O rosto de Raimundo
já estava formatado pela vida que levava a mais de trinta anos, sabia receber a
todos com um sorriso, ouvir a todos com respeito, dizer quase sempre as mesmas
palavras, mas palavras esperadas pelos ouvidos dos solitários, sim, porque
naquela hora da noite, só os solitários frequentavam o lugar.
As reclamações que
ele ouvia também não tinham mais novidades, eram sempre as mesmas, contudo, a
falta de originalidade não roubava dos queixosos a legitimidade. Se o problema
era falta de dinheiro, representava a privação de uma viagem para o norte, para
ver os pais que não se via há meses, se o problema era traição, significava a
perda da única pessoa com quem se dividia as mais profundas dores e as mais
reais alegrias da vida.
Dinheiro e mulher
eram os assuntos mais comuns, seguidos por futebol e política. Esses últimos,
sim, entediavam o pobre Raimundo, que debaixo o uniforme do bar ficava tão
elegante. Eu já o tinha encontrado durante o dia, na rua, e quase que nem o reconheci,
espantou-me quando vi que aquele psicólogo detrás do balcão, que se mostrava
tão paciente, enquanto tirava o café ou servia um pastel, era um homem comum,
com vida própria.
- Boa noite Rai –
eu disse.
- Boa noite, tudo
bom seu Zé? – respondeu Raimundo.
- Cansado, cansado
de fazer nada.
- Não está
trabalhando?
- Estou sim, cheguei
agora do Grande Hotel, toquei quatro horas de piano, minhas costas doem, meus
braços, minhas mãos.
Nem percebi que
Breno estava ao lado, encostado ao balcão.
- A vida é assim,
só canseira – intrometeu-se na conversa Breno.
- Nem vi que você
estava aí, tudo bom? – eu respondi.
- Vou levando –
respondeu Breno, sem mexer a cabeça, parado que estava com os olhos fixos num
ponto invisível.
Eu conhecia Breno
de lá do bar, não fazia muito tempo não, era uma figura quieta, um homem com a
minha idade, quase quarenta anos, magro alto, sempre bem vestido, de cabelo
cortado e barba feita com uma loção pós-barba que sempre denunciava sua
presença, aliás, eu a sentia antes de vê-lo.
Naquela hora da
noite, o tempo não funcionava como durante o dia, quando pessoas enchiam o
lugar, quando existiam casais, jovens, crianças, quando as pessoas que se acham
comuns frequentavam o local. À noite era lugar para fugitivos, os sem lar,
aqueles que queriam prolongar um pouco mais o dia, aqueles que não queriam um
novo dia.
- Obrigado – respondi
a Raimundo enquanto ele coava o café diretamente do coador para meu copo, café
que nem precisava mais ser pedido, Rai sabia que era esse meu pedido no início
da madrugada, às vezes eu comia alguma coisa, mas na maioria das vezes só
queria o café mesmo.
- Como foi o
serviço? – perguntou-me Breno.
- Destila-se
toneladas de mosto para se obter pequenas porções de aguardente, e essa só me
trará alguns minutos de embriaguez.
- Que vai fritar seu
fígado – riu Breno da minha simbologia.
- Cada vez o prazer
é menor.
- Você sempre
gostou tanto de tocar seu piano.
- Sim, mas até isso
tem perdido a graça – eu respondi.
Breno não estava
comendo e nem bebendo nada. De calça e camisa sociais pretas, combinava comigo,
eu estava de terno, gravada e camisa, todos pretos.
Acabei de tomar o
café, me despedi de Raimundo e saí do bar, Breno veio comigo. Já estava virando
um costume, caminhávamos juntos até a praça, sentávamos num banco e
conversávamos um pouco.
- Frio hoje – disse
eu, distante que estava, falei mais para mim do que para meu companheiro.
- Gosto assim –
respondeu Breno.
Breno era um bom
ouvinte, desses que a gente fica à vontade para desabafar, parecia um homem
experiente, vivido, cheio de malícia, sempre com uma resposta de sabedoria na
ponta da língua, me sentia bem com ele.
- Ainda penso nela
– eu disse.
- É, elas nunca
saem da nossa cabeça.
- Se as coisas
tivessem sido diferentes..., eu devia ter tido mais paciência, devia tê-la
ouvido mais, ela foi se afastando e eu nem percebi, quando me dei conta já era
tarde.
- Ninguém aprisiona
a alma de uma mulher, elas são livres, podemos possuir seus corpos, mas não
seus corações, as mulheres nunca se dão por inteiras.
- Os homens não são
assim, ou estão presentes de corpo e alma ou nem buscam estar junto.
- Elas dividem-se,
nos enganam, mas é esse jogo, essa posse sem direito, esse ter incompleto que
nos prende a elas, mas elas não fazem isso por maldade não, faz parte da natureza
delas.
- E como podemos
tê-las por inteiro?
- Não podemos, elas
precisam ser amadas apaixonadamente sempre, e cada vez de uma nova maneira. Os
homens se acostumam e se satisfazem em fazer as coisas de um mesmo jeito, elas
não, os homens morrem antes do que elas, não no corpo, na alma.
- Ela se apaixonou
por alguém – constatei triste.
- E você? –
questionou-me Breno.
- Eu estava
preocupado com minha profissão, com minha música, com minhas composições, que
nunca saíram do computador, nunca consegui convencer ninguém a gravá-las.
Filhos, a gente estava sempre adiando, hoje vejo que isso foi bom, se os
tivesse estaria preso a ela pelo resto da vida.
- Os filhos separam
os casais – disse Breno com frieza.
- Como assim? –
indaguei.
- Antes deles
existe romance, existe paixão, existe amor.
- Não sei, hoje
vejo crianças no colo de seus pais e sinto algo bom, demorei muito tempo em
minha vida para perceber as crianças, e muito mais para apreciá-las, na verdade
crianças é a única coisa neste universo com sinceridade, é a única coisa que
ainda me passa um sentimento bom, uma esperança.
- Esperança que
dura pouco, rapidamente elas crescem e se transformam em nós – disse Breno com
certo cinismo.
Não concordei com
aquilo, mas fosse como fosse, família e filhos eram algo que não pertencia a mim.
- Mas eu a amei, e
muito, como nunca – respondi.
- Eu acredito em
você – disse Breno, olhando-me pela primeira vez naquela noite, seus olhos eram
negros, profundos, pareciam dizer muito mais que suas palavras. Eu sentia algo
estranho com ele, sentia-me protegido, entendido, mas também sentia medo, um
medo sem explicação.
- Você já foi
casado? – perguntei a ele.
- Algumas vezes –
disse Breno com um sorriso sacana na boca, então se seguiu um silêncio que
pareceu durar bem mais que alguns minutos.
Passei os olhos ao
redor, olhei à esquerda, à direita, então larguei o olhar a minha frente. Não
havia ninguém na praça, a fileiras de postes de ferro com as luminárias criavam
uma estética agradável, deixavam o ar denso, aveludado. Fazia frio, mas não
havia absolutamente nenhum vento, nenhum movimento. O semáforo funcionava,
contudo o sinal vermelho mudou para o verde e ninguém passou. Por um instante
senti-me a pessoa mais sozinha do mundo. Tantos deveriam estar em casa, muitos
maridos, mesmo que sozinhos na frente de seus televisores, estariam seguros,
cientes de que mulher e filhos dormiam em seus quartos, protegidos pelo lar e
pela obviedade da vida normal. Vida normal, foi isso que eu busquei, foi isso
que eu quis, mas não mais naquele momento.
- Boa noite, estou
indo – disse Breno já em pé, a uns três passos distantes do banco, nem percebi
quando ele se levantou.
- Boa noite, meu
amigo.
Sentado, abri as
pernas, inclinei-se, segurei a cabeça com as mãos, fechei os olhos e respirei
fundo, então me levantei, olhei para o céu e desabafei:
- Deus, se você
existe, me dá um sinal.
Morava perto do
centro, chegava do Grande Hotel, deixava o carro em casa e ia a pé até o bar,
depois voltava, devagar, pensando a cada passo, pesando em cada passo minhas
agonias, tentando largá-las pelo chão, querendo aliviar minha alma. As estreitas
e antigas ruas daquela cidade não cabiam minha dor, mas me consolavam, braços
de uma mulher idosa, mornos, mas afetuosos, sempre disponíveis para me
acalentar.
Abri o portão, subi
as escadas da varanda, abri a porta da sala, liguei a lâmpada, entrei, fechei a
porta, e me sentei no sofá. O controle do televisor estava no braço da
poltrona, liguei e já fui abaixando o volume, queria imagens, mas não sons, o
piano ainda batia em minha cabeça.
Peguei meu celular,
havia uma mensagem de voz, o telefone nunca dá sinal em Águas de São Pedro,
alguém deve ter me ligado enquanto eu estava lá, pensei. Liguei na caixa postal
e ouvi a mensagem: “Oi, ainda lembra-se de mim? Tenho pensado muito em você
ultimamente, tenho algumas novidades pra contar, se puder, me liga depois,
beijo”. Era Celma, que novidades ela teria pra mim? Vai ver estava grávida do
namorado, não, decidi que não queria mais nenhum contato com ela.
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Deus sempre está
atento a nossos pedidos, e sempre, sempre nos responde, de uma maneira ou de
outra. Contudo, muitos de nós estamos com os ouvidos espirituais fechados,
estão abertos à razão, à imaginação, aos demônios, mas não a Deus. Deus sempre
fala prontamente e de maneira suave. Se tivermos atenção e temor, ouviremos,
imediatamente após uma pergunta a resposta tranquila e firme de Deus nos
respondendo.
A resposta de Deus
é sempre maravilhosa, sempre consoladora, mesmo que seja um espera ou um não
decisivo. Na resposta de Deus vemos a solução para o impossível, nosso coração
sente paz onde achávamos que não havia solução, sentimos esperança, onde antes
só existia angústia.
Na teimosia de
querer ver as coisas resolvidas do nosso jeito, amplificamos tantas vozes
dentro de nós, no meio de todo esse barulho a voz de Deus é confundida, e em
nossa rebeldia só nos resta seguir sozinhos, achando que todos, inclusive Deus,
esqueceu-se de nós.
A meditação e o
relaxamento que psicologias e religiões orientais tanto ensinam são uma
ferramenta poderosa, não para ouvir “espíritos guias” nem para curar ansiedades
e fobias através da própria mente, mas para ouvir a voz do Deus verdadeiro,
único e poderoso criador do universo, o médico para todas as dores e solidões.
“Assim como a corça anseia pelas águas
correntes, também minha alma anseia por ti, ó Deus!”
Salmos 42.1
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