7 de out. de 2014

09 - O preço de uma morte

- Breno? – falei, movido por uma força que não vinha de mim.
- Diga lá, meu amigo, tudo na paz? – me respondeu com uma voz que ia além de seu corpo.
- Acho que não – disse, sentando-me ao seu lado.
- O que se passa com você? – ele parecia especialmente atencioso naquela madrugada.
- Partir deste mundo seria uma boa coisa pra mim.
- Pensando na morte? Não tem medo de ir pro inferno não?
- Quer saber mesmo? Não tenho, nada pode ser pior que isso aqui.
- O inferno só existe se você acreditar nele – riu ele, um riso grave e baixo.
Sua camisa preta brilhava mais do que nunca, os primeiros botões abertos lhe davam um ar brega, os pelos do peito aparecendo, uma sensualidade proibida. Um arrepio subiu pelas minhas costas.
- Tenho medo da dor de morrer.
- Um tiro certo e você não sente nada, mas lembre-se, os suicidas são especialmente castigados, seja na religião que for.
- Alguém poderia me matar em um assalto, mas nem isso mereço. Tanto pai de família morre, tanto jovem com uma vida toda pela frente, eu sou um inútil, por que não me acertam?
- Isso pode ser arranjado.
- Como assim?
- Contrate alguém para fazer o serviço.
- Um matador profissional?
- Isso – disse ele, fixando os olhos em mim, olhos pequenos e cerrados, afundados em seu rosto magro e alongado, queixo pontiagudo, cabelos fixados por um gel barato. O cheiro de nicotina com cachaça era forte, saia da pele dele, acho que esse deve ser o cheiro do inferno, é pior que cheiro de enxofre.
- Quanto alguém deve pedir para fazer esse serviço?
- Não pedem muito não – respondeu ele jogando a bituca ao chão e calcando com o pé, agora ele ganhava jeito de empresário fechando negócio.
- Quanto? – perguntei aterrorizado.
- Mil e poucos reais, não chega a dois mil.
- Só isso vale uma vida?
- Só isso vale uma morte, uma vida não tem preço.
Eu me levantei, dei alguns passos em direção ao coreto, já morava há alguns anos na cidade, tinha vindo várias vezes à praça, mas nunca havia subido ao coreto. Subi as escadas e olhei para cima. Não havia lua, pelo menos eu não a enxergava. Fazia frio, mas um frio seco, sem garoa. Alguns jovens passaram à direita, em frente à matriz, jovens de camisetas pretas e cabelos longos, estavam quietos, olhando para baixo. Ouvi um barulho e olhei para a esquerda, era um carro, atravessou pelo outro lado da praça e seguiu. Olhei para frente e não vi Breno, assustei-me quando ele falou, estava no coreto, atrás de mim, não o vi subindo.
- Tem certeza de que quer fazer isso? – disse ele vindo para perto, apoiando-se à mureta. Eu não falava nada, parecia que ele ouvia meus pensamentos.
Naquela posição mais elevada, dentro do coreto, me sentia acima do mundo, o chão da praça se afastou, ao meu lado Breno acendeu um novo cigarro.
- Um tiro e pronto, acabou-se tudo – defini a coisa com praticidade.
- É isso, eu conheço quem pode fazer o negócio, mas tem que pagar em dinheiro.
- Mil reais?
- Arranja dois mil, se for menos você fica com o troco - troco para que, se eu ia morrer?
- Tenho um sintetizador sobrando em casa, só tenho tocado em piano acústico ultimamente, acho que pego uns dois mil e quinhentos reais nele.
- Você nem vai saber de onde veio o tiro. Se pensar bem nem é suicídio, não é você que vai puxar o gatilho, se quiser pode até tentar fugir, tenha certeza de que a pessoa é profissional e vai te pegar.
Ele fez parecer a coisa toda tão fácil, tão simples, sem culpa, sem dor, cínico.
- Eu arrumo o dinheiro.
- Trato feito, nem vou pedir comissão, o que ele cobrar eu pego de você e passo, afinal de contas somos amigos – ele me estendeu a mão, eu a apertei, mãos delgadas, de pele fina, unhas compridas, mas bem cuidadas. Ele desceu do coreto, eu desci logo em seguida e tomei a direção oposta a dele, fui pra casa.
Não consegui dormir naquela noite, no sábado, dez da manhã já estava de pé. Não, não fui eu quem colocou o teclado no carro e foi à loja de instrumentos musicais, eu estava possuído. Pelo diabo? Não, pela humanidade amarga de um coração que não queria Deus. Nunca fui uma pessoa ruim, nunca roubei ninguém, sempre procurei ser justo, sempre me analisei antes de julgar o outro. Mas aquela vida me levou para aquele lugar, de total descrença em tudo.
Entrar numa loja de instrumentos musicais ainda me dava alguma alegria, mas atrás de cada guitarra, de cada baixo, da bateria, de cada teclado, eu via um fantasma, de algo que vivi, que acreditei, e que agora não existia mais. Nenhuma novidade me chamou a atenção, nenhum novo sampler ou piano digital, nada me agradou.
- Novo vale uns dois mil e setecentos, como usado pego uns dois e duzentos nele, então não posso dar pra você mais que mil e setecentos – disse-me o dono da loja.
- Poxa, vou perder mias de mil reais – disse desanimado já que tinha pagado três mil e trezentos reais no aparelho, mas eu estava decidido - negócio fechado.
Peguei o dinheiro e fui a um bar, não o do café, outro, mais afastado do centro, o bar do carioca, um lugar onde se podia tomar uma cerveja em paz, sem ninguém para se meter em sua vida. Naquele momento eu não queria nem a companhia educada de Raimundo.
- Minha mulher está indo a uma igreja, essas de crentes, eu já fui lá com ela, até gostei, mas aí ela veio com aquele papo de que eu tinha que parar de beber, de fumar, e eu vou ter que perder as únicas coisas boas da vida? – dizia um moreno alto e forte, de uns trinta e poucos anos, em pé, na porta, de costas pra mim, conversando com um senhor grisalho, baixinho de quase sessenta anos. O moreno era pintor de casas, o baixinho era vendedor de tintas, a atividade profissional os ligou, a princípio, mas agora bastava a cerveja.
- Eu sou católico, vou às missas, lá ninguém me enche o saco – respondeu o velho.
- Lá vem ela – disse outro cara, encostado no lado de fora do bar, fumando.
- Está de cabelo molhado, deve estar cheirosa – comentou o moreno. Deveria ser uma mulher que passava lá em frente ao bar todos os dias naquele horário. Eu não ia sempre lá, mas aquele pessoal batia ponto todas as tardes no bar, sabiam dos horários e itinerários de todos na região, principalmente das mulheres bonitas.
- Boa tarde a todos – disse um senhor, enquanto apertava o controle de alarme de um carro importado. Ele estava todo de branco, com barbas e cabelos brancos, uns setenta anos, usava um chapéu pequeno de palha, era um homem elegante. Pelo que sabia, era um corretor imobiliário, negociava terrenos nos condomínios de alto padrão da cidade, nem fazia isso mais por necessidade, era mais um hobbie.
Ocorre algo interessante com a “seita da cerveja”, chamarei assim aquele grupo de homens que se reunia naquele bar, ela une pessoas diferentes, de faixas etárias diversas, de níveis sociais distintos. Naquele bar, um templo da tal seita, ninguém é novo, velho, rico, pobre, branco ou negro, todos ganham o mesmo status, embriagados. Desse jeito, podem compartilhar suas intimidades, todas, reclamarem de suas esposas, namoradas ou amantes, amaldiçoarem seus chefes e os políticos de maneira geral, e é claro, falar de futebol. Contudo, o assunto predileto lá era e sempre será mulheres. Hipócritas, a impressão que me davam é que mais falavam do assunto do que viviam, todos sabiam disso, mas ninguém se entregava. Colocavam-se num transe coletivo para produzirem uma catarse invejada pelos melhores psicoterapeutas.
Obviamente aquele pessoal não queria igreja, muito menos Deus, a troco de fritarem seus fígados e de falar muita bobagem inconsequente, eles ganhavam uma paz que durava até o final da noite, dando a eles um sono mais tranquilo para poderem enfrentar no dia seguinte uma nova jornada de luta pela sobrevivência. Era sábado, no domingo poderiam dormir até mais tarde, mas mesmo assim o “culto” era frequentado com diligência.
Sim, frequentar aquele bar e encher a cara era uma religião para eles, com seus dogmas, cerimônias e sacerdotes. O dogma principal era a participação somente de homens, o papa era é dono do bar, senhor de todas as malícias, conhecedor de todas as sabedorias da vida, que sabia ouvir todos os “sectários” e orientá-los, sempre com uma frase curta, com a presença de algum palavrão em seu conteúdo, e com um sentido dúbio, que todos, mesmo sem entender, juravam que entendiam, afinal de contas ninguém queria parecer otário em frente daquele malandro sênior.
Eu já não conseguia beber muito, com alguma dificuldade dei cabo de uma garrafa, que desceu quadrada, paguei-a e fui embora. Eram três horas da tarde, eu não pensava em nada. Só tinha em mente que quando chegasse do hotel, no final da noite, daria o dinheiro a Breno e esperaria a morte. Naquele momento eu não tinha noção do contrato que estava fazendo, da seriedade dele, e do terror que ele iria me causar. Mas talvez fosse isso o que eu mais precisava, algo que doesse mais do que a dor da desesperança, algo que me fizesse desejar novamente viver.

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Quanto vale uma vida? Não tem preço, a morte, contudo, é de graça, oferecida nos bares, nas ruas, na noite, nos clubes, mas também em muitas igrejas e durante o sol mais quente do meio-dia.
Deus insiste em nos amar, em nos dar oportunidade, contudo, na nossa persistência, ele se cala, deixa que façamos as coisas do nosso jeito. Isso terá um preço caro, mas se é o que queremos, se queremos muito, Deus respeita.
As trinta moedas que Judas ganhou não pagaram a morte de Jesus, Jesus ressuscitaria, a morte não teria poder sobre ele, Cristo apenas experimentou a morte do corpo, e mesmo ela foi curta. As trinta moedas pagaram a morte de Judas, e nessa morte não houve proveito algum. A morte violenta, errada e fora de tempo, só provoca desgosto e leva à morte eterna.

“Então Judas, aquele que o traíra, vendo que Jesus fora condenado, sentiu remorso e devolveu as trinta moedas de prata aos líderes religiosos, dizendo: Pequei, traindo sangue inocente. Eles responderam: Que nos importa? Isso é problema teu. E depois de atirar as moedas de prata para dentro do santuário, retirou-se e foi enforcar-se.”
Mateus 27.3-5

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