Não vi mais Breno
depois daquele dia que entreguei a ele o dinheiro, pensei, “ele deve ter
desaparecido com a grana, esse negócio nem vai acontecer, sei lá, no final das
contas só acabei perdendo o instrumento”. Contudo, quando olhava para frente
continuava não vendo nada, não enxergava uma maneira de minha vida melhorar.
Estava com a barba comprida, no hotel eles não gostavam que a gente se
apresentasse de qualquer jeito, então eu dava uma aparada. Mas como era difícil
se preocupar minimamente com roupas e aparência, tudo parecia tão sem sentido,
então recebi um telefonema.
- Por favor,
gostaria de falar com o senhor José Renato.
- É ele, quem
gostaria?
- Meu nome é
Clarisse, quem me deu seu telefone foi a Valéria, violinista da orquestra.
- Ah, sim, no que
posso ajudá-la?
- Sou voluntária e
trabalho num asilo, cuidamos de idosos carentes. Na próxima quarta-feira
estaremos dando uma festa, e gostaríamos de ter um músico tocando pra gente. Será
à tarde, das quatorze às dezessete horas, temos um piano lá, acho que dá pra
ser usado. Muitos dos residentes pagam uma quantia pela moradia e refeições,
mas alguns vivem de auxílio dos outros, nosso orçamento é apertado, então não
temos condição de remunerar seu serviço, não de maneira justa, mas poderíamos
pagar com cesta básica.
Sempre fui frio com
a carência dos outros, naquele tempo mais ainda. Não era de dar esmola, achava
que todo mundo tinha seus problemas, o problema de um não era maior que o do outro,
e eu não tinha nada a ver com o problema de ninguém, na minha cabeça era cada
um por si e só. Se o asilo precisava de ajuda, eu também precisava de serviço,
não cobrava caro, mas não gostava de trabalhar de graça. Contudo não neguei
aquele, na condição que eu estava, o negócio estava de bom tamanho, uma cesta
básica daria pra passar alguns dias.
- Sim, posso fazer
o trabalho nessas condições.
- Nós agradecemos
muito, Deus abençoe – a mulher me passou o endereço e na quarta-feira eu estava
lá.
Fui a pé, sempre
que podia preferia ir assim aos lugares, evitada dirigir, mesmo porque meu
carro estava caindo aos pedaços. O lugar ocupava quase uma quadra inteira e
ficava nos fundos de uma pequena igreja católica. Do lado direito havia um
salão onde eram feitas as refeições, a festa seria lá. Do lado esquerdo estavam
os alojamentos, cercado por varandas que acomodavam cadeiras e pequenas mesas.
Alguns jogavam dominó, outros cartas, muitos fumavam e outros estavam
estáticos, olhando para frente debaixo de cobertores. Aquilo era muito
deprimente, pelo menos foi assim que eu senti no primeiro momento.
Uma mulher bonita,
com pouco mais de quarenta anos, cabelos curtos, lisos e negros, saia preta e
camisa branca, saltos altos, estava à porta. Ela falava com duas senhorinhas,
branquinhas, com os cabelos tingidos, uma de lilás e a outra de azul claro, eu
me aproximei e me apresentei.
- Boa tarde, meu
nome é Zé Renato, gostaria de falar com a Clarisse.
- Sou eu, você é o
pianista?
- Acho que sou –
era uma mulher cheia de vida, com olhos brilhantes, refinada. Enquanto a olhava
sentia seu perfume adocicado, daqueles que não me provocavam alergia, seu colar
de pedras coloridas e seu batom vermelho colocavam um tom quente em sua aparência
formal. Era o tipo de mulher equilibrada, que sabia discernir entre a hora e
lugar de lazer e de trabalho. Atualmente poucas mulheres sabem disso, a maioria
se veste de roupa e sapato de baile de sexta-feira à noite para ir trabalhar na
segunda-feira de manhã.
- Deixa eu te
mostrar onde vai ser o evento – ela não usava aliança, mas enquanto
caminhávamos para o salão seu celular tocou e pelo que entendi ela conversava
com o esposo.
O piano era um Schwartzmann
em excelentes condições, e por incrível que pareça, estava afinado, percebi
isso logo que entrei no ambiente, já que uma senhora tocava “Para Eliza” de
Beethoven. Enquanto nos aproximávamos eu aplaudi a pianista, foi o tempo de
chegar até ela e acabar a música. A senhora, uma mulher forte e de bochechas
rosadas, virou-se pra mim radiante. Eu estendi as mãos e a elogiei.
- Parabéns,
belíssima interpretação – eu disse.
- Eleni, este é o
pianista da nossa festa – apresentou-me Clarisse.
- Muito prazer, que
bom poder ouvir um músico de verdade – disse Eleni, realizada.
- O que você achou
do piano? – perguntou-me Clarisse.
- Está ótimo.
- Espero não tê-lo
desafinado com meus velhos dedos – desculpou-se Eleni.
- De maneira
alguma, – respondi – quem sabe tocar não desafina instrumento.
Apesar de minha
amargura congênita sempre procurei ser generoso com as pessoas, elogiá-las,
talvez porque sendo músico sempre precisei de aplausos, assim procurava dar aos
outros, o que queria receber.
Talvez eu tenha
sempre usado a música como forma de chamar a atenção, para ser reconhecido, mas
será que foi isso que me fez músico ou foi a música que gerou isso em mim? Acho
que a música me serviu bem, como pianista eu tinha uma identidade, e ela era
fácil pra mim, me vestia bem. Não existia mais o Zé, mas o Zé pianista.
Eleni era uma
mulher de um tempo em que os pianistas eram valorizados, um tempo em que havia
mais poesia e melodia na vida, tocar piano era mais importante que ter um carro
caro. Um carro caro qualquer um com dinheiro podia comprar, talento musical
não, ou se nascia com ele, ou não.
Clarisse permanecia
ao meu lado, enquanto eu conversava com Eleni, ela sim, era uma pessoa
generosa, ajudando aqueles com as chamas da alma tão fraquinhas, quase
apagadas. Clarisse me levou para tomar um café e me deixou no salão, a festa já
ia começar.
Uma festa numa
tarde de quarta-feira, era no mínimo diferente, mas para quem era, homens e
mulheres decrépitos, para os quais o tempo já havia parado há muito tempo,
tarde de quarta ou noite de sábado eram a mesma coisa.
Eles foram
entrando, pessoas que num determinado momento da vida deveriam ser diferentes
umas das outras. Talvez quando eram jovens poderiam ter passado um ao lado do
outro e nem se olharam, se cruzaram nas missas e filas de banco, e se
estranharam, se mediram, se distanciaram. Agora, contudo, eram iguais, só o
tempo para curvar a cerviz, não do corpo, não só do corpo, mas da alma.
Alguns ainda não
haviam chegado àquele ponto, um ponto invisível, que não é o mesmo para todo
mundo, mas que divide a existência em dois momentos: o começo e o fim. Alguns,
mesmo que com os corpos gastos e cansados, ainda tinham vigor, malícia, ainda
queriam amar, ficar junto. Outros, porém, já haviam se tornado crianças
novamente, eram levados, conduzidos por braços de amigos ou em cadeiras de
rodas. Esses já tinham os olhos na eternidade, não estavam mais presos a este
mundo.
Clarisse me disse
que eu não precisaria tocar o tempo todo, eu disse pra ela que no momento meu
repertório era para ser ouvido, e não dançado. Então, no começo da festa eles
colocaram músicas para tocar, gravações antigas, sambas de Noel, de Lupicínio,
de Cartola, marchas rancho, valsas. Não, não era tarde de quarta-feira, era
noite de sábado, com o céu estrelado, era outro tempo, outro lugar naquele
salão.
Senhoras dançavam
com senhoras, casais desengonçados, sem ritmo, eram a maioria, mas havia alguns
ainda bem sincronizados, mais saidinhos, com a saúde em melhor estado, com o
coração ainda quente, esses deveriam ainda dar trabalho para os monitores e
enfermeiros.
- Zé, pode tocar um
pouquinho pra gente? – perguntou-me Clarisse com classe e delicadeza.
- Sim, claro.
- Nem vai precisar
tocar muito, faça algumas peças depois a gente coloca novamente CDs pra eles
dançarem.
- Você é quem sabe.
Um bom músico reconhece
o público para o qual vai tocar, não que isso garanta cem por cento de acerto,
mas na maioria das vezes funciona. Não era um público de gente rica, que já
tinha viajado várias vezes ao exterior, como o público do hotel, gente do tempo
que música francesa era chique, que pedia Edith Piaf e Charles Aznavour para se
lembrar do café que tomaram no Chans Elysee nos anos 1960. Mas eles conheciam boa
música brasileira, então deixei de lado Cole Porter e Geshwin, Rodgers e Hart,
e ataquei com Pixinguinha, “Carinhoso” é um clássico conhecido mesmo pelos mais
jovens.
Eles cantaram
juntos, conheciam a letra, eu segui com “Aquarela do Brasil”, de Ary Barroso,
“Folhas secas”, de Nelson Cavaquinho e “A noite do meu bem”, de Dolores Duran,
e aquelas almas bondosas explodiram num aplauso desproporcional, como se fosse
público alemão ovacionando Von Karajan. Não, eu não merecia tudo aquilo, eu não
merecia toda aquela alegria, eu não merecia vida, e oferecida por quem? Por
gente muito mais próxima e merecedora da morte do que eu, um covarde. Primeiramente
assustei-me, depois me excitei, mas então me senti envergonhado, não era digno
de estar ali com eles, gente doente, fraca e ainda assim festejando. Estava
tocando Caymi, quando Clarisse veio me falar.
- Se quiser dar um
tempo, fique à vontade, venha comer alguma coisa, vou colocar uns CDs.
Peguei um pedaço de
cuscuz, verificando antes se não tinha camarão, já que sou alérgico, e
sentei-me, procurei um lugar sozinho, queria pensar naquilo tudo, acho que não
era alérgico só a camarão, mas também à felicidade. Clarisse, sempre atenciosa,
não parava quieta. Ia à cozinha, conversava com os cadeirantes, escolhia os CDs
a serem tocados, virava várias para dar atenção a todos, e isso sempre com um
lindo sorriso no rosto. Por um momento pensei nela como mulher, mas meu
superego já me repreendeu com “para com isso, ela é casada”. Sua postura de
mulher séria deixava escapar com elegância um jeito de moça, que ainda queria
se apaixonar, poderia amar, precisava disso. Clarisse não estava morta, nem
dormindo, ainda vivia, muito mais do que eu.
Pensava em Clarisse
quando alguém sentou-se ao meu lado, era Eleni.
- Como o senhor
toca bem – disse-me ela.
- São seus bons
ouvidos – não dizia isso e não digo com falsa modéstia, o tempo já me ensinou
que existem músicos muito melhores do que eu, e que tocam bem há muito mais
tempo que eu. Acho que é isso que diferencia o bom músico do genial, tempo de
aproveitamento, ainda novos, já têm maturidade musical, além disso eles possuem
criatividade o que faz deles mais que músicos, artistas.
Músico profissional
é um bom intérprete da obra dos outros, artista tem sua própria obra, compõem e
compõem bem, têm ideias novas, sacadas que outros não tiveram antes dele.
Obviamente que nos dias atuais a originalidade é algo cada vez mais difícil,
quase tudo já foi realizado, mas ainda existem gênios, às vezes criando algo
novo simplesmente misturando coisas velhas. O artista moderno é bem isso mesmo,
um liquidificador de ideias, mixando gêneros, estilos, de épocas diferentes,
para fabricar uma arte pessoal.
Não era o meu caso,
sou um colecionador de histórias, e as músicas que toco são as trilhas sonoras
dessas histórias. Temas de filmes que vi, músicas que tocavam no rádio,
enquanto brincava com meus primos e
tios, canções que meu pai escutava na vitrola enquanto lia Kardecismo e Rosacrucianismo.
Não toco por indicação de outros, meu repertório é um diário da minha vida,
isso sim faz a minha interpretação sincera e legítima. Acredito que consigo
passar essa verdade através da música e é isso o que toca o coração de quem
ouve, apesar de meus limites técnicos.
Conversei bastante
com Eleni, depois que terminei com meu compromisso profissional não fui embora,
quando saí do asilo eram quase oito horas da noite. Eleni era meiga,
transbordante de vida, tinha envelhecido bem porque tinha vivido bem, ela
representava o que aquele lugar e aquelas pessoas tinham de melhor, ela era o quarto
encontro.
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Morrer é resistir
ao tempo, o tempo é inexorável, não cede às queixas humanas, não resistir a ele
não nos livra da morte na carne, mas tira dessa a violência, transforma-a em uma
passagem, onde o corpo é deixado para que o espírito siga livre, livre para
onde? Para a vida ou para a morte, agora espiritual.
Eu não queria ir em
frente, por isso morria, Eleni seguia tranquilamente no tempo, sempre foi
assim, sua alma era barco que flutuava, com velas alçadas, abertas para que o
vento a conduzisse na direção que quisesse pelo mar da existência.
Eu tinha lançado
âncora cedo demais, por algum tempo consegui seguir mesmo que preso, o quanto a
corda permitiu, mas naquele momento a corda já estava estirada ao extremo.
Velas que resistem ao vento acabam rasgadas, eu era barco amarrado, apanhando
do vento, querendo ser mais forte que o mar, resistia ao tempo por isso morria.
A vida não é para
terminar em dor extrema, com sofrimentos em camas de hospital, a custo de
aparelhos e tortura de parentes e amigos por dias afins. Muito menos se precisa
deixar o corpo com a violência de uma arma de fogo ou de uma faca.
A morte pode ser
rápida e simples, assim deve ser a passagem de um filho de Deus, fiel, que
priorizou a comunhão com seu pai espiritual durante sua vida encarnada. Se confiamos
em Deus para nos dar uma vida vitoriosa e satisfeita, e uma eternidade em paz
na presença dele, por que não confiaríamos também que ele pode nos permitir uma
passagem menos dolorida quanto possível? Eu que cultivava a dor da alma como
uma orquídea num vaso, mas que tenho tanta dificuldade para suportar a dor na
carne, espero em Deus uma morte indolor.
“Pois para mim o viver é Cristo, e o morrer é
lucro. Mas, se o viver no corpo resulta para mim em fruto do meu trabalho, não
sei então o que escolher. Sinto-me, porém, pressionado de ambos os lados, tendo
desejo de partir e estar com Cristo, pois isso é muito melhor; todavia, por
vossa causa, acho mais necessário permanecer no corpo.”
Filipenses 1.21-24
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