13 de out. de 2014

03 - Sábado de manhã

Na manhã seguinte acordei cedo, bem, pra quem foi dormir às três horas da madrugada, nove horas da manhã é cedo. Eu estava empolgado, mas não sabia com que, queria ver o sol do sábado sobre os rostos das pessoas. Manhãs de sábado é um luxo que músicos dificilmente têm, já que às sextas-feiras sempre se trabalha até tarde. Mas eu queria ver vida, vida brincando, vida passeando, então fui ao centro. Como não podia deixar de ser, tomei meu café de costume, que naquela hora do dia era feito pelo Célio, o Raimundo só entrava no serviço às quinze horas. Entrei calado e saí calado, bons garçons sabem entender os humores de seus clientes.
A praça estava cheia, crianças aprendendo a andar, velhos cansados de andar, jovens aprendendo a namorar, velhos que ainda não tinham se cansado disso. Quem se cansa de amar? Podemos não ter mais vontade de se deitar com alguém, mas todos nós queremos brincar, sempre. Sexo de verdade só se prova na maturidade, quando se dá valor ao processo, e não ao ato final de desaguar fluídos. Eu invejava todos aqueles, crianças, jovens, velhos, que de um jeito ou de outro simplesmente brincavam com a vida. Será que, afinal de contas, conseguimos fazer algo, além disso, nesta existência? Brincar?
- Moço, pega minha bola – chamou minha atenção um menininho de uns cinco anos de idade.
- Onde está, meu querido?
- No meio dos seus pés.
- Ah, desculpe-me, nem percebi.
Peguei a bola, olhei para ela e a rolei bem devagar na frente do garoto. Ele saiu correndo, chutando a bola que logo em seguida foi parar embaixo de outro banco onde um casal estava sentado. É, a bola estava entre meus pés e eu não notei. Eu estava ocupado estudando, querendo ser o primeiro aluno da classe. Eu estava ocupado praticando piano, querendo bater o recorde mundial de velocidade de execução daqueles exercícios de Hanon. Eu estava ocupado lendo Nitzsche, assistindo Bergman e ouvindo Stravinski. Eu estava ocupado criando um personagem erudito, sisudo, enquanto a vida passava por mim como uma criança descalça, jogando futebol, lendo gibis, ouvindo samba e comendo goiaba em cima da árvore.
A criança ensolarada que fui teve seus momentos, mas o adulto cinza foi mais forte, eclipsou a inocência, roubou-me a simplicidade, a alegria. Toda aquela exposição gratuita de felicidade daquela praça me incomodava, como um raio de sol que invade um quarto fechado através da fresta de uma janela, acertando em cheio o corpo que se abre para o dia, mas com a alma ainda presa à noite. Eu era um refém da noite, amava a noite, nas sombras eu me sentia bem, amedrontado, mas acompanhado. Naquele banco de praça, eu me abstinha da realidade, tudo ficava nevoado, eu embaçava o mundo exterior para achar sentido para a minha alma tão distante. Debaixo dessa neblina nem percebi quando uma mulher sentou-se ao meu lado.
- O sol está quente hoje – disse ela, sem me olhar.
- Para um final de junho até que está quente – respondi, acordando de meu transe.
- Tenho pressão baixa, não gosto do calor.
- Entendo.
Era uma mulata, com um pouco mais de cinquenta anos, bonita de rosto, com o corpo acima do peso. Sua voz me passava o vigor de uma pessoa que já lutou e sofreu muito, mas que ainda sonha com a vida. Ela ficou alguns minutos ao meu lado, então voltou a falar.
- Bom, já deu pra descansar, preciso pegar meu ônibus.
- Boa sorte.
- Ela me olhou e sorriu, aquilo entrou em mim e me abriu, eu não tive outra saída senão sorrir. Algumas pessoas tem essa capacidade, de plantar no deserto de nossa desilusão uma bela flor de esperança.
Numa primeira olhada, num primeiro contato, não conhecemos os corações das pessoas, vemos antes de tudo seus rostos. Muitas vezes os corações estão pedindo por socorro aos berros, implorando por companhia, enquanto que os rostos dizem taxativamente “não se aproxime de mim, quero ficar só”.
Em minha frente, sentados num banco, havia um casal. A moça deveria ter vinte e poucos anos, o homem mais de trinta. Ela olhava para o lado direito, enquanto ele, sentado de lado no banco, falava-lhe ao ouvido. Ele sorria, ela estava séria, ele tentava convencê-la de algo, ela resistia, ele a pegava pela cintura, ela tentava se livrar de seus braços. Era a luta do macho, pedindo um sim, e da fêmea, dizendo que não, mas querendo, sim. Por que as pessoas não são honestas? Por que elas não dizem aquilo que realmente querem? Talvez porque elas não saibam o que querem, e não sabem, não porque não conhecem, mas porque têm medo do que sentem, acham que aquilo, por algum motivo, não está certo.
Passamos grande parte do tempo de nossas vidas assim, querendo algo, e sentindo-nos culpados por querer isso, depois, quando a culpa se gasta, quando a sensibilidade esfria e então estamos dispostos a fazer qualquer coisa, a paixão foge de nós e já não há mais prazer. O prazer é filho da paixão, que concebe quando se relaciona com um coração jovem, sensível, mas repleto de culpa. Somos essencialmente e naturalmente uma armadilha para nós mesmos, uma equação sem solução, e isso fica mais claro e mais dolorido à medida que nos afastamos dos outros. A solidão, ao mesmo tempo que nos revela, nos enclausura, isso porque nos confronta com a única pessoa que nunca realmente entenderemos nesta vida, nós mesmos.
Viver a dois deve ser, no mínimo, uma brincadeira a quatro mãos onde se finge acreditar que o objeto amado é perfeito, já que é isso que se ocorre na paixão. Essa perfeição é creditada não porque não se conhece os defeitos do amado, mas porque esses defeitos são relevados, faz-se vistas grossas para eles por se amar. Tendo alguém ao seu lado que te ama, que sobressalta suas qualidades, que enaltece suas virtudes, e esquece, ou pelo menos finge esquecer, de seus defeitos, é a única maneira de escapar da armadilha que nós armamos para nós mesmos.
Levantei-me, cansado de mim mesmo, cansado do sol, cansado de estar cansado. Desci a rua da esquerda da praça e fui em direção ao ponto onde se concentra os camelôs da cidade, sempre tem alguma novidade tecnológica sendo vendida, esse comércio me entretém por alguns momentos. O terminal de ônibus e o mercadão, como na maioria das cidades, também fica nessa região. Não tem lugar que a gente se sente mais gente do que nessa região do mercadão, shopping centers não possuem esse charme, um charme simplório, de aromas diversos, nem todos bons, com gente ansiosa para consumir nada que custe mais que alguns reais. Nesse lugar a felicidade por ser comprada por um e noventa e nove, e ainda sobre troco para um pastel com caldo de cana.
No meio daquela gente que vinha e ia por todos os lados, inclusive de cima e de baixo, uma aglomeração um pouco maior que a normal se formava a minha frente, pensei, deve ser o “homem da cobra” ou algum pregador ensandecido. Desviei-me pela esquerda, contudo, quando passei os olhos vi, entre um motorista de ônibus e uma mãe com um bebê no colo, o centro da roda. Parei e aproveitando a brecha que havia entre o homem e a mulher, pude ver com clareza o que acontecia.
Uma moça, com jaleco branco, apertava pausadamente o peito de uma mulher deitada no chão, eram exercícios de ressuscitação tentando reanimar alguém que havia tido uma parada cardíaca. Minha atenção inicial foi para o movimento desesperado da moça, mas depois de alguns instantes pude ver o rosto da mulher caída. Era aquela senhora que tinha se sentado ao meu lado no banco da praça. Naquele momento o meu coração apertou e subiram aos meus olhos um gosto amargo que amarrou meu semblante, eu me assustei.
Em seguida chegaram os paramédicos com uma maca, eles pegaram a mulher e a levaram para uma ambulância parada no estacionamento do mercadão. Todavia, passada e rendida, a moça de jaleco suspirou as palavras: “o coração parou, eu não consegui, ela se foi”. Mais alguns minutos e a roda se desfez, eu fiquei lá, congelado, acompanhando com os olhos a moça de jaleco desaparecer lentamente na multidão.
A lua se pôs sobre o sábado, eu voltei a minha noite, no escuro de minha alma dei meia volta e fui para casa, não, nenhum prazer bobo de comprar uma bugiganga eletrônica tiraria de mim aquele clima depressivo. Cheguei em casa, fiz um lanche frio e voltei para a cama, à noite o Grande Hotel novamente me aguardava para uma apresentação de piano, mas não sei porque, Breno apareceu em minha mente. Eu o via de negro, rindo, ao lado do corpo da mulher morta, ele ria e olhava pra mim, e aquilo, de alguma maneira, consolou-me, me mostrou uma saída.
Aquela experiência me colocou de frente com a morte e essa não me pareceu tão ruim.

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Ó SENHOR, agora tira-me a vida, pois, para mim, morrer é melhor que viver. O SENHOR respondeu: É razoável essa tua ira?.”
Jonas 4.3-4

Morre-se antes do tempo, e muitas vezes, se mata outras tantas, não a carne, mas a alma, isso quando se priva o ser humano de seus tempos. A criança que não se deixar brincar, o jovem que se impede de sonhar, o adulto que não tem direito a se apaixonar.
A melhor brincadeira é a mais simples, nos braços da natureza, na grama, na terra, na água, com o ar limpo e as pernas e braços livres pra correr, isso traz alegria ao coração e expande a mente.
Temos liberdade de sonhar ao lado de amigos, procurando e encontrando o amor de nossas vidas, exercendo uma profissão que entregue as pessoas o nosso melhor, criando filhos, nosso maior legado, que perpetuarão nossas virtudes, nossa missão de mudar o mundo para melhor.
Manter um coração apaixonável é missão do espírito livre, a paixão que transforma sonhos em realidade é remédio para as enfermidades, é ela que torna a vida encarnada eterna, já que se vive a eternidade já neste mundo.
Se a vida só existe em Deus, somente Deus em nós é que nos faz vivos, “penso logo existo”, diz o filósofo, mas só em Deus conseguimos pensar de maneira lúcida, só em Deus nos conhecemos e aos outros. Sem Deus é trevas, se caminha sem rumo, se cai e nem se percebe, machuca-se a si mesmo e aos outros e nem se sente.

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