheguei ao quintal, de lá ouvi um choro baixo, revezado com um pedido de socorro. “Meu Deus”, pensei eu, “essa velha está morrendo, o que é que eu faço?”. Não tinha o número de telefone dela, mas peguei a lista e rapidamente achei o endereço e liguei. De casa eu podia ouvir o telefone fixo dela tocando, mas ninguém atendia. “Vou ter que entrar nesta casa”, eu resolvi.
Se ela não podia atender telefone, muito menos poderia abrir a porta da sala, então encostei um cadeira no muro do meu quintal e olhei. A porta dos fundos que dava para o quintal dela, era de vidro, seria mais fácil de quebrar do que a de madeira da frente, com sorte ela teria deixado a chave na fechadura do lado de dentro e eu poderia abrir. Então subi no muro, sentei-me nele e pulei para o quintal de dona Vera. Fui até a porta e levantei o braço para quebrar o vidro, então parei, pensei, “vou me cortar todo”. Olhei para o varal e vi um pano de prato secando, peguei o pano, enrolei em volta da mão e bati no vidro, que se quebrou. Sim, a chave estava na fechadura do lado de dentro, eu abri a porta e entrei.
“Socorro”, eu ouvia bem baixinho, liguei a lâmpada da cozinha e vi, no corredor, a velha caída.
- Dona Vera, o que é que ouve – perguntei assustado.
- Dói muito, do lado esquerdo, eu caí, acho que quebrei o pé – ela sussurrava com uma voz abafada, sem forças. Eu me abaixei e passei a mão sobre sua cabeça, ela estava deitada de frente.
- Vou ligar pro hospital – eu disse.
- O telefone está na sala, ao lado dele tem os números de emergência – ela respondeu.
Entrei na sala, acendi a lâmpada, achei o telefone, numa mesinha, ao lado da televisão, e sobre a mesinha havia uma relação com números de emergência, então liguei para o hospital.
- Alo, de onde fala? – eu perguntei.
- Hospital São Camilo, emergência – uma voz me respondeu.
- Preciso de uma ambulância... – antes que eu passasse o endereço a pessoa me respondeu.
- Aí é a residência da dona Vera?
- Sim.
- Já identifiquei pelo número.
- Acho que ela está tendo um enfarte.
- Ok, já estamos enviando uma ambulância.
- Obrigado.
Voltei ao corredor, e me ajoelhei.
- Dona vera, a ambulância já está vindo.
Ela me olhou por um instante, balançou a cabeça e tornou a olhar para o lado. Eu tinha que fazer mais alguma coisa, não poderia ficar lá, indiferente, aqueles poderiam ser os últimos momentos dela. Todo o incômodo que ela sempre me causava foi desaparecendo, tive dó, então com muito cuidado me aproximei um pouco mais e coloquei a cabeça dela em meu colo, ela não esboçou qualquer reação.
Nunca tinha entrado dentro daquela casa, era tudo tão velho, tão grande, tão frio. Com o tempo uma casa, seus móveis e sua decoração, transformam-se no corpo de seu dono. Sofás, mesas, cadeiras a aparadores antigos, deveriam ser aqueles que ela adquiriu quando se casou quarenta anos atrás. Couro escuro e madeira pesada, davam ao local uma aparência litúrgica, não parecia um lar, mas um templo. Aquela casa era o andor de Vera.
Na posição onde estava, eu via quase tudo, a minha frente estavam os dois quartos, à esquerda a sala, à direita um banheiro e atrás de mim a cozinha. A planta daquela casa tinha sido mudada, era diferente da minha, de maneira que a cozinha era maior, também servia de sala de jantar, e havia outro banheiro no fundo. O quintal era menor que o da minha casa. No primeiro quarto à esquerda, que dava para a rua, havia uma cama de solteiro, um guarda-roupa e uma máquina de costura, uma Vigorelli antiga, relíquia, nem era elétrica. No outro quarto, dos fundos, havia uma cama de casal, dois criados mudos, uma penteadeira, fazia tempo que eu não via uma assim, uma cômoda, um imenso guarda-roupa e uma poltrona.
Contudo, o que revela não o corpo, mas a alma de uma pessoa em uma casa são os quadros e fotografias. Eu não tinha fotos em casa, eu não tinha lembranças que queria guardar, Vera, não, havia muitas fotos espalhadas pela casa. Fotografias de jovens, que já deveriam ser velhos, de crianças, que sempre seriam crianças para uma mãe ou uma avó, e imagens de santos, de muitos santos. Aquele quadro clássico, de Maria mãe de Jesus e de Jesus, ambos com os corações figurados em seus peitos, o dela com galhos de rosas brancas ao redor, e o dele com galhos de espinhos, ocupava o centro da parede direita da sala, na parede esquerda ficava um televisão, enorme e antiga. No centro da sala, sobre uma mesinha, a Bíblia da Barsa, aberta, reposava sobre um aparato. Lembrei-me da casa de meus avós maternos, me lembrei daquele sentimento de limpeza clínica e de vazio afetivo. Meu coração apertou e sangrou, igual ao coração do Cristo no quadro.
Vera tinha vida, família, amigos, eu ouvia com despeito o barulho das festas que ocorriam naquela casa, a mais frequentada delas no dia doze de outubro. Pensei, “meu Deus, essa velha é mais feliz do que eu”. Mas não havia, pelo que eu percebi naquele momento, uma foto sequer do falecido, não vi nenhum homem fardado, ou ao lado de Vera, com idade próxima a dela. Nas fotos, vi sim, muitos registros dela e de Fabinho juntos, vi também uma de Fabinho com a esposa e o filho.
Foram dez ou quinze minutos, aguardando a ambulância, a cabeça de Vera em meu colo parecia tão tranquila, ela se queixava de dor, gemia baixinho, mas recebia meu aconchego com serenidade. Naquele momento todo preconceito e rancor desapareceram, éramos dois seres humanos sem diferenças de idades, de moral ou de religião, tive dó da fragilidade em que se encontrava aquela mulher. Naquela hora que poderia ser sua última, Deus tinha levantado alguém, que sempre se colocou como seu inimigo, como seu amigo.
“Será que ela me odiava do jeito que eu achava? Será que ela realmente tinha algo contra mim? Será que ela era uma senhora orgulhosa que se achava melhor do que os outros? Ou seria tudo invenção de meu coração amargo? Será que eu mereceria um fim daquele jeito? Acolhido por alguém? Ou morreria sozinho num beco sujo da cidade, com uma bala na cabeça, desprezado pelo mundo? Será que o problema era o mundo ou era eu? Era o mundo que me rejeitava ou era eu, e eu sim, no meu grande orgulho, que negava a mim o direito de ser amado?”. Essas perguntas estavam em minha cabeça naquele momento.
Ouvi a ambulância chegando, coloquei a cabeça de dona Vera com cuidado no chão e fui abrir a porta.
- A chave está na fechadura – disse-me ela.
Eu acompanhei-a na ambulância até o hospital. As recepcionistas, como tanta gente naquela cidade, conheciam dona Vera, eles entraram em contato com Fabinho que veio rapidamente até o hospital. Eu o cumprimentei e fui embora. No dia seguinte, no horário do almoço, Fabinho veio até em casa me agradecer por ter ajudado sua mãe, eu pedi desculpas pela porta da cozinha, tinha sido apenas um aviso. Vera, naquela madrugada, tinha sido meu oitavo encontro, daquele momento em diante minha atitude com ela mudou, passamos a ser bons amigos e ela está viva até hoje.

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Quem sabe do coração das pessoas? Quem realmente conhece suas intenções? Quem sabe o que se passa naquele momento, o último? Quem sabe quem está pronto para morrer?
 O que é pior, acreditar numa mentira ou acreditar em nada? O que é mentira? Um desvio doutrinário, a idolatria de uma imagem ou de uma escultura, isso é uma mentira? De verdade, no mesmo nível que a idolatria de Israel no antigo testamento?
Quem pode julgar a sinceridade de um católico? Os evangélicos, até que ponto são melhores do que alguém, até que ponto não são mais arrogantes do que tantos que eles mesmos criticam? Até que ponto não são idólatras, não de homens santos, mas de ideias, de pregadores, de adoradores?
Julgamos, julgamos e julgamos, se são diferentes, então estão errados, são heréticos, estão desviados. Que engano, a diferença é tão diferente, tão variada, tão complicada. Deus ama, ama e ama, não o pecado, nem a atitude do pecador, mas seu coração. Esse amor é verdadeiro porque é o único que vê, não aquilo que a pessoa é ou foi, mas aquilo que ela pode vir a ser, caso se converta a ele.
E o que somos, de verdade? Em última instância somos o que fazemos, as consequência reais de nossas intenções. Ações são mais importantes que intenções? Quantas vezes nós evangélicos clamamos a Deus para que ele leve em consideração não o que fazemos, mas o que queremos fazer, nossas intenções, enquanto que outros, que julgamos piores, estão conseguindo por em prática aquilo que creem, ajudando quem precisa, executando caridade.
Não, não estou diminuindo de forma alguma o poder do nome de Jesus, em salvar mesmo aquele que foi crucificado ao lado de Cristo, que creu e não teve tempo de descer da cruz para fazer nenhuma boa ação, ele foi salvo simplesmente pela fé, pela intenção. Mas quem conhece o coração dos homens, repito? Tantos fariseus, que tiveram todo o tempo do mundo para fazer, e fizeram, tantas boas ações, crucificaram Jesus e podem estar condenados ao inferno eterno.

Quem entre vós é sábio e tem conhecimento? Mostre suas obras pelo seu bom procedimento, em humildade de sabedoria.
Mas não vos orgulheis, nem mintais contra a verdade, se tendes inveja amarga e sentimento ambicioso no coração. Essa não é a sabedoria que vem do alto, mas é terrena, animal e demoníaca. Pois onde há inveja e sentimento ambicioso, aí há confusão e todo tipo de práticas nocivas.
Mas a sabedoria que vem do alto é, em primeiro lugar, pura, depois pacífica, moderada, tratável, cheia de misericórdia e de bons frutos, imparcial e sem hipocrisia. O fruto da justiça semeia-se em paz para aqueles que promovem a paz.”
Tiago 3.13-18

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