10 de out. de 2014

06 - Um anjo sobre aquele lugar

Naquele sábado de manhã a música “The way we were” ainda estava na minha cabeça como trilha sonora da imagem daquela gentil senhor quando, sentado em um banco da praça, eu abri o jornal, um jornal da capital. A matéria não dava o nome exato, mas dizia que uma criança havia morrido no playground de um grande hotel em Águas de São Pedro, a informação é que tinha sido durante a semana, enquanto a menina brincava num balanço, a barra de ferro que sustentava a cadeira havia caído sobre ela. Eu tinha estado por lá na noite anterior e ninguém comentou isso comigo, a discrição comum daqueles profissionais tinha mantido sigilosa mesmo de mim, que frequentava o lugar há tantos anos, aquele notícia trágica.
No final da tarde estava eu lá novamente, entrando no Grande Hotel. Parecia-me tudo igual, a viela marginal que dá acesso aos estacionamentos ainda continuava mágica. Árvores repletas de primavera, abraçando o caminho, ainda faziam com que eu me sentisse acolhido. Caído, o sol amarelava o céu, deixando surreal o momento mais espetacular do dia. Dourada, a terra se despedia do astro maior e dava boas-vindas à noite. Nesse momento, nada parece ter raízes, nada se prende. Solto, dança o natural, se é que ele existe, com o sobrenatural.
Naquele lugar, o horizonte sempre me parece mais baixo, lá, tenho a impressão de estar acima de tudo, como se fosse um local protegido, guardado apenas para os que podem pagar o preço. O preço pode não ser dinheiro, é mais que isso, é vaidade, mas também é o bom gosto, aquele que dinheiro algum compra. Outros, e esses são os que mais tiram proveito do local, sabem da história do hotel, pisam com cuidado naqueles pisos de ladrilhos xadrezes e de grandes e polidos tacos de madeira, mesmo os reflexos desses nos espelhos cristalinos, são registrados com respeito.
Após deixar o carro no estacionamento e descer uma ladeira que me deixa bem cansado na saída, quando tenho que subi-la, entrei pelos fundos. Ouvi o eco do som do pianista no ambiente do bar, vi, de longe, as siluetas das famílias abastadas, que tentam fazer trivial algo que nem eles sentem que é. Eu estava na companhia dos sofás, das poltronas, do chão, das paredes, dos quadros, do teto e dos lustres, esses têm muito a falar do lugar. Os abajures de vitral e as estatuetas de nus e de animais em mármore revelavam a art déco. Relógios distribuídos pelos ambientes, nem todos funcionando, não depois de quase um século de existência, gesticulavam para mim, eufóricos, os únicos que celebram a minha presença por lá. Aproveitei o momento, pois sabia que depois dele quatro horas sentado ao piano me deixariam em companhia de Gershwin, Piazzola e Jobim. A exceção, geralmente, era de algumas senhoras esbranquiçadas e solteirões de trinta anos meio alterados, que me parecem sempre estar sob o efeito de alguma medicamentação psiquiátrica. Esses me elogiam, não por eu ter tocado bem, mas por ter tocado algo que eles conhecem. A plateia não aplaude os outros, mas a si mesma por se identificar de alguma maneira com a arte compartilhada.
Os espaços harmonizados e iluminados, deixando, contudo, aparecer, como que querendo confidenciar algum segredo, portas de salas escuras, sempre falam mais comigo que as pessoas. Existe muito mais gente no vazio do que na multidão. No vazio passeiam, com liberdade, as lembranças, e elas multiplicam os seres. Uma mulher se transforma em uma iluminada criança, numa jovem encantadora e em uma velha saudosa, entupida de maquiagem, todas ao mesmo tempo, todas em um só lugar. A realidade sempre é só, a fantasia está sempre acompanhada, e memórias são sempre fantasias. A mente humana não funciona como uma máquina fria, mas como uma câmera fotográfica. Tem o olho e a mão do fotógrafo interagindo com ela, que escolhe, corta e registra, não a realidade, mas a ilusão. Uma lembrança não expressa verdade, mas a sensação que se teve da verdade, e ela pode ser exagerada, tanto quanto omissa.
Atravessei pelo prédio detrás do hotel, onde fica o cinema e os salões de eventos, desci a escada, cruzei o longo jardim de inverno, parece que ele está por lá só para me amedrontar. Entrei no bar, meu companheiro de ofício dedilhava algum Cole Porter, levantou a cabeça e sorriu pra mim, sem retirar os dedos das teclas, eu o cumprimentei e segui. Sorri para os garçons, sempre marotos, gente simples que se faz de refinada, não por obrigação, mas como opção elegante e com muito prazer.
Passei pela recepção, peguei à direita e caminhei pela entrada principal do hotel. Eu sempre me aposso de um cuidado redobrado quando ando por lá, não, aquilo não é entrada de um hotel, mas de uma igreja de alguma cidadela alemã, antiga e suntuosa. Caminho em uma velocidade controlada, não rápida, para não parecer nervoso, e nem lenta, para parecer irreverente. Meus pés se movem, mas minha alma ficava paralisada diante da visão da escada, que dá acesso ao andar superior e aos quartos. Nunca deixo de me sentir em um filme hollywoodiano dos anos 1950 quando passo por lá.
Então entrei pelo corredor que dá acesso ao restaurante vip, um restaurante menor do hotel onde se frequenta com reservas. Ainda estava às sombras, luzes acesas no mínimo, Dave Brubeck tocava baixinho dando ao local aquele ar de cool jazz que tanto me agrada. O Petrof, negro, imponente e mudo, aguardava que eu o acarinhasse. Eu o abri, repousei meu livro de partituras sobre ele e respirei fundo. Tinha chegado mais cedo, demoraria quase uma hora para que alguém aparecesse. Sentei-me numa poltrona, uma pequena vela me confortava sobre uma mesinha redonda a minha frente, então abri o livro que tinha trazido comigo, o portenho Jorge Luis Borges seria minha companhia por algum tempo. Abri na página marcada, contudo meus olhos não queriam se apegar às palavras, algo me incomodava.
Ela ainda estava por lá, flutuando sobre o lugar, eu já a tinha sentido na viela que dá acesso aos estacionamentos, impedindo que o pouco sol do ocaso aquentasse as árvores, mas fingi não percebê-la. Estava branca, espalhada no ar, com um sorriso no rosto e com o peito manchado de vermelho. O lugar parecia ser o mesmo, mas nunca mais o será, maculado que foi pela morte de uma inocente, uma inocente que brincava no parque.
O que mais nos choca é aquilo que não esperamos, não esperava que tal tragédia ocorresse lá, lugar tão guardado de tudo aos meus olhos. Mas que lugar é protegido da morte? Ou, quando é que a morte não nos choca, quando ela não nos pega de surpresa? Pensando melhor, o hotel sempre foi um barco fantasma, navegando pelo tempo. Ocorre que até então eram fantasmas de velhos, agora era uma alma criança que pairava no ar. Crianças fantasmas não deveriam existir, crianças não devem morrer, nunca. Crianças estão mais próximas da eternidade que os velhos, visto que estão há menos tempo entre os encarnados. Por isso elas são tão limpas, tão espirituais, ainda carregam em si uma chama forte de Deus, que depois fica fraca e que nós tanto lutamos para manter acesa.
O Grande Hotel nunca mais foi o mesmo pra mim, mais uma ilusão que se esvaiu de minha existência. A desilusão é o apagar de um holofote, que deixa o palco escuro. Os atores podem ainda estar por lá, eles relutam em sair, mas quem pode ver o show? Eles se batem uns contra os outros, lançando palavras ao léu. Mas cansados, finalmente desistem, caem ao chão e se abraçam, buscando nos corpos de seus pares algum calor. Eles ainda insistem por mais tempo que a plateia, essa é volúvel, se dissolve a menor variação da luz. A plateia quer emoção, quer lágrimas, quer gargalhar. O nada elas não aceitam, desilusão é o nada, é a incoerência, é a imagem de gesso, a promessa do traidor, o sorriso do louco, o brinquedo de parque que mata.
A menina poderá ser esquecida, e todos, com exceção de seus pais, não a chorarão mais, mas ela estará por lá, sobre aquele lugar, sempre. As festas, a boa e farta comida, o vinho caro, a música sofisticada, o luxo dos quartos e dos salões, tudo isso falará alto, outros relógios deixarão de funcionar, novos garçons aprenderão a lidar com a etiqueta. Mas quando eu paro, por um instante, e presto atenção ao silêncio dos móveis, dos objetos de decoração, do campo que se vê pelas janelas enormes, das árvores e das vielas que distanciam o lugar do mundo moderno, eu a vejo, branca, espalhada no ar, com um sorriso no rosto, com o peito manchado de sangue.

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E, adiantando-se um pouco, prostrou-se com o rosto em terra e orou: Meu Pai, se possível, afasta de mim este cálice; todavia, não seja como eu quero, mas como tu queres.”
Mateus 26.39

Morte, a única certeza que se tem nesta vida, e que nos surpreende sempre. Porque é partida da carne ou porque é chegada do espírito? Não, porque é confronto com a fragilidade humana.
A morte que mais se teme é a morte dos outros, é um sentimento egoísta de quem é furtado de um bem que tanto estimava, já que não se sofre pela possibilidade de dor que o que partiu poderá sentir, mas pela certeza da angústia que quem ficou terá que viver.
Muitos, porém, temem a própria morte, mas vivem fingindo que ela não ocorrerá, dizem que quem não teme a morte é porque teme a vida. Todavia, Jesus, que é Deus, temeu a morte, e ele, mais que ninguém, tinha certeza de que passaria por uma morte terrível.
A morte, contudo, só existe na presença do pecado, pecado é caminhar longe de Deus. Pode-se fazer tudo certo e ainda assim se viver em pecado, já que o mal, não é a ausência do bem, mas é a ausência de Deus.

Jesus lhe respondeu: Em verdade, em verdade te digo que ninguém pode ver o reino de Deus se não nascer de novo.”
João 3.3

Jesus morreu no lugar do homem, logo a aceitação dessa morte como crédito nos dá direito ao perdão. Perdoados não passaremos pela morte, não do corpo, mas do espírito, é essa, a segunda morte, que tememos.
Uma criança inocente, que ainda não tem consciência do pecado, que ainda não sente culpa real, não peca, logo não provou a segunda morte. Se partir dessa existência viverá eternamente em comunhão com Deus.
Deus nos faz, através de Jesus, crianças espirituais, na verdade, bebês recém-nascidos, no primeiro momento, mas é como crianças, simples, puras, crédulas, que devemos viver essa vida, quando caminhamos com Deus.

"Jesus chamou uma criança, colocou-a no meio deles e disse: Em verdade vos digo que, se não vos converterdes e não vos tornardes como crianças, nunca entrareis no reino do céu. Portanto, quem se tornar humilde como esta criança, esse será o maior no reino do céu."
Mateus 18.2-4

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