11 de out. de 2014

05 - Invenção a três vozes

Uma nota grave, a vibração de uma corda grossa, soa em nossas mentes quando estamos no silêncio de fim de noite, tentando nos desvencilhar de nós mesmos, procurando dormir. É o primeiro lá do piano, um tom baixo, mas pianíssimo, que já foi sétimo dó, agudo e fortíssimo, que incomodava-nos o dia todo. Agora é uma lembrança menor, dói menos, a tensão da corda da alma foi diminuída.
Uma melodia de lembranças toca dentro de nós, notas diferentes, variações de alturas, timbres e volumes, às vezes ela faz sentido. Então somos acalentados por uma sonoridade original. Cada um de nós pode compô-la, mas somente nós podemos ouvi-la, nós e Deus. Essa melodia é a trilha sonora de nossa vida, que entrega poesia à existência mais solitária e esquecida, todos nós temos uma canção dentro de nós.
Casar-se é harmonizar nossa melodia com outra, numa exclusividade que somente o verdadeiro amor permite, já que naturalmente, como sátiros gregos, queremos tocar nossas flautas livremente pelos bosques, seduzindo ninfas diversas, sem pertencer, contudo, a nenhuma delas.
É magia pura arranjar duas melodias distintas para formar uma música de duas vozes, como numa Invenção de Bach, contrapondo e se apoiando, ao mesmo tempo, entrelaçando, sem que uma seja mais importante que a outra. Fica muito mais bela uma música com duas vozes, com dois instrumentos, duas almas.
Naquela noite, no Grande Hotel, o repertório caminhava suavemente, as passagens entre uma música e outra parecia acontecer com naturalidade, levando os ouvintes a uma experiência tranquila, suscitando lembranças e sentimentos com ternura, devagar.
Aplaudiam quase que durante todo o tempo, uma noite especial, mas adequada a um público de quase quarenta anos para mais, um público maduro, gente que já tinha passado, que já tinha memórias. O bloco que eu tocava era uma seleção de música de cinema, testemunhas de momentos importantes de muitas vidas.
Um senhor estava em pé ao meu lado, já desde o começo da música que tocava, “Somewhere in time” de John Barry, tema do filme “Em algum lugar do passado”. Essa é uma peça que sempre agrada às pessoas, elas dizem que o Grande Hotel se parece com o hotel do filme, mesmo que o do filme estivesse na frente do mar. Quando acabei de tocar o homem começou a falar comigo.
- Este piano é bom? – disse ele.
- É um Bechstein bem conservado, um bom piano de armário – respondi com a voz baixa e cerimoniosa.
- Eu tenho um Steinway & Sons – disse ele com um largo sorriso na boca.
- Top, esse sim – respondi com admiração.
- Comprei em Nova York, lá tinha vários modelos pra gente tocar e escolher, importei por cento e vinte mil reais -  respondeu ele realizado.
- O senhor deve tocar muito bem – perguntei com seriedade.
- Muito pouco – disse o velho sem dar muita importância.
Bem, ele tinha conseguido seu intento, expor seu poder aquisitivo, não, aquele povo não fazia isso por mal, na verdade aqueles com posses há mais tempo, por gerações anteriores, nem se davam mais a esse trabalho. Esses já tinham se entediado com as coisas materiais que o dinheiro pode comprar, agora queriam cultura e arte.
No caso daquele advogado aposentado, herdeiro de terras e imóveis adquiridos pelo pai e o avo no começo do século XX, ele se sentia muito bem ouvindo sua própria voz listar os bens que colecionava, sim, porque quando já se tem tudo o que se precisa para viver bem, passa-se então a colecionar, repetir o que se possui, de marcar, tamanhos, cores e procedências diferentes.
Pra mim, que sou pianista, ele falou sobre o Steinway que possuía, para outro ele poderia falar sobre o Porsche, a Ferrari ou a Maserati. A ostentação daquele senhor não era intimidadora, ele não usava o que tinha para humilhar os outros, mas para se valorizar. Fiquei imaginando-me numa loja de pianos no exterior, onde se tem muito e bons instrumentos disponíveis para serem tocados e admirados.
Toco das dezenove às vinte e três horas, mas no meio, às vinte e uma horas, os hóspedes entram no restaurante principal para jantar então o bar fica quase que vazio. Desta vez a única exceção foi uma senhora, pouca coisa mais velha do que eu, que os cosméticos caros, produtos de beleza e uma vida cheia de confortos fazia parecer que tinha menos idade do que eu.
Na verdade eu não a percebi, durante as duas horas iniciais que toquei, ela estava bem atrás de mim. Como fico de costas para as mesas, uma posição bem deselegante, mas aquela que a gerência prefere que o pianista se coloque, não a tinha visto. Quando a sala ficou vazia, notei, quando terminei de tocar “The way we were”, cantada por Barbra Streisand no filme com o mesmo nome, um aplauso solitário, então olhei para trás e a vi. Ela se levantou e veio falar comigo.
- Obrigado por tocar esta música – disse-me ela com um brilho emocionado nos olhos.
- Eu é que agradeço por seus bons ouvidos – eu tentava, mas não conseguia ficar distante daquela gente, sempre era traído pelo coração, principalmente quando alguém transbordante de emoção me elogiava.
- Essa música marcou a minha vida, meu primeiro encontro com meu marido foi assistindo esse filme – ela olhou para baixo e com um sentimento profundo de tristeza contida que somente mulheres bem educadas e sensíveis têm me falou. Ela não parecia estar ali, pertencer àquele momento, ela estava distante, num outro lugar, num outro tempo.
- Barbra e Redford, filme de Sydney Pollack, canção maravilhosa, uma de minhas preferidas – respondi consciente de que nenhuma sinceridade minha seria suficiente para tratar com elegância àquela dama tão refinada.
- Ele morreu há três anos, de câncer, meu marido – meu Deus, eu desmoronei, rendido, meus olhos aguaram, meu coração se derramou, não sabia o que falar, ela me ajudou.
- Já estávamos nos preparando para isso há algum tempo, sua doença era na cabeça, não tinha cura. É difícil, mas a vida segue, neste hotel, contudo, parece que o tempo para – era exatamente o que eu sentia naquele lugar.
Ela me estendeu a mão, eu me levantei, apertei sua mão com minhas duas mãos e em silêncio ela se retirou. Parado, ao lado do piano, olhei-a até que ela entrou no restaurante. Aquele piso de grandes ladrilhos brancos e pretos, posicionados diagonalmente, embaralharam minha visão, sentei-me meio zonzo, aproveitei para dar um intervalo e tomar um café.
Pedi um café, encostei-me ao balcão e tomei, o garçom que me serviu entrou na salinha reservada do bar, provavelmente para beber o resto de vinho que tinha sobrado em uma garrafa. Olhei para a esquerda e vi o jardim de inverno vazio. Olhei para a direita e não havia nenhum funcionário na recepção. Na porta do restaurante também não havia ninguém. Eu apenas ouvia um ruído distante de gente conversando, que parecia não vir do restaurante, mas de um lugar bem mais distante. Era um som grave e baixo que batia nas paredes de minha memória ecoando meu passado.
Lembrei-me das meninas por quem me apaixonei. Lembrei-me daquele sentimento único que se tem com dezessete anos quando se declara para uma mulher que se gosta dela. Só o dizer das palavras já nos enche de prazer, um prazer misturado com medo, um medo que nos enche de coragem, uma coragem que nos deixa prontos para nada, já que seja qualquer for a resposta da mulher, já estaremos felizes só por dizer a ela o que sentimos. Amor platônico é assim mesmo, dura enquanto não o verbalizamos à pessoa amada, depois da declaração ele desaparece, como tem que ser, ele só pode existir na ilusão.
Aquela senhora era uma menina apaixonada, experimentava um amor platônico às avessas, que podia ser sentido, mas não realizado, não mais. Seu amante não tinha mais corpo, agora era alma, ausente do mundo, mas presente em seu coração. O que é mais presente que alguém que ainda se ama? Ele se foi, mas ficou o afeto. A saudade é o que existe de mais real, eterniza algo tão humanos e finitos, nossos sentimentos.
 Saudade não é a ausência, mas a presença, já que se algo tivesse realmente ido embora não estaria mais presente no coração como saudade. Aquela senhora, tão nobre que me pareceu, esforçava-se para harmonizar a melodia de sua alma com a saudade, uma melodia que se enfraquece com o tempo tanto quanto faz aumentar a dor. A dor da saudade reside no fato de se tentar manter vivo algo que morre, mais e mais com o tempo. A impotência de manter vivo algo que só existe no coração, um fadeout infinito de uma melodia única que já nos fez dançar de alegria um dia, é a maior dor que provamos nesta existência, a saudade.

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Uma melodia maior, universal, que pode ser conhecida de todos e mesmo assim manter originalidade, um mistério que as regras da estética não entendem, é Deus essa melódica. Ela harmoniza com qualquer alma, forma uma sinfonia maravilhosa com qualquer melodia, seja ela a mais simples que existir, sem cromatismos ou requintes timbrísticos. A humildade de Deus reside no fato de que através de Jesus, o Senhor de tudo e criador de todos, ele se compartilha com os homens, orgulhosos, ingratos e infiéis como são.
A voz de Deus soa como uma nota agradável, nem baixa, nem alta, acessível sempre, que tem o poder enarmonizar todos os seres com sua simpatia. Na frequência de Deus todos vibramos de forma graciosa e equilibrada. Mas não se enganem os que não querem o privilégio de ter uma experiência com um Deus pessoal que sente como um pai, age como um pastor e disciplina como um juiz. Deus não é uma energia positiva, impessoal e distante, presente nas criaturas, na natureza e nos astros. Quem é Deus? Jesus, verbo, é a definição de Deus e de sua iniciativa em redimir o homem.

“quando tocaram as trombetas em uníssono e cantaram para serem ouvidos, louvando o SENHOR e dando-lhe graças, e quando levantaram a voz com trombetas, címbalos e outros instrumentos de música, e louvaram o SENHOR, cantando: Porque ele é bom, porque o seu amor dura para sempre; então uma nuvem encheu o templo do SENHOR”
II Crônicas 5.13

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