8 de out. de 2014

08 - Fazendo o balancete

Eu tinha chegado a um ponto crítico da minha vida, olhava para trás e não achava nada sólido o suficiente para me sustentar, o chão era uma fina camada de gelo sobre um rio negro e gelado, se eu desse mais um passo, quebraria o piso e afundaria, morreria de hipotermia antes mesmo de me afogar.
Meus pais estavam longe, os poucos contatos que tinha com eles só me deixavam mais frustrado. Sentia-me sempre cobrado, e não era nem pelo que eles eram agora, estavam velhos demais para lançar sobre mim a culpa pelos erros não assumidos deles mesmos. Contudo, os fantasmas daquilo que eles tinham sido me atormentavam, fantasmas do passado são piores que os vivos do presente, fantasmas mantém vivo o pior lado das pessoas. Eu teria que exorcizá-los, se quisesse continuar vivendo, se quisesse ser feliz, mas naquele momento eu não tinha forças pra isso.
Meu irmão mais novo tinha se tornado meu maior inimigo, ele, que sempre foi mais bem sucedido que eu, pelo menos na área profissional, mantinha por mim uma inveja constante, e como toda inveja, nunca foi assumida. Assumimos várias fraquezas, já que mesmo elas podem nos colocar numa posição de fortaleza. É assim com o ódio, ele fortalece-nos à medida que nos sentimos injustiçados, já que não queremos odiar quem está certo, mas que está nos fazendo mal, mesmo que esse mal seja uma invenção de nossas cabeças. Também é assim com a humilhação, nos coloca como vítimas o que nos dá o direito de por quem achamos que nos humilha como o agressor.
Mas não acontece assim com a inveja, talvez seja a única fraqueza que não queremos assumir, já que assumi-la representa fortalecer o objeto invejado, fortalecendo o invejado, enfraquecemos a nós mesmo, numa ordem direta.
A vida toda é um jogo de vaidades, brincamos com o mal e o mantemos, se ele de alguma forma, mesmo que doentia, nos der alguma vantagem sobre as pessoas. Meu irmão nunca iria assumir que me invejava, mas que tolice era isso, o que tinha eu para ser invejado? Nunca achei que tivesse alguma coisa, por isso demorei a perceber que ele sentia-se assim.
Celma, ela tinha deixado um recado no meu celular, naquele momento aquilo não me dizia mais nada, tudo o que eu tinha sentido um dia por ela parecia acabado. Mas mesmo sendo aquela relação um poço fundo, eu não queria olhar para ele, mesmo vazio tinha algo lá dentro que me atraía, algo frio e escuro, portanto me mantinha distante dela.
Minha profissão não tinha me dado independência, às vezes ainda precisava pedir socorro aos meus velhos pais para pagar as contas, algo que me constrangia bastante, algo que dava razão às acusações que meu irmão tanto me fazia, de que eu vivia uma vida só a busca de prazeres e que nunca assumia de fato a realidade. Que mentira, como se um músico tivesse direito à escolha, sempre estive preso às teclas de um piano, e naquele momento eu não sabia fazer outra coisa. Sempre fiz bem isso, sempre fui elogiado pela minha música, mas aplausos não colocam comida em casa.
Quando a morte se torna solução? Quando a dor é grande demais, maior que qualquer prazer, que qualquer possibilidade de prazer. Eis aí outra definição da vida, uma grande aventura em busca de prazer, prazer que eu não esperava mais encontrar. Era assim que eu me sentia, olhava para frente e não via nada.
Eu ainda não tinha quarenta anos, tantos nessa idade estão terminando os primeiros casamentos e vivendo novamente a adolescência, namorando com todo mundo, gastando vida com a irresponsabilidade, esquentando o corpo, esfriando a alma, com toda a malícia que o tempo dá às pessoas que fogem de Deus. E vai mais uma definição da vida, uma escola cujo objetivo é matar o espírito, fazer de nós apenas corpos e almas, impedir qualquer possibilidade real de ter contato com Deus.
Eu não tinha vontade de beijar, gosto em me embriagar, me alimentava mal, estava magro e fraco. A morte já tomava conta de mim há algum tempo, na barba que não fazia, nas roupas velhas que usava, eu cheirava morte. Andando no shopping e sentia que as mulheres se afastavam de mim, me olhava com desdém, eu não chamava a atenção de mais ninguém.
Pensava na morte, mas não queria sentir dor, aquela dor que existe dentro de um carro que bate a cento e trinta quilômetros por hora de frente com um caminhão, quando o volante entra em sua barriga, comprimindo seus órgãos, quando o vidro da frente é quebrado com a sua cabeça, quando os membros são decepados. Quanto tempo fica-se consciente enquanto o corpo é moído até parar de funcionar? Quanto tempo fica-se consciente e senti-se a dor da carne sendo cortada, dos ossos sendo quebrados, e do sangue, muito sangue, escorrendo e escorrendo? Que tamanho tem essa dor? Desmaia-se e se morre dormindo ou padece-se de um dor horrível até que o espírito fica livre da matéria?
Sempre que pensamos em morte, sentimos dor, e não é medo do inferno, pelo menos não era pra mim, eu não acreditava em inferno, não acreditava em nada. Achava que o deus da maioria era uma criação dos fracos, dos covardes, dos que tinham preguiça de buscar com suas próprias mãos o entendimento da vida.
Eu acreditava na existência de um Deus maior e positivo, mas como alguém que acompanhava tudo de longe, sem se intrometer muito nas coisas. Eu respeitava os cristãos, tinha conhecido crentes realmente lúcidos e coerentes, mas aquilo não era pra mim, aquilo era o caminho deles, e não o meu. Cheguei mesmo a achar que se existisse um Deus, esse abençoava os outros, mas por algum motivo não me abençoava. Não, não acreditava que Deus era injusto, só achava que eu era diferente.
Na minha dor, pensava que entendia a todos, até Deus, achava que sabia o porquê dele não me querer. Na minha dor eu acreditava que eu já tinha errado demais e não tinha direito a nada, nem mesmo à dor. Era isso que meu irmão me dizia, que eu me fazia de vítima, que a vida tinha sido dura pra ele também, e nem por isso ele havia se rendido. Eu, dizia ele, era um covarde, um perdedor que ficava colocando nos outros a culpa por minhas derrotas. Essa é a pior coisa que alguém pode roubar de você, a pior e a última, seu direito à dor.
Eu não tinha amigos, as pessoas mais próximas de mim eram os garçons dos lugares onde eu tocava e dos bares onde tomava meus cafés, acho que minha melhor amiga naquele tempo era uma xícara de café. Até hoje ainda gosto de tomar um café novo, forte e quente, mas naquela época a sensação de ânimo que a cafeína me dava era todo o prazer que eu tinha na vida.
Fazia também alguns anos que eu não pegava prostituta, mesmo porque se fora o tempo em que o risco de sair com uma era uma gonorreia curada rapidamente com uma simples tetraciclina. A AIDS é caminho solitário e sem volta, e mesmo que se possa viver a troco de coquetéis de remédios, se eu a adquirisse com certeza não teria força emocional para coexistir com ela, morreria de depressão antes que de tuberculose ou de outra doença.
Na verdade só fui até o final com profissionais do sexo no começo de minha mocidade, quando o relacionamento sexual ainda era uma novidade que meu corpo tanto desejava. Depois, com o passar dos anos, pagava mulheres para alívios mais rápidos sem penetração, e nas últimas vezes que tinha saído com alguém assim, paguei só para ter alguém para conversar, queria ouvidos e não uma vagina, fiz isso ainda vivendo com Celma.
Eu não queria a morte porque minha vida era vazia, vida vazia não dói, tantos passam a existência na mediocridade e estão satisfeitos. Mas isso também é um equívoco, ninguém é medíocre, ocorre é que alguns se satisfazem com menos. O arrogante é o que sofre, pois está sempre querendo segurar algo maior que ele, quer aprisionar um passarinho que não cabe em sua gaiola. É essa insatisfação que nasce da falta de humildade em aceitar a realidade que dói, é ela quem acha na morte um alívio. Eu não estava vazio, estava cheio, de mentiras, de culpas, de mim mesmo.
Esse balancete estava em minha cabeça na viagem de volta do hotel, naquela sexta-feira. Cheguei à cidade, guardei o carro na garagem e fui a pé para o bar. Quando passei pela praça, sentado num banco, com seu uniforme negro, estava Breno, sendo fumado pelo cigarro. Eu não queria parar ali, queria meu café na companhia da noite e só, depois voltaria para a casa e dormiria, mas algo me impulsionou para aquele lugar, algo mais forte do que eu. O que me impediu numa outra vez de me aproximar dele, agora parecia ter se ausentado de mim, eu estava sozinho naquele momento com o mal.

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Quanto tempo perdemos fazendo as considerações erradas, analisando e sofrendo com uma visão equivocada da vida, achamos-nos donos da razão, prepotentes com os olhos fixos num buraco pequeno e sujo, impedindo-nos de olhar para cima, para um céu azul e infinito cheio de possibilidades de mudanças, de saídas.
Caminhamos cegos ao redor desse buraco, dia após dia, repetindo para nós mesmos as mentiras que outros nos disseram, querendo nos convencer pelos discursos dos outros que nossa vida não tem mais jeito. Quem pode mudar um coração disposto a se convencer que a vida é ruim, que se coloca como vítima, que procura e acha nos outros o motivo para ser um eterno condenado ao fracasso?
O sol se apaga, a luz se esconde, a pele sente frio, a visão embaça, as pernas doem e não andam mais, os braços endurecem e se entendem mais, as mãos não tocam, fica-se insensível, distante, sozinho mesmo diante de um amigo que nos chama para fora, para fora de nós mesmo. É nesse momento que o diabo se torna a melhor opção, que se faz amigo, que nós achamos em sua luz minúscula e roxa algum calor. Trocamos as labaredas de vida de Deus, a luz branca do Espírito Santo, por um canto verde escuro, mofado de morte.

“Meu coração dispara dentro de mim, e o pavor da morte me domina. Temor e tremor me sobrevêm, e o horror toma conta de mim. Por isso, eu disse: Ah! Quem me dera ter asas como de pomba! Eu voaria e encontraria descanso. Fugiria para longe e me esconderia no deserto. E logo me protegeria da fúria do vento e da tempestade.” (Salmos 55.4-8).

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