Luz sobre luz, nem dava
para ver os olhos dela, foi só aos poucos que fui me acostumando, mas não era
uma claridade que doía, era gostosa. Como num filme onde uma única câmera é
usada e fica solta nas mãos do operador, inclinando-se, tremendo, acompanhando
com liberdade e ligeireza os movimentos da atriz, assim eu via as imagens. A
imagem, porque o rosto dela não saía de foco, a câmera, apaixonada por ela,
tentava invadi-la, mas era ela quem invadia a câmera. Às vezes eu via só a
boca, às vezes só um dos olhos, às vezes uma mexa de cabelo, ansiosamente eu procurava
algo que fosse além dos flashes.
Cabelos curtos e
castanhos escuros, lisos, olhos grandes, lábios grossos que nunca precisaram de
batom, e um sorriso maroto que colocava em seu rosto um jeito de criança que não
iria embora facilmente. Os anos passaram por ela, não muitos, sem que ela
deixasse de querer brincar, sem que ela parasse de fazer graça. Agora eu já
podia vê-la com mais nitidez, a luz da alma se acalmava e eu via a luz do céu,
um sol forte de meio-dia, sol de setembro esquentando um resto de inverno, mas
ela era assim, um raio forte de luz sobre icebergs de carne e osso. Sentada na
grama, verde claro de natureza nova, ela despetalava uma rosa, fazendo roleta-russa
com o bem me quer, mal me quer.
Ela levantou-se,
calça jeans surrada e apertada sobre pernas finas e longas, all star azul de
cano alto, como o da canção do Nando, camisa branca para fora da calça, solta
sobre os ombros, com as mangas dobradas até os cotovelos. Não sei o que era
mais limpo, o sol, sua camisa ou seus olhos. Então começou a andar,
displicentemente, mas sempre sorrindo, eu a olhei de baixo para cima, ela
parecia pisar nas nuvens, mas era somente sua cabeça que estava lá em cima,
como sempre esteve, seus pés marcavam o chão. Continuou caminhando, eu a vi por
trás, sua nuca, seus ombros, e lá na frente o mundo se acabou.
Deu-me medo, tudo
ficou subitamente escuro, a grama verde e o céu azul deram lugar a uma
metrópole onde o cinza era o que havia de mais dia. Por um momento ela olhou
para trás e eu vi seu rosto apertando-se, o sorriso com o canto da boca se recolheu
e ela se entristeceu, mas logo tornou a olhar para frente e caminhar.
À medida que
caminhava o calor foi se dissipando, eu que a observava do olimpo, com todas as
fraquezas e vaidades de um deus inventado, carregado de inveja e de desdém, comecei
a sentir frio. Ela cruzou os braços e esfregou o braço esquerdo com a mão direita,
ela também sentia frio, mas precisava seguir em frente.
Vi-me sendo elevado
e agora eu a enxergava lá embaixo, dando os primeiros passos para dentro de um
centro urbano, um lugar confuso e sujo, que me pareceu perigoso. Não havia Deus
naquele lugar. Pode o criador abandonar assim o que criou? Pode um jardim
transformar-se num lixão? Pode um ser humano, imagem do criador ver sua beleza distorcida
numa caricatura demoníaca? Pode, o homem deixa que isso aconteça e Deus
permite.
Agora ela passeava
entre seres estranhos, monstros mitológicos, pés de rato, troncos de homem,
cabeças de bode, morcegos com caras de mulheres velhas, cobras com rostos de
belos e sinuosos jovens maquiados exageradamente, eles eram horríveis. Agitavam
as mãos, emitiam sons amedrontadores, faziam caretas, mas não saíam do lugar,
permaneciam encolhidos no chão como se uma força invisível os mantivesse
amarrados. Muitos eu só enxergava partes do corpo, mas eles pareciam
esforçar-se para manter uma forma corpórea já que os membros sumiam e
apareciam, passando da forma monstruosa para algo que parecia um líquido
pastoso. Quando se moviam eu conseguia ver os rostos que deixavam as trevas e
se arriscavam nas sombras, aliás, sombras eram o máximo de luz que eles podiam
suportar.
Os seres estavam em
constante estado de tortura, apenas num instante de um êxtase sinistro eles
conseguiam provar algum prazer, o prazer dos psicopatas cruéis e egoístas que
destilam uma gota de satisfação diante do sofrimento inocente.
Eu senti o medo que
ela sentia andando entre aquelas criaturas, mas o medo não a impedia de continuar,
ela precisava estar lá, ela não tinha outra saída. Ela fazia isso há algum
tempo, nunca deixou de se sentir amedrontada, mas sempre foi em frente. Na
verdade ela provava um prazer torcido de experimentar aquela situação.
Para muitos, a
única maneira de se esquecer da dor, mesmo que por um curto espaço de tempo, é
sentindo uma dor maior. Mas que dor é maior que aquela que se sente por algo
que não se vê? Que não se controla? Que não se sabe de onde vem? Ali, naquelas
ruas, naquela noite sem fim, o medo podia ser visto, controlado, desviado, esse
era melhor que o medo que ela carregava em seu coração. Mas se fosse perguntado
a alguém que a conhecia, esse diria com toda a certeza que ela não tinha medo
de nada. Talvez não ter medo signifique não experimentar a ausência dele, mas ter
a capacidade de convencer os outros que o medo não existe. Ela fazia isso muito
bem, com charme, com seu sorriso de canto de boca, com suas mãos nos bolsos,
com os braços colados ao corpo, chutando alguma coisa com seu all star.
O caminho que a menina
percorria levou-a a um lugar tenebroso, um lugar sem sombras, um reino de trevas
totais, de alguma maneira eu podia ver o que acontecia lá. No centro daquela
escuridão havia uma região azulada, um neon pouca coisa mais claro que o negro
ao seu redor, uma treva diferente da própria treva, um local onde parecia que o
mal tinha uma liberdade limitada para existir. Aquela região parecia ter vida
própria, mas era diferente dos monstros pelos quais ela havia passado, começou
a crescer em sua frente e foi subindo, subindo, algo começou a crescer, ganhar
corpo até que alcançou altura próxima a quatro metros. A forma tinha pernas e
braços, e no alto de seu corpo azul dois pontos vermelhos incandesceram-se, eram
pequenas labaredas de um fogo frio, convergência de toda a maldade que existe
no universo. A forma se pôs a falar com ela, eu não entendia o que era dito,
nem via qualquer espécie de boca se movendo, mas sentia que o ser se comunicava
com a menina.
A garota ficou
parada por alguns instantes, ouvindo, então ela estendeu a mão direita aberta
para o ser. Esse estendeu a sua mão e depositou sobre a mão da menina, e isso
eu vi com clareza, três círculos dourados, parecendo-me moedas. A menina pegou
as moedas, colocou em seu bolso, abaixou a cabeça, deu meia volta e voltou pelo
mesmo caminho que veio. A coisa ficou por lá em pé, não diminuiu de tamanho, eu
sentia em meus ossos o pavor que a garota sentia por dar as costas a uma coisa
tão terrível, eu que olhava tudo prepotentemente de cima. Senti medo, mas achei
que estava protegido.
Então o ser olhou
para cima, esqueceu-se da garota e fitou seus pequenos e vermelhos olhos em
mim. Fui então derrubado de minha cômoda posição, caí ao chão, no meio daquela
cidade suja. Vi o ser se aproximar de mim, encolhido que eu estava, como os
pequenos monstros do caminho, aqueles que eu desdenhei antes, vi o ser se
encurvando sobre mim, como que querendo me abraçar. Faltava-me o ar, eu o
puxava pelas narinas, mas meus pulmões não funcionavam o suficiente, entrava em
meu corpo um ar viciado e morno com cheiro de parafina queimada e alho,
enquanto eu via os pontos vermelhos chegando cada vez mais perto de mim.
Mas nesse momento, tremendo de horror, vi à
direita, vindo do mais alto do céu, dois pontos brancos, eles foram caindo e
crescendo até que pousaram sobre os pontos vermelhos. Então houve uma explosão,
silenciosa, e tudo, o ser, os monstros, a cidade, polvilharam-se em pequenos
grãos que sumiram no ar. Ficou um céu azul lindo, e eu agora estava novamente
elevado sobre as nuvens. Lá embaixo a menina caminhava, no meio da grama verde.
Ela então parou, colocou a mão direita no bolso e tirou as três moedas de ouro.
Ela olhou para os círculos dourados, virou-os para um lado, para o outro, e
então olhou para cima, parece que ela me enxergava. Vi seu sorriso bobo e lindo
brincando comigo, enquanto ela jogava, sem dar muita importância, as moedas ao
chão.
Algo estranho
aconteceu, o chão engoliu as moedas e sobre o lugar nasceram três flores. A
menina então sentou-se no chão, arrancou uma das flores e se pôs a brincar com
as pétalas. Ela estava diferente agora, não parecia aquela de vinte e poucos
com rosto de quinze, era uma mulher madura, e no lugar da calça jeans e da
camisa branca masculina, ela usava um vestido colorido, continuava com ela o
sorriso maroto de canto de boca e o all star azul de cano alto.
Acordei daquele
sonho me sentindo esquisito, havia uma euforia gostosa, mas reprimida, isso
apertava meu coração. Eu sentia que algo bom poderia acontecer, contudo parecia
que coisas ruins, pessoas ruins, sentimentos ruins, impediam aquilo. Na verdade
eu tinha medo de felicidade, já a tinha desejado tanto e ela sempre se mostrava
falsa. Eu não queria ter outra decepção, não suportaria isso, não tinha mais
forças para construir algo, ver isso ruir e depois ter que continuar vivendo.
--------------------#--------------------
O Espírito Santo
acompanha o homem por toda a vida, ele está sempre procurando uma oportunidade
para mostrar que Deus existe, está próximo e quer ajudar. Todavia, antes de
tomar uma decisão consciente ao lado de Deus, o homem caminha no escuro, não sabe
para onde vai, não enxerga o mundo, as pessoas e a si mesmo com clareza. Nesse
caminho cego ele tropeça, bate de frente com as coisas, se machuca e machuca os
outros. Mas o Espírito Santo está sempre falando, chamando, revelando os tempos
da vida. Mesmo que no escuro o homem confunda as coisas, esteja à mercê da
mente e das paixões assim como das manifestações diabólicas, às vezes ele pode
reconhecer a voz amorosa de Deus.
Os homens estão
sedentos pela eternidade e são facilmente seduzidos pelos ministérios da
espiritualidade, vê-se isso no consumo deslumbrado que se tem por bruxaria e poderes
sobrenaturais vendidos pelos livros e filmes sobre magos e super-heróis. Mas no
orgulho de querer entender e controlar tudo com a própria mente, eles continuam
presos a este mundo, a esta existência, à carne. A eternidade de Deus só pode
ser vivida em Deus, e para isso não é necessário morrer na carne. Através de
Jesus começa-se a provar a eternidade nesta vida, já que as prioridades que o
Espírito Santo nos ensina através de Cristo são valores atemporais, virtudes
espirituais, os únicos bens que levaremos deste mundo para a eternidade.
Não despreze o
mundo espiritual, não brinque com o mundo espiritual, não se engane sobre ele,
ele existe, a sobrenaturalidade é real, mesmo que para Deus tudo seja natural,
tudo seja possível. Contudo, tenha humildade para se render ao Deus de Abraão,
de Israel, de José, de Moisés, de Samuel e de Davi, o pai do Cristo que viveu e
morreu sem pecado, e que ressuscitou e é o único e perfeito salvador do homem.
“Confia no SENHOR de todo o coração, e não no
teu próprio entendimento. Reconhece-o em todos os teus caminhos, e ele
endireitará tuas veredas.”
Provérbios 3.5-6
Nenhum comentário:
Postar um comentário