14 de out. de 2014

02 - Breno

O rosto de Raimundo já estava formatado pela vida que levava a mais de trinta anos, sabia receber a todos com um sorriso, ouvir a todos com respeito, dizer quase sempre as mesmas palavras, mas palavras esperadas pelos ouvidos dos solitários, sim, porque naquela hora da noite, só os solitários frequentavam o lugar.
As reclamações que ele ouvia também não tinham mais novidades, eram sempre as mesmas, contudo, a falta de originalidade não roubava dos queixosos a legitimidade. Se o problema era falta de dinheiro, representava a privação de uma viagem para o norte, para ver os pais que não se via há meses, se o problema era traição, significava a perda da única pessoa com quem se dividia as mais profundas dores e as mais reais alegrias da vida.
Dinheiro e mulher eram os assuntos mais comuns, seguidos por futebol e política. Esses últimos, sim, entediavam o pobre Raimundo, que debaixo o uniforme do bar ficava tão elegante. Eu já o tinha encontrado durante o dia, na rua, e quase que nem o reconheci, espantou-me quando vi que aquele psicólogo detrás do balcão, que se mostrava tão paciente, enquanto tirava o café ou servia um pastel, era um homem comum, com vida própria.
- Boa noite Rai – eu disse.
- Boa noite, tudo bom seu Zé? – respondeu Raimundo.
- Cansado, cansado de fazer nada.
- Não está trabalhando?
- Estou sim, cheguei agora do Grande Hotel, toquei quatro horas de piano, minhas costas doem, meus braços, minhas mãos.
Nem percebi que Breno estava ao lado, encostado ao balcão.
- A vida é assim, só canseira – intrometeu-se na conversa Breno.
- Nem vi que você estava aí, tudo bom? – eu respondi.
- Vou levando – respondeu Breno, sem mexer a cabeça, parado que estava com os olhos fixos num ponto invisível.
Eu conhecia Breno de lá do bar, não fazia muito tempo não, era uma figura quieta, um homem com a minha idade, quase quarenta anos, magro alto, sempre bem vestido, de cabelo cortado e barba feita com uma loção pós-barba que sempre denunciava sua presença, aliás, eu a sentia antes de vê-lo.
Naquela hora da noite, o tempo não funcionava como durante o dia, quando pessoas enchiam o lugar, quando existiam casais, jovens, crianças, quando as pessoas que se acham comuns frequentavam o local. À noite era lugar para fugitivos, os sem lar, aqueles que queriam prolongar um pouco mais o dia, aqueles que não queriam um novo dia.
- Obrigado – respondi a Raimundo enquanto ele coava o café diretamente do coador para meu copo, café que nem precisava mais ser pedido, Rai sabia que era esse meu pedido no início da madrugada, às vezes eu comia alguma coisa, mas na maioria das vezes só queria o café mesmo.
- Como foi o serviço? – perguntou-me Breno.
- Destila-se toneladas de mosto para se obter pequenas porções de aguardente, e essa só me trará alguns minutos de embriaguez.
- Que vai fritar seu fígado – riu Breno da minha simbologia.
- Cada vez o prazer é menor.
- Você sempre gostou tanto de tocar seu piano.
- Sim, mas até isso tem perdido a graça – eu respondi.
Breno não estava comendo e nem bebendo nada. De calça e camisa sociais pretas, combinava comigo, eu estava de terno, gravada e camisa, todos pretos.
Acabei de tomar o café, me despedi de Raimundo e saí do bar, Breno veio comigo. Já estava virando um costume, caminhávamos juntos até a praça, sentávamos num banco e conversávamos um pouco.
- Frio hoje – disse eu, distante que estava, falei mais para mim do que para meu companheiro.
- Gosto assim – respondeu Breno.
Breno era um bom ouvinte, desses que a gente fica à vontade para desabafar, parecia um homem experiente, vivido, cheio de malícia, sempre com uma resposta de sabedoria na ponta da língua, me sentia bem com ele.
- Ainda penso nela – eu disse.
- É, elas nunca saem da nossa cabeça.
- Se as coisas tivessem sido diferentes..., eu devia ter tido mais paciência, devia tê-la ouvido mais, ela foi se afastando e eu nem percebi, quando me dei conta já era tarde.
- Ninguém aprisiona a alma de uma mulher, elas são livres, podemos possuir seus corpos, mas não seus corações, as mulheres nunca se dão por inteiras.
- Os homens não são assim, ou estão presentes de corpo e alma ou nem buscam estar junto.
- Elas dividem-se, nos enganam, mas é esse jogo, essa posse sem direito, esse ter incompleto que nos prende a elas, mas elas não fazem isso por maldade não, faz parte da natureza delas.
- E como podemos tê-las por inteiro?
- Não podemos, elas precisam ser amadas apaixonadamente sempre, e cada vez de uma nova maneira. Os homens se acostumam e se satisfazem em fazer as coisas de um mesmo jeito, elas não, os homens morrem antes do que elas, não no corpo, na alma.
- Ela se apaixonou por alguém – constatei triste.
- E você? – questionou-me Breno.
- Eu estava preocupado com minha profissão, com minha música, com minhas composições, que nunca saíram do computador, nunca consegui convencer ninguém a gravá-las. Filhos, a gente estava sempre adiando, hoje vejo que isso foi bom, se os tivesse estaria preso a ela pelo resto da vida.
- Os filhos separam os casais – disse Breno com frieza.
- Como assim? – indaguei.
- Antes deles existe romance, existe paixão, existe amor.
- Não sei, hoje vejo crianças no colo de seus pais e sinto algo bom, demorei muito tempo em minha vida para perceber as crianças, e muito mais para apreciá-las, na verdade crianças é a única coisa neste universo com sinceridade, é a única coisa que ainda me passa um sentimento bom, uma esperança.
- Esperança que dura pouco, rapidamente elas crescem e se transformam em nós – disse Breno com certo cinismo.
Não concordei com aquilo, mas fosse como fosse, família e filhos eram algo que não pertencia a mim.
- Mas eu a amei, e muito, como nunca – respondi.
- Eu acredito em você – disse Breno, olhando-me pela primeira vez naquela noite, seus olhos eram negros, profundos, pareciam dizer muito mais que suas palavras. Eu sentia algo estranho com ele, sentia-me protegido, entendido, mas também sentia medo, um medo sem explicação.
- Você já foi casado? – perguntei a ele.
- Algumas vezes – disse Breno com um sorriso sacana na boca, então se seguiu um silêncio que pareceu durar bem mais que alguns minutos.
Passei os olhos ao redor, olhei à esquerda, à direita, então larguei o olhar a minha frente. Não havia ninguém na praça, a fileiras de postes de ferro com as luminárias criavam uma estética agradável, deixavam o ar denso, aveludado. Fazia frio, mas não havia absolutamente nenhum vento, nenhum movimento. O semáforo funcionava, contudo o sinal vermelho mudou para o verde e ninguém passou. Por um instante senti-me a pessoa mais sozinha do mundo. Tantos deveriam estar em casa, muitos maridos, mesmo que sozinhos na frente de seus televisores, estariam seguros, cientes de que mulher e filhos dormiam em seus quartos, protegidos pelo lar e pela obviedade da vida normal. Vida normal, foi isso que eu busquei, foi isso que eu quis, mas não mais naquele momento.
- Boa noite, estou indo – disse Breno já em pé, a uns três passos distantes do banco, nem percebi quando ele se levantou.
- Boa noite, meu amigo.
Sentado, abri as pernas, inclinei-se, segurei a cabeça com as mãos, fechei os olhos e respirei fundo, então me levantei, olhei para o céu e desabafei:
- Deus, se você existe, me dá um sinal.
Morava perto do centro, chegava do Grande Hotel, deixava o carro em casa e ia a pé até o bar, depois voltava, devagar, pensando a cada passo, pesando em cada passo minhas agonias, tentando largá-las pelo chão, querendo aliviar minha alma. As estreitas e antigas ruas daquela cidade não cabiam minha dor, mas me consolavam, braços de uma mulher idosa, mornos, mas afetuosos, sempre disponíveis para me acalentar.
Abri o portão, subi as escadas da varanda, abri a porta da sala, liguei a lâmpada, entrei, fechei a porta, e me sentei no sofá. O controle do televisor estava no braço da poltrona, liguei e já fui abaixando o volume, queria imagens, mas não sons, o piano ainda batia em minha cabeça.
Peguei meu celular, havia uma mensagem de voz, o telefone nunca dá sinal em Águas de São Pedro, alguém deve ter me ligado enquanto eu estava lá, pensei. Liguei na caixa postal e ouvi a mensagem: “Oi, ainda lembra-se de mim? Tenho pensado muito em você ultimamente, tenho algumas novidades pra contar, se puder, me liga depois, beijo”. Era Celma, que novidades ela teria pra mim? Vai ver estava grávida do namorado, não, decidi que não queria mais nenhum contato com ela.

--------------------#--------------------

Deus sempre está atento a nossos pedidos, e sempre, sempre nos responde, de uma maneira ou de outra. Contudo, muitos de nós estamos com os ouvidos espirituais fechados, estão abertos à razão, à imaginação, aos demônios, mas não a Deus. Deus sempre fala prontamente e de maneira suave. Se tivermos atenção e temor, ouviremos, imediatamente após uma pergunta a resposta tranquila e firme de Deus nos respondendo.
A resposta de Deus é sempre maravilhosa, sempre consoladora, mesmo que seja um espera ou um não decisivo. Na resposta de Deus vemos a solução para o impossível, nosso coração sente paz onde achávamos que não havia solução, sentimos esperança, onde antes só existia angústia.
Na teimosia de querer ver as coisas resolvidas do nosso jeito, amplificamos tantas vozes dentro de nós, no meio de todo esse barulho a voz de Deus é confundida, e em nossa rebeldia só nos resta seguir sozinhos, achando que todos, inclusive Deus, esqueceu-se de nós.
A meditação e o relaxamento que psicologias e religiões orientais tanto ensinam são uma ferramenta poderosa, não para ouvir “espíritos guias” nem para curar ansiedades e fobias através da própria mente, mas para ouvir a voz do Deus verdadeiro, único e poderoso criador do universo, o médico para todas as dores e solidões.

Assim como a corça anseia pelas águas correntes, também minha alma anseia por ti, ó Deus!
Salmos 42.1

Nenhum comentário:

Postar um comentário