Naquele sábado de
manhã a música “The way we were” ainda estava na
minha cabeça como trilha sonora da imagem daquela gentil senhor quando, sentado
em um banco da praça, eu abri o jornal, um jornal da capital. A matéria não
dava o nome exato, mas dizia que uma criança havia morrido no playground de um
grande hotel em Águas de São Pedro, a informação é que tinha sido durante a
semana, enquanto a menina brincava num balanço, a barra de ferro que sustentava
a cadeira havia caído sobre ela. Eu tinha estado por lá na noite anterior e
ninguém comentou isso comigo, a discrição comum daqueles profissionais tinha
mantido sigilosa mesmo de mim, que frequentava o lugar há tantos anos, aquele
notícia trágica.
No final da tarde estava
eu lá novamente, entrando no Grande Hotel. Parecia-me tudo igual, a viela
marginal que dá acesso aos estacionamentos ainda continuava mágica. Árvores
repletas de primavera, abraçando o caminho, ainda faziam com que eu me sentisse
acolhido. Caído, o sol amarelava o céu, deixando surreal o momento mais
espetacular do dia. Dourada, a terra se despedia do astro maior e dava
boas-vindas à noite. Nesse momento, nada parece ter raízes, nada se prende. Solto,
dança o natural, se é que ele existe, com o sobrenatural.
Naquele lugar, o
horizonte sempre me parece mais baixo, lá, tenho a impressão de estar acima de
tudo, como se fosse um local protegido, guardado apenas para os que podem pagar
o preço. O preço pode não ser dinheiro, é mais que isso, é vaidade, mas também é
o bom gosto, aquele que dinheiro algum compra. Outros, e esses são os que mais
tiram proveito do local, sabem da história do hotel, pisam com cuidado naqueles
pisos de ladrilhos xadrezes e de grandes e polidos tacos de madeira, mesmo os
reflexos desses nos espelhos cristalinos, são registrados com respeito.
Após deixar o carro
no estacionamento e descer uma ladeira que me deixa bem cansado na saída,
quando tenho que subi-la, entrei pelos fundos. Ouvi o eco do som do pianista no
ambiente do bar, vi, de longe, as siluetas das famílias abastadas, que tentam
fazer trivial algo que nem eles sentem que é. Eu estava na companhia dos sofás,
das poltronas, do chão, das paredes, dos quadros, do teto e dos lustres, esses
têm muito a falar do lugar. Os abajures de vitral e as estatuetas de nus e de
animais em mármore revelavam a art déco. Relógios distribuídos pelos ambientes,
nem todos funcionando, não depois de quase um século de existência,
gesticulavam para mim, eufóricos, os únicos que celebram a minha presença por
lá. Aproveitei o momento, pois sabia que depois dele quatro horas sentado ao
piano me deixariam em companhia de Gershwin, Piazzola e Jobim. A exceção,
geralmente, era de algumas senhoras esbranquiçadas e solteirões de trinta anos
meio alterados, que me parecem sempre estar sob o efeito de alguma
medicamentação psiquiátrica. Esses me elogiam, não por eu ter tocado bem, mas
por ter tocado algo que eles conhecem. A plateia não aplaude os outros, mas a
si mesma por se identificar de alguma maneira com a arte compartilhada.
Os espaços
harmonizados e iluminados, deixando, contudo, aparecer, como que querendo
confidenciar algum segredo, portas de salas escuras, sempre falam mais comigo
que as pessoas. Existe muito mais gente no vazio do que na multidão. No vazio
passeiam, com liberdade, as lembranças, e elas multiplicam os seres. Uma mulher
se transforma em uma iluminada criança, numa jovem encantadora e em uma velha
saudosa, entupida de maquiagem, todas ao mesmo tempo, todas em um só lugar. A
realidade sempre é só, a fantasia está sempre acompanhada, e memórias são
sempre fantasias. A mente humana não funciona como uma máquina fria, mas como
uma câmera fotográfica. Tem o olho e a mão do fotógrafo interagindo com ela,
que escolhe, corta e registra, não a realidade, mas a ilusão. Uma lembrança não
expressa verdade, mas a sensação que se teve da verdade, e ela pode ser
exagerada, tanto quanto omissa.
Atravessei pelo
prédio detrás do hotel, onde fica o cinema e os salões de eventos, desci a
escada, cruzei o longo jardim de inverno, parece que ele está por lá só para me
amedrontar. Entrei no bar, meu companheiro de ofício dedilhava algum Cole
Porter, levantou a cabeça e sorriu pra mim, sem retirar os dedos das teclas, eu
o cumprimentei e segui. Sorri para os garçons, sempre marotos, gente simples
que se faz de refinada, não por obrigação, mas como opção elegante e com muito
prazer.
Passei pela
recepção, peguei à direita e caminhei pela entrada principal do hotel. Eu
sempre me aposso de um cuidado redobrado quando ando por lá, não, aquilo não é
entrada de um hotel, mas de uma igreja de alguma cidadela alemã, antiga e
suntuosa. Caminho em uma velocidade controlada, não rápida, para não parecer
nervoso, e nem lenta, para parecer irreverente. Meus pés se movem, mas minha
alma ficava paralisada diante da visão da escada, que dá acesso ao andar
superior e aos quartos. Nunca deixo de me sentir em um filme hollywoodiano dos
anos 1950 quando passo por lá.
Então entrei pelo
corredor que dá acesso ao restaurante vip, um restaurante menor do hotel onde
se frequenta com reservas. Ainda estava às sombras, luzes acesas no mínimo,
Dave Brubeck tocava baixinho dando ao local aquele ar de cool jazz que tanto me
agrada. O Petrof, negro, imponente e mudo, aguardava que eu o acarinhasse. Eu o
abri, repousei meu livro de partituras sobre ele e respirei fundo. Tinha
chegado mais cedo, demoraria quase uma hora para que alguém aparecesse.
Sentei-me numa poltrona, uma pequena vela me confortava sobre uma mesinha
redonda a minha frente, então abri o livro que tinha trazido comigo, o portenho
Jorge Luis Borges seria minha companhia por algum tempo. Abri na página
marcada, contudo meus olhos não queriam se apegar às palavras, algo me incomodava.
Ela ainda estava por
lá, flutuando sobre o lugar, eu já a tinha sentido na viela que dá acesso aos
estacionamentos, impedindo que o pouco sol do ocaso aquentasse as árvores, mas
fingi não percebê-la. Estava branca, espalhada no ar, com um sorriso no rosto e
com o peito manchado de vermelho. O lugar parecia ser o mesmo, mas nunca mais o
será, maculado que foi pela morte de uma inocente, uma inocente que brincava no
parque.
O que mais nos choca
é aquilo que não esperamos, não esperava que tal tragédia ocorresse lá, lugar
tão guardado de tudo aos meus olhos. Mas que lugar é protegido da morte? Ou,
quando é que a morte não nos choca, quando ela não nos pega de surpresa?
Pensando melhor, o hotel sempre foi um barco fantasma, navegando pelo tempo.
Ocorre que até então eram fantasmas de velhos, agora era uma alma criança que
pairava no ar. Crianças fantasmas não deveriam existir, crianças não devem
morrer, nunca. Crianças estão mais próximas da eternidade que os velhos, visto
que estão há menos tempo entre os encarnados. Por isso elas são tão limpas, tão
espirituais, ainda carregam em si uma chama forte de Deus, que depois fica
fraca e que nós tanto lutamos para manter acesa.
O Grande Hotel nunca
mais foi o mesmo pra mim, mais uma ilusão que se esvaiu de minha existência. A
desilusão é o apagar de um holofote, que deixa o palco escuro. Os atores podem
ainda estar por lá, eles relutam em sair, mas quem pode ver o show? Eles se
batem uns contra os outros, lançando palavras ao léu. Mas cansados, finalmente
desistem, caem ao chão e se abraçam, buscando nos corpos de seus pares algum
calor. Eles ainda insistem por mais tempo que a plateia, essa é volúvel, se
dissolve a menor variação da luz. A plateia quer emoção, quer lágrimas, quer
gargalhar. O nada elas não aceitam, desilusão é o nada, é a incoerência, é a
imagem de gesso, a promessa do traidor, o sorriso do louco, o brinquedo de
parque que mata.
A menina poderá ser
esquecida, e todos, com exceção de seus pais, não a chorarão mais, mas ela
estará por lá, sobre aquele lugar, sempre. As festas, a boa e farta comida, o vinho
caro, a música sofisticada, o luxo dos quartos e dos salões, tudo isso falará
alto, outros relógios deixarão de funcionar, novos garçons aprenderão a lidar
com a etiqueta. Mas quando eu paro, por um instante, e presto atenção ao
silêncio dos móveis, dos objetos de decoração, do campo que se vê pelas janelas
enormes, das árvores e das vielas que distanciam o lugar do mundo moderno, eu a
vejo, branca, espalhada no ar, com um sorriso no rosto, com o peito manchado de
sangue.
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“E, adiantando-se um pouco, prostrou-se com o
rosto em terra e orou: Meu Pai, se possível, afasta de mim este cálice;
todavia, não seja como eu quero, mas como tu queres.”
Mateus 26.39
Morte, a única
certeza que se tem nesta vida, e que nos surpreende sempre. Porque é partida da
carne ou porque é chegada do espírito? Não, porque é confronto com a fragilidade
humana.
A morte que mais se
teme é a morte dos outros, é um sentimento egoísta de quem é furtado de um bem
que tanto estimava, já que não se sofre pela possibilidade de dor que o que
partiu poderá sentir, mas pela certeza da angústia que quem ficou terá que
viver.
Muitos, porém,
temem a própria morte, mas vivem fingindo que ela não ocorrerá, dizem que quem
não teme a morte é porque teme a vida. Todavia, Jesus, que é Deus, temeu a
morte, e ele, mais que ninguém, tinha certeza de que passaria por uma morte
terrível.
A morte, contudo,
só existe na presença do pecado, pecado é caminhar longe de Deus. Pode-se fazer
tudo certo e ainda assim se viver em pecado, já que o mal, não é a ausência do bem,
mas é a ausência de Deus.
“Jesus lhe respondeu: Em verdade, em verdade
te digo que ninguém pode ver o reino de Deus se não nascer de novo.”
João 3.3
Jesus morreu no
lugar do homem, logo a aceitação dessa morte como crédito nos dá direito ao
perdão. Perdoados não passaremos pela morte, não do corpo, mas do espírito, é
essa, a segunda morte, que tememos.
Uma criança
inocente, que ainda não tem consciência do pecado, que ainda não sente culpa
real, não peca, logo não provou a segunda morte. Se partir dessa existência
viverá eternamente em comunhão com Deus.
Deus nos faz,
através de Jesus, crianças espirituais, na verdade, bebês recém-nascidos, no
primeiro momento, mas é como crianças, simples, puras, crédulas, que devemos
viver essa vida, quando caminhamos com Deus.
"Jesus chamou uma criança, colocou-a no meio
deles e disse: Em verdade vos digo que, se não vos converterdes e não vos
tornardes como crianças, nunca entrareis no reino do céu. Portanto, quem se
tornar humilde como esta criança, esse será o maior no reino do céu."
Mateus 18.2-4
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