Era difícil acordar
pela manhã, e ficava cada vez pior, eu simplesmente não tinha vontade, talvez
porque não tivesse motivos. Coloquei-me naquela situação, desisti de tudo, até
que todos desistiram de mim. Na segunda-feira eu dormia até tarde sem culpa,
tinha trabalhado no final de semana e aquele dia era o meu dia de descanso,
contudo na terça-feira eu já tinha dificuldade para enfrentar o sol, aliás,
nunca fui amigo do sol.
Era uma tarde terça-feira
de julho, o céu estava fechado, ventava, eu só queria ir ao bar, comer um
salgado, tomar um café e voltar para casa para estudar um pouco de piano,
depois leria alguma coisa. Só naquele estado que eu me encontrava para achar
graça num romance de Sartre, um texto depressivo, incrédulo, que jogava
responsabilidade existencialista em minha inconsequência. Já havia lido “Idade
da Razão” e Sursis” e agora lia “Com a morte na alma”, o último livro da
trilogia “Os caminhos da liberdade” do autor, liberdade, que naquele momento
era apenas para querer e pagar por um fim rápido, mas a morte não é opção, a
vida é.
Eu sempre fui
melancólico, e sempre gostei disso, não fugia ouvindo música alegre ou me
desprendendo do passado. Mantinha o passado vivo, amarrado a uma corda curta
presa a minha mão, sempre o aproximava de mim e o acariciava. Interessante como
nos esquecemos do bom passado, é o ruim que mantemos vivo, e eu fazia isso
ouvindo bolero, jazz antigo, pop internacional dos anos 1970, Elis e Chico. Minha
vida toda era uma canção em LÁ maior com sétima menor e quinta aumentada
resolvendo num RÉ menor com sétima menor e nona, como “Explode coração” do
Gonzaguinha.
Mas mesmo o prazer
em sentir dor, o último prazer que um homem tem, já tinha perdido a graça. As
pessoas destilam esse prazer tomando conhaque barato, fumando cigarro sem
filtro, saindo com qualquer uma, dormindo em qualquer cama. A tristeza é a arte
dos suicidas covardes, eles a aprimoram a cada dia de suas existências mórbidas
já que morrem devagar. A morte sempre tinha sido minha namorada, a música era
minha amante, mas a morte era um compromisso oficial, até que resolvi casar-me
com ela fazendo aquele pacto.
Não era sempre que
eu pensava no encontro com o matador, que me levaria desta vida para sei lá
aonde, naquele tempo eu não sabia pra onde iria e também não me preocupava com
isso. Havia dias que eu me esquecia, tão acostumado que estava com o nada, em
outros dias, porém, eu via o assassino em cada ruela estreita que passava, às
vezes até dentro de casa, quando acordava de madrugada para ir ao banheiro. Naquela
terça eu estava apreensivo quando passei em frente a um pequeno hotel, havia
muitos assim na cidade, para receberem os turistas.
Itu é uma cidade de
passado histórico relevante para o estado e para o país, lá a república do
Brasil foi arquitetada. Contudo, os políticos, mais interessados em privilegiar
os donos de terras, incentivam e fornecem recursos para os condomínios de alta
classe, beneficiando os ricos de fora. A classe média e a baixa são esquecidas
com a ausência de indústrias que lhes deem bons empregos. O turismo pela
história da cidade não é valorizado o quanto deveria, mas mesmo assim a cidade está
sempre repleta de visitantes.
Fazer um passeio a
pé no centro, começando na Igreja do Carmo, seguindo pela Rua Barão de Itaim, conhecendo
o Museu Republicano, até à Igreja matriz, a Nossa Senhora da Candelária, chega-se
à praça das minhas madrugadas, atravessando a Rua 7 de Setembro onde fica meu
bar dileto, Lu&Toni. Depois pode-se continuar pela Rua Paula Souza, visitar
o Museu da Energia, almoçar no Bar do Alemão, e conhecer a Igreja do Bom Jesus.
Encerra-se o passeio na Fábrica São Luiz, com direito a vários antiquários, um
trajeto gostoso que agradava qualquer turista.
Fora o centro
histórico, com muitas e antigas igrejas transbordantes de arte barroca, a
cidade conta com vários restaurantes de comida caipira, Itu é uma cidade agradável,
de ruas estreitas, casas com as janelas que dão diretamente nas calçadas,
dando-se a falsa impressão que são moradias pequenas. Mas lá no fundo, e isso
pode-ser ver pelos corredores, escondem-se quintais enormes, tomados pela
vegetação. Ter esses espaços no centro da cidade não é privilégio de qualquer
cidade nos dias atuais.
Sempre me
maravilhei com a visão dos quintais arborizados daquelas casas, eram metáforas
perfeitas daquele povo. Gente ituana é assim, como as janelas, rente às
calçadas, pessoas educadas e cicerones, mas reservadas quanto a suas
intimidade, como os jardins escondidos no fundo das casas, gente próxima e
distante, ao mesmo tempo.
Os hotéis do centro
são pequenos, modestos, com poucos quartos e luxo resumido. Naquele dia, um amigo
meu, recepcionista de um deles, me chamou quando eu passava, eu entrei para
conversar.
- Zé Renato, entra
aí, meu amigo, há quanto tempo.
- Milton, como
está?
- Tranquilo.
Sentei-me no sofá e
fiquei conversando com ele. Ele trabalhava no hotel, mas também servia como
garçom em coquetéis e cerimônias, foi numa festa de casamento, tocando piano,
que o conheci. Eram quinze horas, mas as nuvens cinzas faziam da tarde, noite,
não estava lá há vinte minutos, quando um senhor entrou.
- Existe algum bom
hotel aqui no centro? – pergunta no mínimo deselegante de se fazer para o
recepcionista de um hotel, o homem deixou claro que aquele hotel não era bom
para ele.
- Temos um hotel na
quadra de baixo, uma pousada, duas ruas paralelas acima... – Milton nem teve
tempo de terminar e o homem falou, um tom alto, fez vibrar um harmônico
indesejável no meu ouvido, acho que quase trincou as vidraças.
- Já fui a esses
dois, péssimos...
- O senhor gostaria
de conhecer nosso hotel? – o homem deu uma risada debochada curvando a cabeça
para um lado e olhando pelos cantos dos olhos para o outro lado, o rosto dele
se entortou todo.
- Você chama isso
de hotel? – disse o homem mal educadamente.
Eu já tinha me
sentido incomodado com a maneira como ele chegou, interrompendo a minha conversa
com Milton, sem pedir licença, como se fosse o dono do mundo e todos tivessem
que parar tudo que estavam fazendo para servi-lo. Quando ele fez aquela
declaração eu não me aguentei.
- Meu querido, este
hotel é muito bom. – não, nem foi o que eu falei, talvez tenha sido o modo como
falei, tentei ser educado, mas no mesmo tom que ele.
O homem, um senhor
de mais de sessenta anos, todo vestido de branco, calça, camisa e paletó, com
barbas brancas, chapéu de palha, dedos cheios de anéis e com uma pesada pulseira
de ouro no pulso direito, virou-se em minha direção e esbravejou.
- Não falei com
você – sentado que estava, me levantei, a recepção, como tudo no hotel, era
pequena, de pé fiquei de frente pra ele.
Seus olhos
vermelhos saltavam das órbitas, o cheiro forte de scoth misturado com perfume importado
não tirava dele aquela postura de violência de periferia. Percebi seu
descontrole, abaixei a cabeça, virei as costas e fui para o outro lado, minha
intenção era pegar um copo de água no bebedouro e esfriar o clima, mas ele veio
atrás de mim.
- Desculpe-me meu
senhor – eu disse, tentando consertar as coisas.
- Você está
querendo me enfrentar? Hem? – ele disse isso colocando a mão direita no bolso
interno esquerdo do paletó. Havia um volume lá, ele não me mostrou, mas estava
deixando claro que era um revólver e que se fosse necessário o usaria. Seria
esse meu momento de partir? Pensei eu, mas claro que não era, esse homem não
precisava ser pago para matar alguém, faria isso de graça e dando risada.
- Não senhor –
nisso Milton entrou na conversa.
- Meu senhor, este
é o cartão de um hotel cinco estrelas, é mais luxuoso, mas fica longe aqui do
centro, acho que pode atender as suas necessidades.
O homem sem parar
de me olhar, tirou a mão direita do bolso, estendeu-a para o Milton, que lhe
entregou o cartão, então saiu, batendo os pés no chão. Apertou o controle do
alarme do carro, entrou no veículo, uma Mercedes último modelo, e saiu,
cantando pneus. Fui até o sofá e desmoronei, gelado.
- Zé, ele estava
armado.
- Percebi.
- Que violência,
podia ter acontecido uma bobagem aqui por nada.
- A gente não sabe
o que as pessoas são capazes de fazer.
- Fazer por
qualquer coisa, você está bem?
- Estou soando
frio, mas eu não disse nada...
- Sei lá se foi seu
tom de voz, mas não foi isso não, ele já chegou armado, nos dois sentidos, uma
gota d´água e estouraria.
- Estouraria minha
cabeça...
- Fica frio,
ninguém morre antes da hora.
- Já vou indo.
- Fica mais um
pouco.
- Já vou, até mais...
Acontecia aí meu
terceiro encontro, esse com a morte bem próxima a mim.
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O termo que vou
usar é um pouco exagerado, mas teologicamente é exatamente isso que acontece,
conforme, Ezequiel 18.20: "Aquele
que pecar, esse morrerá; o filho não levará a culpa do pai, nem o pai levará a
culpa do filho. A justiça do justo estará sobre ele, e a impiedade do ímpio
cairá sobre ele.". Existem duas reações que podem ocorrer perante uma
situação que nos traz desconforto: ou matamos a nós mesmos ou matamos o outro, de
uma forma ou de outra, alguém tem que morrer. Morte não significa
necessariamente atirar em alguém, roubar sua vida física, pelo menos não assim
de forma instantânea. Uso o termo morte significando uma reação agressiva,
procurando anular aquilo que está incomodando. Se algo nos traz desconforto é
porque é algo ruim pra nós, é um pecado contra a nossa integridade, pecado
depois de gerado não desaparece, só uma morte pode anulá-lo.
Aquele velho de
branco deveria se sentir muito inseguro, não tinha qualquer respeito por si
próprio, talvez porque deveria ter passado uma vida toda com pessoas que não o
respeitavam. Mas seja como for, ele poderia ter escolhido um caminho diferente,
escolheu, contudo, anular esse desconforto, essa insegurança, impondo-se sobre
aqueles que ele achava que faziam com que ele se sentisse mal, de forma
violenta.
Não, eu não
representei risco real para ele, essa não era a minha intenção, não queria
tirar nada dele, humilhá-lo, mas na fraqueza, ele me interpretou como um perigo,
como um inimigo. A relação entre o tamanho dos inimigos que criamos é
proporcional ao tamanho da insegurança que temos. Ele se incomodou com o hotel
que não tinha a qualidade que ele achava que merecia, com Milton que teve a
petulância, no entender dele, de achar que podia satisfazê-lo com o que tinha,
e comigo, que peitei tudo isso.
Todavia, eu e ele
tínhamos algo em comum, ambos carregávamos um desconforto extremo com a vida, eu
queria acabar com o desconforto extinguindo a minha vida, o lugar aonde a
angústia residia. Ele também queria acabar com o desconforto, mas aniquilando
aquilo que lhe trazia a angustia, as pessoas.
Eu queria me matar, ele queria matar os outros.
Em todos os
confrontos humanos, sejam pequenos e pessoais, e até naqueles que envolvem
grupos de pessoas e mesmo nações, o pecado clama por um sacrifício, só a morte
pode saciar o mal. Deus sabe disso já que foi ele quem criou as regras, em sua
sabedoria e onipotência tantas vezes misteriosa para nós. Criou as regras e
forneceu a solução, se alguém tem que morrer sempre, alguém já morreu, uma
morte só, suficiente para saciar o clamor de todos os males da humanidade, passada,
presente e futura, os pecados de todos nós. Que morte foi essa? A de Jesus
Cristo. Por que existe tanto poder na morte e na ressurreição de Cristo? Porque
essa é a única saída para o homem não morrer: aceitar a morte de Jesus como a
sua, e ressuscitar com ele para uma nova vida.
Contudo, estamos
tão acostumados com o cristianismo, o primitivo dos evangelhos, o milenar da
igreja católica, o protestante, o tradicional, o pentecostal, o neopentecostal,
e seja qual for a denominação que se dê e ele, que vemos a obra salvífica de
Jesus de uma forma menor, somente como o crédito e o débito de uma
contabilidade divina que anula o mal para permitir o bem, algo mais como uma
lei de papel, mas é muito mais que isso.
Cada pecado que é
cometido é uma afronta à santidade de Deus, é uma agressão espiritual à
soberania divina. Não que isso enfraqueça Deus de alguma maneira, Deus é
poderoso e intocável, não pode ser mudado, tocado ou ferido. Na verdade Deus é
o único que tem direito à ira, a dor e a se sentir injustiçado, isso tudo não o
diminui, isso tudo é feito a ele sem que ele tenha feito nada de errado, e por
outro lado, ele experimenta tudo isso sem reagir de maneira errada.
Mas aí se revela a
maior característica do Senhor, o que faz com que o Deus do cristianismo, o
Deus verdadeiro e único, Deus de Abraão, de Israel, de José, de Moisés, de
Josué, de Samuel, de Davi, de Salomão, de Isaías, de Jeremias, de Daniel, de
João Batista, de Pedro, de Paulo e de João Evangelista, seja não uma energia
impessoal, uma tendência benigna, nem um espírito avançadíssimo de luz.
Deus é pessoa e age
de forma pessoal, Deus ama, Deus se condói, se compadece, sente a dor do homem
separado dele. Repito, essa dor não enfraquece Deus, não acontece com ele, como
acontece conosco, numa falha de caráter ter uma reação injusta. Tudo em Deus é
santo, justo e preciso, seja sua dor, sua ira ou sua salvação. Esse sentimento
que criou a necessidade de uma morte moveu-o a tomar uma iniciativa de amor,
que iniciativa foi essa? Se colocar na única posição que o faria ser mudado,
tocado e ferido, sim, por amor Deus se enfraqueceu. Mudou da forma espiritual
para a carnal, foi tocado não pelas orações e coração, mas pelas mãos violentas
e sujas dos homens, foi ferido, não em seu plano original para o homem, mas na
sua própria carne. Não existe um Deus como o nosso, cristãos, que se tenha
feito homem, mortal, frágil, finito, por amor. Amor a quem? A nós, mortos em
nossos pecados.
Portanto não
precisamos matar e nem morrer, não na carne, Jesus fez isso por nós e nele temos
vida e vida em abundância. Só a aceitação disso é que tira das nossas entranhas
o clamor pelo sacrifício da morte, só a fé em Jesus como único salvador, é que
sacia o desejo da morte, é que transforma nosso coração homicida em ressurreto.
Jesus nos resgata do inferno, o reino da morte eterna, para a eternidade com
Deus, a vida eterna.
“Tende em vós o mesmo sentimento que houve em
Cristo Jesus, que, existindo em forma de Deus, não considerou o fato de ser
igual a Deus algo a que devesse se apegar, mas, pelo contrário, esvaziou a si
mesmo, assumindo a forma de servo e fazendo-se semelhante aos homens.
Assim, na forma de homem, humilhou a si mesmo, sendo obediente até
a morte, e morte de cruz. Por isso, Deus também o exaltou com soberania e lhe
deu o nome que está acima de qualquer outro nome; para que ao nome de Jesus se
dobre todo joelho dos que estão nos céus, na terra e debaixo da terra, e toda
língua confesse que Jesus Cristo é o Senhor, para glória de Deus Pai.”
Filipenses 2.5-11
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