Na manhã seguinte
acordei cedo, bem, pra quem foi dormir às três horas da madrugada, nove horas
da manhã é cedo. Eu estava empolgado, mas não sabia com que, queria ver o sol
do sábado sobre os rostos das pessoas. Manhãs de sábado é um luxo que músicos
dificilmente têm, já que às sextas-feiras sempre se trabalha até tarde. Mas eu
queria ver vida, vida brincando, vida passeando, então fui ao centro. Como não
podia deixar de ser, tomei meu café de costume, que naquela hora do dia era
feito pelo Célio, o Raimundo só entrava no serviço às quinze horas. Entrei
calado e saí calado, bons garçons sabem entender os humores de seus clientes.
A praça estava
cheia, crianças aprendendo a andar, velhos cansados de andar, jovens aprendendo
a namorar, velhos que ainda não tinham se cansado disso. Quem se cansa de amar?
Podemos não ter mais vontade de se deitar com alguém, mas todos nós queremos
brincar, sempre. Sexo de verdade só se prova na maturidade, quando se dá valor
ao processo, e não ao ato final de desaguar fluídos. Eu invejava todos aqueles,
crianças, jovens, velhos, que de um jeito ou de outro simplesmente brincavam com
a vida. Será que, afinal de contas, conseguimos fazer algo, além disso, nesta
existência? Brincar?
- Moço, pega minha
bola – chamou minha atenção um menininho de uns cinco anos de idade.
- Onde está, meu
querido?
- No meio dos seus
pés.
- Ah, desculpe-me,
nem percebi.
Peguei a bola,
olhei para ela e a rolei bem devagar na frente do garoto. Ele saiu correndo,
chutando a bola que logo em seguida foi parar embaixo de outro banco onde um
casal estava sentado. É, a bola estava entre meus pés e eu não notei. Eu estava
ocupado estudando, querendo ser o primeiro aluno da classe. Eu estava ocupado
praticando piano, querendo bater o recorde mundial de velocidade de execução
daqueles exercícios de Hanon. Eu estava ocupado lendo Nitzsche, assistindo Bergman
e ouvindo Stravinski. Eu estava ocupado criando um personagem erudito, sisudo, enquanto
a vida passava por mim como uma criança descalça, jogando futebol, lendo gibis,
ouvindo samba e comendo goiaba em cima da árvore.
A criança
ensolarada que fui teve seus momentos, mas o adulto cinza foi mais forte,
eclipsou a inocência, roubou-me a simplicidade, a alegria. Toda aquela
exposição gratuita de felicidade daquela praça me incomodava, como um raio de
sol que invade um quarto fechado através da fresta de uma janela, acertando em
cheio o corpo que se abre para o dia, mas com a alma ainda presa à noite. Eu
era um refém da noite, amava a noite, nas sombras eu me sentia bem,
amedrontado, mas acompanhado. Naquele banco de praça, eu me abstinha da
realidade, tudo ficava nevoado, eu embaçava o mundo exterior para achar sentido
para a minha alma tão distante. Debaixo dessa neblina nem percebi quando uma
mulher sentou-se ao meu lado.
- O sol está quente
hoje – disse ela, sem me olhar.
- Para um final de
junho até que está quente – respondi, acordando de meu transe.
- Tenho pressão
baixa, não gosto do calor.
- Entendo.
Era uma mulata, com
um pouco mais de cinquenta anos, bonita de rosto, com o corpo acima do peso. Sua
voz me passava o vigor de uma pessoa que já lutou e sofreu muito, mas que ainda
sonha com a vida. Ela ficou alguns minutos ao meu lado, então voltou a falar.
- Bom, já deu pra
descansar, preciso pegar meu ônibus.
- Boa sorte.
- Ela me olhou e
sorriu, aquilo entrou em mim e me abriu, eu não tive outra saída senão sorrir.
Algumas pessoas tem essa capacidade, de plantar no deserto de nossa desilusão
uma bela flor de esperança.
Numa primeira
olhada, num primeiro contato, não conhecemos os corações das pessoas, vemos
antes de tudo seus rostos. Muitas vezes os corações estão pedindo por socorro
aos berros, implorando por companhia, enquanto que os rostos dizem taxativamente
“não se aproxime de mim, quero ficar só”.
Em minha frente,
sentados num banco, havia um casal. A moça deveria ter vinte e poucos anos, o
homem mais de trinta. Ela olhava para o lado direito, enquanto ele, sentado de
lado no banco, falava-lhe ao ouvido. Ele sorria, ela estava séria, ele tentava
convencê-la de algo, ela resistia, ele a pegava pela cintura, ela tentava se livrar
de seus braços. Era a luta do macho, pedindo um sim, e da fêmea, dizendo que
não, mas querendo, sim. Por que as pessoas não são honestas? Por que elas não
dizem aquilo que realmente querem? Talvez porque elas não saibam o que querem,
e não sabem, não porque não conhecem, mas porque têm medo do que sentem, acham
que aquilo, por algum motivo, não está certo.
Passamos grande
parte do tempo de nossas vidas assim, querendo algo, e sentindo-nos culpados
por querer isso, depois, quando a culpa se gasta, quando a sensibilidade esfria
e então estamos dispostos a fazer qualquer coisa, a paixão foge de nós e já não
há mais prazer. O prazer é filho da paixão, que concebe quando se relaciona com
um coração jovem, sensível, mas repleto de culpa. Somos essencialmente e
naturalmente uma armadilha para nós mesmos, uma equação sem solução, e isso
fica mais claro e mais dolorido à medida que nos afastamos dos outros. A
solidão, ao mesmo tempo que nos revela, nos enclausura, isso porque nos
confronta com a única pessoa que nunca realmente entenderemos nesta vida, nós
mesmos.
Viver a dois deve
ser, no mínimo, uma brincadeira a quatro mãos onde se finge acreditar que o
objeto amado é perfeito, já que é isso que se ocorre na paixão. Essa perfeição
é creditada não porque não se conhece os defeitos do amado, mas porque esses
defeitos são relevados, faz-se vistas grossas para eles por se amar. Tendo
alguém ao seu lado que te ama, que sobressalta suas qualidades, que enaltece
suas virtudes, e esquece, ou pelo menos finge esquecer, de seus defeitos, é a
única maneira de escapar da armadilha que nós armamos para nós mesmos.
Levantei-me,
cansado de mim mesmo, cansado do sol, cansado de estar cansado. Desci a rua da
esquerda da praça e fui em direção ao ponto onde se concentra os camelôs da
cidade, sempre tem alguma novidade tecnológica sendo vendida, esse comércio me
entretém por alguns momentos. O terminal de ônibus e o mercadão, como na
maioria das cidades, também fica nessa região. Não tem lugar que a gente se
sente mais gente do que nessa região do mercadão, shopping centers não possuem
esse charme, um charme simplório, de aromas diversos, nem todos bons, com gente
ansiosa para consumir nada que custe mais que alguns reais. Nesse lugar a
felicidade por ser comprada por um e noventa e nove, e ainda sobre troco para
um pastel com caldo de cana.
No meio daquela
gente que vinha e ia por todos os lados, inclusive de cima e de baixo, uma
aglomeração um pouco maior que a normal se formava a minha frente, pensei, deve
ser o “homem da cobra” ou algum pregador ensandecido. Desviei-me pela esquerda,
contudo, quando passei os olhos vi, entre um motorista de ônibus e uma mãe com
um bebê no colo, o centro da roda. Parei e aproveitando a brecha que havia
entre o homem e a mulher, pude ver com clareza o que acontecia.
Uma moça, com
jaleco branco, apertava pausadamente o peito de uma mulher deitada no chão,
eram exercícios de ressuscitação tentando reanimar alguém que havia tido uma
parada cardíaca. Minha atenção inicial foi para o movimento desesperado da
moça, mas depois de alguns instantes pude ver o rosto da mulher caída. Era
aquela senhora que tinha se sentado ao meu lado no banco da praça. Naquele
momento o meu coração apertou e subiram aos meus olhos um gosto amargo que
amarrou meu semblante, eu me assustei.
Em seguida chegaram
os paramédicos com uma maca, eles pegaram a mulher e a levaram para uma
ambulância parada no estacionamento do mercadão. Todavia, passada e rendida, a
moça de jaleco suspirou as palavras: “o coração parou, eu não consegui, ela se
foi”. Mais alguns minutos e a roda se desfez, eu fiquei lá, congelado,
acompanhando com os olhos a moça de jaleco desaparecer lentamente na multidão.
A lua se pôs sobre
o sábado, eu voltei a minha noite, no escuro de minha alma dei meia volta e fui
para casa, não, nenhum prazer bobo de comprar uma bugiganga eletrônica tiraria
de mim aquele clima depressivo. Cheguei em casa, fiz um lanche frio e voltei
para a cama, à noite o Grande Hotel novamente me aguardava para uma
apresentação de piano, mas não sei porque, Breno apareceu em minha mente. Eu o
via de negro, rindo, ao lado do corpo da mulher morta, ele ria e olhava pra
mim, e aquilo, de alguma maneira, consolou-me, me mostrou uma saída.
Aquela experiência
me colocou de frente com a morte e essa não me pareceu tão ruim.
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“Ó SENHOR, agora tira-me a vida, pois, para
mim, morrer é melhor que viver. O SENHOR respondeu: É razoável essa tua ira?.”
Jonas 4.3-4
Morre-se antes do
tempo, e muitas vezes, se mata outras tantas, não a carne, mas a alma, isso
quando se priva o ser humano de seus tempos. A criança que não se deixar
brincar, o jovem que se impede de sonhar, o adulto que não tem direito a se
apaixonar.
A melhor
brincadeira é a mais simples, nos braços da natureza, na grama, na terra, na
água, com o ar limpo e as pernas e braços livres pra correr, isso traz alegria
ao coração e expande a mente.
Temos liberdade de
sonhar ao lado de amigos, procurando e encontrando o amor de nossas vidas, exercendo
uma profissão que entregue as pessoas o nosso melhor, criando filhos, nosso
maior legado, que perpetuarão nossas virtudes, nossa missão de mudar o mundo
para melhor.
Manter um coração
apaixonável é missão do espírito livre, a paixão que transforma sonhos em
realidade é remédio para as enfermidades, é ela que torna a vida encarnada
eterna, já que se vive a eternidade já neste mundo.
Se a vida só existe
em Deus, somente Deus em nós é que nos faz vivos, “penso logo existo”, diz o
filósofo, mas só em Deus conseguimos pensar de maneira lúcida, só em Deus nos
conhecemos e aos outros. Sem Deus é trevas, se caminha sem rumo, se cai e nem
se percebe, machuca-se a si mesmo e aos outros e nem se sente.
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