4 de out. de 2014

12 - Solidão

As pessoas não sabem que não sabem o que querem, parece complicado? Não é e elas demoram a entender isso. Esse parece ser o problema, se soubessem não ficariam frustradas com as decepções ou então simplesmente parariam de buscar. O tempo não faz com que saibamos o que queremos, apenas nos permite entender que não sabemos, e aí percebemos que a felicidade pode ser mais fácil que parece, que a dificuldade não está em achar um fruto especial que nos satisfaça, mas em aprender a se satisfazer com o fruto que conseguirmos pegar, mesmo porque, de verdade, todos os frutos são iguais e todos são igualmente especiais.
Sim, estou falando de relacionamento afetivo, de amor, de dar e receber, de oferecer o que se tem e de tomar o que é necessário. Dar e receber atenção, amor, cumplicidade, elogio, mesmo crítica, mas são necessários os dois para que o relacionamento dure. Se só damos, acabamos vazios, e vazios não despertamos o interesse de ninguém. Se só recebemos, deixamos o outro vazio, e vazio nós não o queremos mais. É preciso dar e receber, mantendo sempre um mistério, escondendo um pouco o jogo, guardando algo para nós mesmos. É isso que alimenta o jogo do amor, que faz uma relação duradoura.
Rosa gostava de rosas, vermelhas, brancas e amarelas, ela gostava sempre. Gostava de ser fotografada junto de rosas, acolhendo as flores com as mãos com o rosto inclinado, tocando delicadamente as flores. O sol batia em seus olhos azuis e seus cabelos fortemente tingidos de loiro, secos de tanta tintura, encostavam-se às rosas. Mas ela não podia comprar um ramalhete, então ia à feira e pedia um broto ao vendedor, lá pelo meio-dia, quando as barracas já estavam sendo desmontadas. Se ela tivesse um cantinho de terra em casa, ela plantaria a flor, dentro de sua casa, por sua vez, dois cômodos no fundo de um comércio no centro, espremidos por dois prédios, não entrava luz suficiente para alimentar seus vasos.
Rosa sonhava que um dia um homem, um homem maduro, um homem alto, de barba crescida, mas bem aparada, um homem cheiroso, de calça social e camisa branca, limpinha, de sapatos pretos e brilhantes, um homem elegante um dia lhe daria um ramalhete de flores, rosas vermelhas, molhadas e novas. Ela abraçaria o ramalhete com cuidado, deixaria o homem entrar em sua casa, fecharia a porta e o receberia para jantar. Ela faria uma comida gostosa, caseira, simples, mas bem temperada, feijão novo, arroz no ponto, frango com molho de tomate bem quentinho e uma salada de alface e cebolas.
Enquanto ele se sentasse à mesa, ela poria as rosas num vaso, e quando ele fizesse a refeição, contando com orgulho seu dia, pondo-se sempre como o herói, o vencedor, como o homem, ela o ouviria com afeto, orgulhosa de ter alguém só pra ela. Ele comeria satisfeito enquanto ela olharia atrás dele, sobre a cristaleira, as rosas, vivas com as pontas dos galhos dentro de água limpa para manter a beleza o máximo de tempo possível.
Rosa tinha sido arrancada cedo demais da terra, e depois disso nem a colocaram num vaso com água, assim ela envelheceu cedo. Mas ela sonhava, em conhecer o filho que não viu crescer, que teve daquele estúpido que ela um dia achou ser um cavalheiro. Rosa saiu de sua cidade, deixando pra trás os pais, a criança e a ilusão. Na cidade em que chegou, por algum tempo trabalhou no comércio, mas sozinha e carente acabou cedendo ao mal. Nem era por causa do dinheiro a mais, era solidão, solidão que ela curava com o prazer egoísta do outro, não dela, não mais.
Ela nunca tinha ido às ruas, não, isso não, mas conhecia os homens nas praças, sentava-se lá num banco e sempre aparecia alguém, alguém com um papo torto, alguém que queria mais que conversa. Ela era seletiva, não ia com qualquer um, e a princípio nem pedia dinheiro, mas eles mesmos foram pagando, deixando algumas notas na penteadeira. Com o tempo eles voltavam, homens mais velhos, a maioria bem mais velhos que ela, homens que não pegariam mulheres na avenida, mas que viam nela, não uma prostituta, mas uma amiga.
Ela era de alguns, e não era de ninguém, mas brincava que era, já que ela os via como sendo um só, mudavam-se os gostos, os cheiros, as roupas, mas na cabeça dela era um só homem, todos juntos formavam o homem especial que um dia lhe traria rosas, rosas que esses homens não compravam pra ela. Ela já tinha visto no banco traseiro do carro de um deles um ramalhete, mas ele tinha comprado para dar à esposa, quando chegasse em casa, para justificar o atraso que tinha acontecido pelo fato dele ter ficado com Rosa.
Eu a conheci na praça, numa tarde de domingo. Não encontrei um banco vazio e dividi um com ela, não flertei, e ela não me viu como um amante, apenas como um amigo. Sempre que nos encontrávamos ela tinha algo pra contar sobre sua infância, o passado a interessava mais que o presente. Esta é uma das histórias que ouvi dela naquele domingo seguinte à quinta-feira que conhecia Juliana e Reinaldo.
- Era uma moça bonita, loira, de pele clara, como um anjo – disse-me Rosa.
- Era de sua cidade natal? – perguntei.
- Sim, Clara era o nome dela. De uma família rica, seu pai e seus tios tinham comércio na cidade, pequenas fábricas e confecções, ela era a única filha nascida depois de três filhos homens. Muito protegida, mas não mimada, nós a víamos nas missas. As meninas a invejavam, suas roupas, seus sapatos, comprados em São Paulo. A família dela já tinha viajado até para o exterior, naquele tempo só os ricos faziam isso.
- Você conversava com ela?
- Fizemos a primeira comunhão juntas, ela era muito atenciosa, e inteligente, conhecia todo o catecismo. No dia da cerimônia ela estava linda, mais do que todas, seus olhos verdes combinavam com seus cabelos dourados, eu me sentia horrorosa perto dela. As pessoas sempre elogiaram meus olhos azuis, mas eles não combina com meus cabelos negros.
- Você tem cabelos pretos?
- Tenho, ficaram brancos quando eu tinha vinte e poucos anos, então comecei a tingi-los de loiro, iguais aos de Clara.
Enquanto falava, seus olhos desapareciam no céu, iam para longe, além daquela praça, da cidade, das nuvens. Sua voz aguda e rouca, com uma energia que não combinava com o sofrimento do seu rosto, era a de uma contadora de histórias embalando um bebê em seu sono. Eu via o que ela via, sentia o que ela sentia, lembrava-me de minha mãe. Rosa tinha quase cinquenta anos naquele tempo, tinha um corpo bonito, era meiga  e atenciosa.
- Clara era alta, magra, o vestido da primeira comunhão caia bem nela, o meu era sem graça, sobrava nas pernas, faltava nos braços, nem tinha sido feito pra mim, minha irmã já tinha usado, era fora de moda. Quando Clara se ajoelhou para receber a hóstia um raio de sol, vindo de um vitral superior da nave atravessou o templo e resplandeceu seu rosto. Ela nãon era real, não pertencia ao nosso mundo, era uma santa. Os meninos ficaram de boca aberta, todos eram apaixonados por elas, ricos, pobres, herdeiros e empregados, mas tinha um, Vitor, diziam que era o prometido pra ela.
- Era rico?
- Sim, filho de fazendeiro, o pai dele tinha plantação de café, naquele tempo era negócio que dava dinheiro. Clara e Vitor não estudavam na cidade, iam e voltavam todos os dias para uma cidade grande próxima, onde havia um externato de freiras. Haviam crescido juntos, mas ele não ia muito às missas, diziam que o pai dele era maçom, que tinha pacto com o diabo.
- É a crendice popular sobre maçonaria, sei lá até que ponto é verdade.
- Mas naquele dia, o da primeira comunhão, ele estava lá na igreja. Na saída eu e as meninas os vimos entrando no carro do pai dela, eles e Antonio amigo de Vitor, até motorista particular tinham. Depois da cerimônia houve um almoço, só para a granfinada da cidade, mataram boi e tudo.
Ela parou por um momento e tirou da pequena bolsa que apertava entre as mãos o maço, separou um cigarro e pegou com a outra mão a caixa de fósforos. Eu fiz a gentileza de tomar a caixa, pegar um palito, riscar e acender o cigarro pra ela. Ela não ficava bem fumando, se é que alguém fica, mas algumas mulheres parecem poderosas segurando o cigarro, ela ficava enfraquecida. Deu uma primeira baforada e continuou contando a história.
- Ela terminou de fazer o normal, como chamávamos naquele tempo o segundo grau, e já noivou. Todos esperavam ansiosos pelo casamento.
- Com o Vitor?
- Sim. Vitor era um rapaz bonito, de pele clara, como ela, cabelos bem lisos, quase loiros, mas olhos escuros. Não era alto, Clara parecia mais alta que ele. Vitor não se desgrudava de Antonio, um garoto franzino, com quase vinte anos ainda não tinha barba na cara. Esse também era filho de fazendeiro, estudava no externato junto com Clara e Vitor.
- O casamento deve ter sido uma festa e tanto.
- Teria sido, se houvesse acontecido.
- Como assim?
- No dia da cerimônia a igreja estava linda, eu e minhas amigas vimos de fora ela toda decorada, rosas brancas pelo corredor, tudo muito lindo. Somente os convidados puderam entrar, mas a gente ficou na praça assistindo os ricaços chegarem com seus carros importados. Clara não se atrasou, sete horas da noite, seu carro já estava na porta da igreja. Num determinado momento ela abriu o vidro e eu a vi, cabelos presos num coque, com um véu pequeno, nada exagerado. O vestido deixava os ombros aparecerem, não era mais uma menina, mas uma mulher maravilhosa, completa, como eu a invejei naquele momento.
- E aí, o que aconteceu?
- Vitor ainda não havia chegado. Passou-se meia hora e nada. Foram procurá-lo e não achara. Uma hora e meia e Clara ainda estava dentro do carro esperando. Eram oito horas da noite quando a mãe de Clara entrou no carro em prantos que saiu em disparada. Eu e minha amigas nos aproximamos da porta lateral da igreja e ouvimos o irmão mais velho da noiva fazendo a declaração: “tivemos um imprevisto, pedimos desculpas a todos, mas o casamento não acontecerá”. Ele disse isso e desceu correndo do altar, alguns ainda tentaram pará-lo fazendo-lhe perguntas, mas ele não respondeu a ninguém saiu da igreja e foi embora.
- Mas o que é que aconteceu?
- Nunca mais vi Clara, o pai a mandou para a Europa, depois ficamos sabendo que ela foi para São Paulo estudar. Ela fez direito, tornou-se advogada, mas as últimas notícias que tenho dela é que ela está solteira até hoje. Acho que é assim que tem que acontecer com uma santa, permanecer imaculada para sempre, virgem.
- Bem, se ela permanece virgem, Deus é quem sabe, mas é Vitor, o que é que houve com ele?
- Só fiquei sabendo disso há alguns anos, através de uma amiga que encontrei aqui na cidade. Sabe, eu não tenho contato com meus pais, no início ainda nos comunicávamos por carta, mas há muitos anos que nem isso eu faço.
- E o Vitor?
- Vitor e Antonio, moram juntos até hoje, ambos fizeram arquitetura, também sumiram da cidade, parece que foram para Brasília.
- Como assim moram juntos?
- São gays, Vitor foi honesto, mesmo que na última hora, não queria enganar Clara. Hoje, quando lembro, percebo que eles eram diferentes, mais delicados, e sempre meio distantes dos outros. Mas eles se amavam e pelo que sabemos estão juntos até hoje.
Rosa, Clara e Vitor, histórias diferentes de busca por amor, para livrar-se da solidão, essas histórias representaram o segundo encontro que os homens da praça me disseram que eu teria.

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Realmente as pessoas não sabem o que querem, e mesmo o conhecimento disso, elas não têm. Então procuram e procuram, acham e perdem, se encantam por ilusões, pelo que os outros dizem que é o melhor pra elas. Mas quem mais as engana é o coração, ele sabe que precisa amar alguém, nisso ele é honesto, contudo, satisfaz-se com mentiras, com partes de alguém que só gosta de partes dele.
Talvez todos se sintam dentro de um filme, esperando que os obstáculos de uma grande aventura épica tenha um final surpreendente e feliz, a vida, porém, não é filme. Vejo isso lá no Grande Hotel onde toco, mesmo que o ambiente lembre-me um filme dos anos 1950, a fantasia de um mundo encantado encerra-se ao final de um jantar, de uma garrafa de vinho caro.
Mesmo um culto abençoado de domingo tem seu fim, chegamos em casa cansados, dormimos, e acordamos na segunda-feira de manhã para mais uma semana. É assim porque somos carne e alma, limitadas para conter e manter a bênção inefável de Deus. Por isso a procura deve ser constante, não para satisfazer a carne e a alma, essas sempre se sentiram insatisfeitas, mas para alimentar o espírito. Esse alimento só existe em Deus, mediante Jesus, e pelo Espírito Santo, é somente a comunhão dia-a-dia com Deus que dá à vida encarnada alguma satisfação.
Podemos dizer: estou muito cansado, meu corpo, minha mente, meu coração não têm mais forças, contudo, o milagre da comunhão com Deus ocorre justamente aí. As religiões e filosofias usam as forças e o conhecimento humanos para se aproximar de um deus que muitas vezes nem é o verdadeiro. Contudo, o que leva as pessoas a encontrarem o Deus verdadeiro não é a boa intenção ou iniciativas humanas, mas o amor de Deus.
É Deus quem nos atrai e é ele quem nos dá condições de achá-lo. E nós não fazemos nada? Fazemos sim, precisamos de uma fé inicial, não a maior do mundo, mas a mais sincera. Ela é um passo que damos na direção de Deus para que ele então possa dar nove em nossa.
Histórias de decepções são vividas pelas pessoas, histórias que ocorrem porque Deus não é buscado em primeiro lugar. Se ao invés de buscarem consolo nos bares, nas bebidas, nas noites frenéticas à procura de dança e música, em drogas e no sexo, perdendo-se para achar em gente perdida algum prazer que livre da solidão, se ao invés disso orassem mais, tornassem-se mais íntimas de Deus, confiassem no amigo Jesus, em sua atenção, em seu carinho, dores poderiam ser evitadas, dores que são consequências de se tentar não sentir a maior de todas as dores, a solidão.  
Quando me refiro à oração não me refiro a uma “reza”, a uma repetição de palavras, achando-se que existe nisso alguma capacidade mística, mas oração feita com o coração através do Espírito Santo. A verdadeira oração é revelada por Deus em nossos corações, vem dele e volta pra ele, nessa oração há poder sobrenatural para vencer a solidão. A oração espiritual de verdade às vezes nem é dita, é apenas sussurrada, murmurada, pode ser mesmo incompreensível para outra pessoa, mas essa é a mais sincera. Não que Deus não ouça outros tipos de oração, mesma a reza, mas aquelas palavras originais e pessoais, exprimidas com toda a emoção e do fundo da alma, representando toda a dor que um ser humano pode reter dentro de si, e colocando-se em total dependência de Deus, essa é a oração que mais agrada ao Senhor.
É impossível e inútil buscar nas pessoas livramento da solidão, já que a verdadeira solidão só Deus pode nos livrar, ela é espiritual, antes de afetiva. Só livres dessa solidão espiritual é que podemos ter um relacionamento equilibrado com as outras pessoas, e com as pessoas certas. Amizade, por mais verdadeira que seja, relacionamento sexual, por mais completo que se realize, não podem nos dar aquilo que só Deus dá. O segredo é antes de buscar no mundo e nos homens, e mesmo nos anjos caídos e em suas sobrenaturalidades enganosas, buscar em Deus, e não sair de sua presença enquanto não nos sentirmos plenamente em paz.
Assim nivelados, conseguimos olhar para nós mesmos e para as outras pessoas da maneira certa, com realismo, mas com esperança. Olhando antes para Deus e para o seu amor, encontramos o verdadeiro amor de amigos sinceros e de um cônjuge íntegro. Esses amores terrenos, apoiados pelo eterno amor de Deus, podem durar para sempre.

Mas em todas essas coisas somos mais que vencedores, por meio daquele que nos amou. Pois tenho certeza de que nem morte, nem vida, nem anjos, nem autoridades celestiais, nem coisas do presente nem do futuro, nem poderes, nem altura, nem profundidade, nem qualquer outra criatura poderá nos separar do amor de Deus, que está em Cristo Jesus, nosso Senhor.
Romanos 8.37-39

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