Eu tinha chegado a um ponto crítico da minha vida, olhava para
trás e não achava nada sólido o suficiente para me sustentar, o chão era uma
fina camada de gelo sobre um rio negro e gelado, se eu desse mais um passo,
quebraria o piso e afundaria, morreria de hipotermia antes mesmo de me afogar.
Meus pais estavam
longe, os poucos contatos que tinha com eles só me deixavam mais frustrado. Sentia-me
sempre cobrado, e não era nem pelo que eles eram agora, estavam velhos demais
para lançar sobre mim a culpa pelos erros não assumidos deles mesmos. Contudo, os
fantasmas daquilo que eles tinham sido me atormentavam, fantasmas do passado
são piores que os vivos do presente, fantasmas mantém vivo o pior lado das
pessoas. Eu teria que exorcizá-los, se quisesse continuar vivendo, se quisesse
ser feliz, mas naquele momento eu não tinha forças pra isso.
Meu irmão mais novo
tinha se tornado meu maior inimigo, ele, que sempre foi mais bem sucedido que
eu, pelo menos na área profissional, mantinha por mim uma inveja constante, e
como toda inveja, nunca foi assumida. Assumimos várias fraquezas, já que mesmo
elas podem nos colocar numa posição de fortaleza. É assim com o ódio, ele fortalece-nos
à medida que nos sentimos injustiçados, já que não queremos odiar quem está
certo, mas que está nos fazendo mal, mesmo que esse mal seja uma invenção de
nossas cabeças. Também é assim com a humilhação, nos coloca como vítimas o que
nos dá o direito de por quem achamos que nos humilha como o agressor.
Mas não acontece
assim com a inveja, talvez seja a única fraqueza que não queremos assumir, já
que assumi-la representa fortalecer o objeto invejado, fortalecendo o invejado,
enfraquecemos a nós mesmo, numa ordem direta.
A vida toda é um
jogo de vaidades, brincamos com o mal e o mantemos, se ele de alguma forma,
mesmo que doentia, nos der alguma vantagem sobre as pessoas. Meu irmão nunca
iria assumir que me invejava, mas que tolice era isso, o que tinha eu para ser
invejado? Nunca achei que tivesse alguma coisa, por isso demorei a perceber que
ele sentia-se assim.
Celma, ela tinha
deixado um recado no meu celular, naquele momento aquilo não me dizia mais
nada, tudo o que eu tinha sentido um dia por ela parecia acabado. Mas mesmo
sendo aquela relação um poço fundo, eu não queria olhar para ele, mesmo vazio
tinha algo lá dentro que me atraía, algo frio e escuro, portanto me mantinha distante
dela.
Minha profissão não
tinha me dado independência, às vezes ainda precisava pedir socorro aos meus
velhos pais para pagar as contas, algo que me constrangia bastante, algo que
dava razão às acusações que meu irmão tanto me fazia, de que eu vivia uma vida
só a busca de prazeres e que nunca assumia de fato a realidade. Que mentira,
como se um músico tivesse direito à escolha, sempre estive preso às teclas de
um piano, e naquele momento eu não sabia fazer outra coisa. Sempre fiz bem
isso, sempre fui elogiado pela minha música, mas aplausos não colocam comida em
casa.
Quando a morte se
torna solução? Quando a dor é grande demais, maior que qualquer prazer, que
qualquer possibilidade de prazer. Eis aí outra definição da vida, uma grande
aventura em busca de prazer, prazer que eu não esperava mais encontrar. Era
assim que eu me sentia, olhava para frente e não via nada.
Eu ainda não tinha
quarenta anos, tantos nessa idade estão terminando os primeiros casamentos e
vivendo novamente a adolescência, namorando com todo mundo, gastando vida com a
irresponsabilidade, esquentando o corpo, esfriando a alma, com toda a malícia
que o tempo dá às pessoas que fogem de Deus. E vai mais uma definição da vida,
uma escola cujo objetivo é matar o espírito, fazer de nós apenas corpos e
almas, impedir qualquer possibilidade real de ter contato com Deus.
Eu não tinha
vontade de beijar, gosto em me embriagar, me alimentava mal, estava magro e
fraco. A morte já tomava conta de mim há algum tempo, na barba que não fazia,
nas roupas velhas que usava, eu cheirava morte. Andando no shopping e sentia
que as mulheres se afastavam de mim, me olhava com desdém, eu não chamava a
atenção de mais ninguém.
Pensava na morte, mas
não queria sentir dor, aquela dor que existe dentro de um carro que bate a
cento e trinta quilômetros por hora de frente com um caminhão, quando o volante
entra em sua barriga, comprimindo seus órgãos, quando o vidro da frente é
quebrado com a sua cabeça, quando os membros são decepados. Quanto tempo
fica-se consciente enquanto o corpo é moído até parar de funcionar? Quanto
tempo fica-se consciente e senti-se a dor da carne sendo cortada, dos ossos
sendo quebrados, e do sangue, muito sangue, escorrendo e escorrendo? Que
tamanho tem essa dor? Desmaia-se e se morre dormindo ou padece-se de um dor
horrível até que o espírito fica livre da matéria?
Sempre que pensamos
em morte, sentimos dor, e não é medo do inferno, pelo menos não era pra mim, eu
não acreditava em inferno, não acreditava em nada. Achava que o deus da maioria
era uma criação dos fracos, dos covardes, dos que tinham preguiça de buscar com
suas próprias mãos o entendimento da vida.
Eu acreditava na
existência de um Deus maior e positivo, mas como alguém que acompanhava tudo de
longe, sem se intrometer muito nas coisas. Eu respeitava os cristãos, tinha
conhecido crentes realmente lúcidos e coerentes, mas aquilo não era pra mim,
aquilo era o caminho deles, e não o meu. Cheguei mesmo a achar que se existisse
um Deus, esse abençoava os outros, mas por algum motivo não me abençoava. Não,
não acreditava que Deus era injusto, só achava que eu era diferente.
Na minha dor, pensava
que entendia a todos, até Deus, achava que sabia o porquê dele não me querer.
Na minha dor eu acreditava que eu já tinha errado demais e não tinha direito a
nada, nem mesmo à dor. Era isso que meu irmão me dizia, que eu me fazia de
vítima, que a vida tinha sido dura pra ele também, e nem por isso ele havia se
rendido. Eu, dizia ele, era um covarde, um perdedor que ficava colocando nos
outros a culpa por minhas derrotas. Essa é a pior coisa que alguém pode roubar
de você, a pior e a última, seu direito à dor.
Eu não tinha
amigos, as pessoas mais próximas de mim eram os garçons dos lugares onde eu
tocava e dos bares onde tomava meus cafés, acho que minha melhor amiga naquele
tempo era uma xícara de café. Até hoje ainda gosto de tomar um café novo, forte
e quente, mas naquela época a sensação de ânimo que a cafeína me dava era todo
o prazer que eu tinha na vida.
Fazia também alguns
anos que eu não pegava prostituta, mesmo porque se fora o tempo em que o risco
de sair com uma era uma gonorreia curada rapidamente com uma simples
tetraciclina. A AIDS é caminho solitário e sem volta, e mesmo que se possa
viver a troco de coquetéis de remédios, se eu a adquirisse com certeza não
teria força emocional para coexistir com ela, morreria de depressão antes que
de tuberculose ou de outra doença.
Na verdade só fui
até o final com profissionais do sexo no começo de minha mocidade, quando o
relacionamento sexual ainda era uma novidade que meu corpo tanto desejava. Depois,
com o passar dos anos, pagava mulheres para alívios mais rápidos sem
penetração, e nas últimas vezes que tinha saído com alguém assim, paguei só
para ter alguém para conversar, queria ouvidos e não uma vagina, fiz isso ainda
vivendo com Celma.
Eu não queria a
morte porque minha vida era vazia, vida vazia não dói, tantos passam a existência
na mediocridade e estão satisfeitos. Mas isso também é um equívoco, ninguém é
medíocre, ocorre é que alguns se satisfazem com menos. O arrogante é o que
sofre, pois está sempre querendo segurar algo maior que ele, quer aprisionar um
passarinho que não cabe em sua gaiola. É essa insatisfação que nasce da falta
de humildade em aceitar a realidade que dói, é ela quem acha na morte um
alívio. Eu não estava vazio, estava cheio, de mentiras, de culpas, de mim
mesmo.
Esse balancete
estava em minha cabeça na viagem de volta do hotel, naquela sexta-feira.
Cheguei à cidade, guardei o carro na garagem e fui a pé para o bar. Quando
passei pela praça, sentado num banco, com seu uniforme negro, estava Breno,
sendo fumado pelo cigarro. Eu não queria parar ali, queria meu café na
companhia da noite e só, depois voltaria para a casa e dormiria, mas algo me
impulsionou para aquele lugar, algo mais forte do que eu. O que me impediu numa
outra vez de me aproximar dele, agora parecia ter se ausentado de mim, eu
estava sozinho naquele momento com o mal.
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Quanto tempo
perdemos fazendo as considerações erradas, analisando e sofrendo com uma visão
equivocada da vida, achamos-nos donos da razão, prepotentes com os olhos fixos
num buraco pequeno e sujo, impedindo-nos de olhar para cima, para um céu azul e
infinito cheio de possibilidades de mudanças, de saídas.
Caminhamos cegos ao
redor desse buraco, dia após dia, repetindo para nós mesmos as mentiras que
outros nos disseram, querendo nos convencer pelos discursos dos outros que
nossa vida não tem mais jeito. Quem pode mudar um coração disposto a se convencer
que a vida é ruim, que se coloca como vítima, que procura e acha nos outros o
motivo para ser um eterno condenado ao fracasso?
O sol se apaga, a
luz se esconde, a pele sente frio, a visão embaça, as pernas doem e não andam
mais, os braços endurecem e se entendem mais, as mãos não tocam, fica-se
insensível, distante, sozinho mesmo diante de um amigo que nos chama para fora,
para fora de nós mesmo. É nesse momento que o diabo se torna a melhor opção,
que se faz amigo, que nós achamos em sua luz minúscula e roxa algum calor.
Trocamos as labaredas de vida de Deus, a luz branca do Espírito Santo, por um
canto verde escuro, mofado de morte.
“Meu coração dispara dentro de mim, e o pavor da morte me domina. Temor
e tremor me sobrevêm, e o horror toma conta de mim. Por isso, eu disse: Ah!
Quem me dera ter asas como de pomba! Eu voaria e encontraria descanso. Fugiria
para longe e me esconderia no deserto. E logo me protegeria da fúria do vento e
da tempestade.” (Salmos 55.4-8).
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