15 de out. de 2014

01 - All star azul


Luz sobre luz, nem dava para ver os olhos dela, foi só aos poucos que fui me acostumando, mas não era uma claridade que doía, era gostosa. Como num filme onde uma única câmera é usada e fica solta nas mãos do operador, inclinando-se, tremendo, acompanhando com liberdade e ligeireza os movimentos da atriz, assim eu via as imagens. A imagem, porque o rosto dela não saía de foco, a câmera, apaixonada por ela, tentava invadi-la, mas era ela quem invadia a câmera. Às vezes eu via só a boca, às vezes só um dos olhos, às vezes uma mexa de cabelo, ansiosamente eu procurava algo que fosse além dos flashes.
Cabelos curtos e castanhos escuros, lisos, olhos grandes, lábios grossos que nunca precisaram de batom, e um sorriso maroto que colocava em seu rosto um jeito de criança que não iria embora facilmente. Os anos passaram por ela, não muitos, sem que ela deixasse de querer brincar, sem que ela parasse de fazer graça. Agora eu já podia vê-la com mais nitidez, a luz da alma se acalmava e eu via a luz do céu, um sol forte de meio-dia, sol de setembro esquentando um resto de inverno, mas ela era assim, um raio forte de luz sobre icebergs de carne e osso. Sentada na grama, verde claro de natureza nova, ela despetalava uma rosa, fazendo roleta-russa com o bem me quer, mal me quer.
Ela levantou-se, calça jeans surrada e apertada sobre pernas finas e longas, all star azul de cano alto, como o da canção do Nando, camisa branca para fora da calça, solta sobre os ombros, com as mangas dobradas até os cotovelos. Não sei o que era mais limpo, o sol, sua camisa ou seus olhos. Então começou a andar, displicentemente, mas sempre sorrindo, eu a olhei de baixo para cima, ela parecia pisar nas nuvens, mas era somente sua cabeça que estava lá em cima, como sempre esteve, seus pés marcavam o chão. Continuou caminhando, eu a vi por trás, sua nuca, seus ombros, e lá na frente o mundo se acabou.
Deu-me medo, tudo ficou subitamente escuro, a grama verde e o céu azul deram lugar a uma metrópole onde o cinza era o que havia de mais dia. Por um momento ela olhou para trás e eu vi seu rosto apertando-se, o sorriso com o canto da boca se recolheu e ela se entristeceu, mas logo tornou a olhar para frente e caminhar.
À medida que caminhava o calor foi se dissipando, eu que a observava do olimpo, com todas as fraquezas e vaidades de um deus inventado, carregado de inveja e de desdém, comecei a sentir frio. Ela cruzou os braços e esfregou o braço esquerdo com a mão direita, ela também sentia frio, mas precisava seguir em frente.
Vi-me sendo elevado e agora eu a enxergava lá embaixo, dando os primeiros passos para dentro de um centro urbano, um lugar confuso e sujo, que me pareceu perigoso. Não havia Deus naquele lugar. Pode o criador abandonar assim o que criou? Pode um jardim transformar-se num lixão? Pode um ser humano, imagem do criador ver sua beleza distorcida numa caricatura demoníaca? Pode, o homem deixa que isso aconteça e Deus permite.
Agora ela passeava entre seres estranhos, monstros mitológicos, pés de rato, troncos de homem, cabeças de bode, morcegos com caras de mulheres velhas, cobras com rostos de belos e sinuosos jovens maquiados exageradamente, eles eram horríveis. Agitavam as mãos, emitiam sons amedrontadores, faziam caretas, mas não saíam do lugar, permaneciam encolhidos no chão como se uma força invisível os mantivesse amarrados. Muitos eu só enxergava partes do corpo, mas eles pareciam esforçar-se para manter uma forma corpórea já que os membros sumiam e apareciam, passando da forma monstruosa para algo que parecia um líquido pastoso. Quando se moviam eu conseguia ver os rostos que deixavam as trevas e se arriscavam nas sombras, aliás, sombras eram o máximo de luz que eles podiam suportar.
Os seres estavam em constante estado de tortura, apenas num instante de um êxtase sinistro eles conseguiam provar algum prazer, o prazer dos psicopatas cruéis e egoístas que destilam uma gota de satisfação diante do sofrimento inocente.
Eu senti o medo que ela sentia andando entre aquelas criaturas, mas o medo não a impedia de continuar, ela precisava estar lá, ela não tinha outra saída. Ela fazia isso há algum tempo, nunca deixou de se sentir amedrontada, mas sempre foi em frente. Na verdade ela provava um prazer torcido de experimentar aquela situação.
Para muitos, a única maneira de se esquecer da dor, mesmo que por um curto espaço de tempo, é sentindo uma dor maior. Mas que dor é maior que aquela que se sente por algo que não se vê? Que não se controla? Que não se sabe de onde vem? Ali, naquelas ruas, naquela noite sem fim, o medo podia ser visto, controlado, desviado, esse era melhor que o medo que ela carregava em seu coração. Mas se fosse perguntado a alguém que a conhecia, esse diria com toda a certeza que ela não tinha medo de nada. Talvez não ter medo signifique não experimentar a ausência dele, mas ter a capacidade de convencer os outros que o medo não existe. Ela fazia isso muito bem, com charme, com seu sorriso de canto de boca, com suas mãos nos bolsos, com os braços colados ao corpo, chutando alguma coisa com seu all star.
O caminho que a menina percorria levou-a a um lugar tenebroso, um lugar sem sombras, um reino de trevas totais, de alguma maneira eu podia ver o que acontecia lá. No centro daquela escuridão havia uma região azulada, um neon pouca coisa mais claro que o negro ao seu redor, uma treva diferente da própria treva, um local onde parecia que o mal tinha uma liberdade limitada para existir. Aquela região parecia ter vida própria, mas era diferente dos monstros pelos quais ela havia passado, começou a crescer em sua frente e foi subindo, subindo, algo começou a crescer, ganhar corpo até que alcançou altura próxima a quatro metros. A forma tinha pernas e braços, e no alto de seu corpo azul dois pontos vermelhos incandesceram-se, eram pequenas labaredas de um fogo frio, convergência de toda a maldade que existe no universo. A forma se pôs a falar com ela, eu não entendia o que era dito, nem via qualquer espécie de boca se movendo, mas sentia que o ser se comunicava com a menina.
A garota ficou parada por alguns instantes, ouvindo, então ela estendeu a mão direita aberta para o ser. Esse estendeu a sua mão e depositou sobre a mão da menina, e isso eu vi com clareza, três círculos dourados, parecendo-me moedas. A menina pegou as moedas, colocou em seu bolso, abaixou a cabeça, deu meia volta e voltou pelo mesmo caminho que veio. A coisa ficou por lá em pé, não diminuiu de tamanho, eu sentia em meus ossos o pavor que a garota sentia por dar as costas a uma coisa tão terrível, eu que olhava tudo prepotentemente de cima. Senti medo, mas achei que estava protegido.
Então o ser olhou para cima, esqueceu-se da garota e fitou seus pequenos e vermelhos olhos em mim. Fui então derrubado de minha cômoda posição, caí ao chão, no meio daquela cidade suja. Vi o ser se aproximar de mim, encolhido que eu estava, como os pequenos monstros do caminho, aqueles que eu desdenhei antes, vi o ser se encurvando sobre mim, como que querendo me abraçar. Faltava-me o ar, eu o puxava pelas narinas, mas meus pulmões não funcionavam o suficiente, entrava em meu corpo um ar viciado e morno com cheiro de parafina queimada e alho, enquanto eu via os pontos vermelhos chegando cada vez mais perto de mim.
 Mas nesse momento, tremendo de horror, vi à direita, vindo do mais alto do céu, dois pontos brancos, eles foram caindo e crescendo até que pousaram sobre os pontos vermelhos. Então houve uma explosão, silenciosa, e tudo, o ser, os monstros, a cidade, polvilharam-se em pequenos grãos que sumiram no ar. Ficou um céu azul lindo, e eu agora estava novamente elevado sobre as nuvens. Lá embaixo a menina caminhava, no meio da grama verde. Ela então parou, colocou a mão direita no bolso e tirou as três moedas de ouro. Ela olhou para os círculos dourados, virou-os para um lado, para o outro, e então olhou para cima, parece que ela me enxergava. Vi seu sorriso bobo e lindo brincando comigo, enquanto ela jogava, sem dar muita importância, as moedas ao chão.
Algo estranho aconteceu, o chão engoliu as moedas e sobre o lugar nasceram três flores. A menina então sentou-se no chão, arrancou uma das flores e se pôs a brincar com as pétalas. Ela estava diferente agora, não parecia aquela de vinte e poucos com rosto de quinze, era uma mulher madura, e no lugar da calça jeans e da camisa branca masculina, ela usava um vestido colorido, continuava com ela o sorriso maroto de canto de boca e o all star azul de cano alto.
Acordei daquele sonho me sentindo esquisito, havia uma euforia gostosa, mas reprimida, isso apertava meu coração. Eu sentia que algo bom poderia acontecer, contudo parecia que coisas ruins, pessoas ruins, sentimentos ruins, impediam aquilo. Na verdade eu tinha medo de felicidade, já a tinha desejado tanto e ela sempre se mostrava falsa. Eu não queria ter outra decepção, não suportaria isso, não tinha mais forças para construir algo, ver isso ruir e depois ter que continuar vivendo.

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O Espírito Santo acompanha o homem por toda a vida, ele está sempre procurando uma oportunidade para mostrar que Deus existe, está próximo e quer ajudar. Todavia, antes de tomar uma decisão consciente ao lado de Deus, o homem caminha no escuro, não sabe para onde vai, não enxerga o mundo, as pessoas e a si mesmo com clareza. Nesse caminho cego ele tropeça, bate de frente com as coisas, se machuca e machuca os outros. Mas o Espírito Santo está sempre falando, chamando, revelando os tempos da vida. Mesmo que no escuro o homem confunda as coisas, esteja à mercê da mente e das paixões assim como das manifestações diabólicas, às vezes ele pode reconhecer a voz amorosa de Deus.
Os homens estão sedentos pela eternidade e são facilmente seduzidos pelos ministérios da espiritualidade, vê-se isso no consumo deslumbrado que se tem por bruxaria e poderes sobrenaturais vendidos pelos livros e filmes sobre magos e super-heróis. Mas no orgulho de querer entender e controlar tudo com a própria mente, eles continuam presos a este mundo, a esta existência, à carne. A eternidade de Deus só pode ser vivida em Deus, e para isso não é necessário morrer na carne. Através de Jesus começa-se a provar a eternidade nesta vida, já que as prioridades que o Espírito Santo nos ensina através de Cristo são valores atemporais, virtudes espirituais, os únicos bens que levaremos deste mundo para a eternidade.
Não despreze o mundo espiritual, não brinque com o mundo espiritual, não se engane sobre ele, ele existe, a sobrenaturalidade é real, mesmo que para Deus tudo seja natural, tudo seja possível. Contudo, tenha humildade para se render ao Deus de Abraão, de Israel, de José, de Moisés, de Samuel e de Davi, o pai do Cristo que viveu e morreu sem pecado, e que ressuscitou e é o único e perfeito salvador do homem.

Confia no SENHOR de todo o coração, e não no teu próprio entendimento. Reconhece-o em todos os teus caminhos, e ele endireitará tuas veredas.”
Provérbios 3.5-6

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