2 de out. de 2014

14 - Vida após a morte

Não vi mais Breno depois daquele dia que entreguei a ele o dinheiro, pensei, “ele deve ter desaparecido com a grana, esse negócio nem vai acontecer, sei lá, no final das contas só acabei perdendo o instrumento”. Contudo, quando olhava para frente continuava não vendo nada, não enxergava uma maneira de minha vida melhorar. Estava com a barba comprida, no hotel eles não gostavam que a gente se apresentasse de qualquer jeito, então eu dava uma aparada. Mas como era difícil se preocupar minimamente com roupas e aparência, tudo parecia tão sem sentido, então recebi um telefonema.
- Por favor, gostaria de falar com o senhor José Renato.
- É ele, quem gostaria?
- Meu nome é Clarisse, quem me deu seu telefone foi a Valéria, violinista da orquestra.
- Ah, sim, no que posso ajudá-la?
- Sou voluntária e trabalho num asilo, cuidamos de idosos carentes. Na próxima quarta-feira estaremos dando uma festa, e gostaríamos de ter um músico tocando pra gente. Será à tarde, das quatorze às dezessete horas, temos um piano lá, acho que dá pra ser usado. Muitos dos residentes pagam uma quantia pela moradia e refeições, mas alguns vivem de auxílio dos outros, nosso orçamento é apertado, então não temos condição de remunerar seu serviço, não de maneira justa, mas poderíamos pagar com cesta básica.
Sempre fui frio com a carência dos outros, naquele tempo mais ainda. Não era de dar esmola, achava que todo mundo tinha seus problemas, o problema de um não era maior que o do outro, e eu não tinha nada a ver com o problema de ninguém, na minha cabeça era cada um por si e só. Se o asilo precisava de ajuda, eu também precisava de serviço, não cobrava caro, mas não gostava de trabalhar de graça. Contudo não neguei aquele, na condição que eu estava, o negócio estava de bom tamanho, uma cesta básica daria pra passar alguns dias.
- Sim, posso fazer o trabalho nessas condições.
- Nós agradecemos muito, Deus abençoe – a mulher me passou o endereço e na quarta-feira eu estava lá.
Fui a pé, sempre que podia preferia ir assim aos lugares, evitada dirigir, mesmo porque meu carro estava caindo aos pedaços. O lugar ocupava quase uma quadra inteira e ficava nos fundos de uma pequena igreja católica. Do lado direito havia um salão onde eram feitas as refeições, a festa seria lá. Do lado esquerdo estavam os alojamentos, cercado por varandas que acomodavam cadeiras e pequenas mesas. Alguns jogavam dominó, outros cartas, muitos fumavam e outros estavam estáticos, olhando para frente debaixo de cobertores. Aquilo era muito deprimente, pelo menos foi assim que eu senti no primeiro momento.
Uma mulher bonita, com pouco mais de quarenta anos, cabelos curtos, lisos e negros, saia preta e camisa branca, saltos altos, estava à porta. Ela falava com duas senhorinhas, branquinhas, com os cabelos tingidos, uma de lilás e a outra de azul claro, eu me aproximei e me apresentei.
- Boa tarde, meu nome é Zé Renato, gostaria de falar com a Clarisse.
- Sou eu, você é o pianista?
- Acho que sou – era uma mulher cheia de vida, com olhos brilhantes, refinada. Enquanto a olhava sentia seu perfume adocicado, daqueles que não me provocavam alergia, seu colar de pedras coloridas e seu batom vermelho colocavam um tom quente em sua aparência formal. Era o tipo de mulher equilibrada, que sabia discernir entre a hora e lugar de lazer e de trabalho. Atualmente poucas mulheres sabem disso, a maioria se veste de roupa e sapato de baile de sexta-feira à noite para ir trabalhar na segunda-feira de manhã.
- Deixa eu te mostrar onde vai ser o evento – ela não usava aliança, mas enquanto caminhávamos para o salão seu celular tocou e pelo que entendi ela conversava com o esposo.
O piano era um Schwartzmann em excelentes condições, e por incrível que pareça, estava afinado, percebi isso logo que entrei no ambiente, já que uma senhora tocava “Para Eliza” de Beethoven. Enquanto nos aproximávamos eu aplaudi a pianista, foi o tempo de chegar até ela e acabar a música. A senhora, uma mulher forte e de bochechas rosadas, virou-se pra mim radiante. Eu estendi as mãos e a elogiei.
- Parabéns, belíssima interpretação – eu disse.
- Eleni, este é o pianista da nossa festa – apresentou-me Clarisse.
- Muito prazer, que bom poder ouvir um músico de verdade – disse Eleni, realizada.
- O que você achou do piano? – perguntou-me Clarisse.
- Está ótimo.
- Espero não tê-lo desafinado com meus velhos dedos – desculpou-se Eleni.
- De maneira alguma, – respondi – quem sabe tocar não desafina instrumento.
Apesar de minha amargura congênita sempre procurei ser generoso com as pessoas, elogiá-las, talvez porque sendo músico sempre precisei de aplausos, assim procurava dar aos outros, o que queria receber.
Talvez eu tenha sempre usado a música como forma de chamar a atenção, para ser reconhecido, mas será que foi isso que me fez músico ou foi a música que gerou isso em mim? Acho que a música me serviu bem, como pianista eu tinha uma identidade, e ela era fácil pra mim, me vestia bem. Não existia mais o Zé, mas o Zé pianista.
Eleni era uma mulher de um tempo em que os pianistas eram valorizados, um tempo em que havia mais poesia e melodia na vida, tocar piano era mais importante que ter um carro caro. Um carro caro qualquer um com dinheiro podia comprar, talento musical não, ou se nascia com ele, ou não.
Clarisse permanecia ao meu lado, enquanto eu conversava com Eleni, ela sim, era uma pessoa generosa, ajudando aqueles com as chamas da alma tão fraquinhas, quase apagadas. Clarisse me levou para tomar um café e me deixou no salão, a festa já ia começar.
Uma festa numa tarde de quarta-feira, era no mínimo diferente, mas para quem era, homens e mulheres decrépitos, para os quais o tempo já havia parado há muito tempo, tarde de quarta ou noite de sábado eram a mesma coisa.
Eles foram entrando, pessoas que num determinado momento da vida deveriam ser diferentes umas das outras. Talvez quando eram jovens poderiam ter passado um ao lado do outro e nem se olharam, se cruzaram nas missas e filas de banco, e se estranharam, se mediram, se distanciaram. Agora, contudo, eram iguais, só o tempo para curvar a cerviz, não do corpo, não só do corpo, mas da alma.
Alguns ainda não haviam chegado àquele ponto, um ponto invisível, que não é o mesmo para todo mundo, mas que divide a existência em dois momentos: o começo e o fim. Alguns, mesmo que com os corpos gastos e cansados, ainda tinham vigor, malícia, ainda queriam amar, ficar junto. Outros, porém, já haviam se tornado crianças novamente, eram levados, conduzidos por braços de amigos ou em cadeiras de rodas. Esses já tinham os olhos na eternidade, não estavam mais presos a este mundo.
Clarisse me disse que eu não precisaria tocar o tempo todo, eu disse pra ela que no momento meu repertório era para ser ouvido, e não dançado. Então, no começo da festa eles colocaram músicas para tocar, gravações antigas, sambas de Noel, de Lupicínio, de Cartola, marchas rancho, valsas. Não, não era tarde de quarta-feira, era noite de sábado, com o céu estrelado, era outro tempo, outro lugar naquele salão.
Senhoras dançavam com senhoras, casais desengonçados, sem ritmo, eram a maioria, mas havia alguns ainda bem sincronizados, mais saidinhos, com a saúde em melhor estado, com o coração ainda quente, esses deveriam ainda dar trabalho para os monitores e enfermeiros.
- Zé, pode tocar um pouquinho pra gente? – perguntou-me Clarisse com classe e delicadeza.
- Sim, claro.
- Nem vai precisar tocar muito, faça algumas peças depois a gente coloca novamente CDs pra eles dançarem.
- Você é quem sabe.
Um bom músico reconhece o público para o qual vai tocar, não que isso garanta cem por cento de acerto, mas na maioria das vezes funciona. Não era um público de gente rica, que já tinha viajado várias vezes ao exterior, como o público do hotel, gente do tempo que música francesa era chique, que pedia Edith Piaf e Charles Aznavour para se lembrar do café que tomaram no Chans Elysee nos anos 1960. Mas eles conheciam boa música brasileira, então deixei de lado Cole Porter e Geshwin, Rodgers e Hart, e ataquei com Pixinguinha, “Carinhoso” é um clássico conhecido mesmo pelos mais jovens.
Eles cantaram juntos, conheciam a letra, eu segui com “Aquarela do Brasil”, de Ary Barroso, “Folhas secas”, de Nelson Cavaquinho e “A noite do meu bem”, de Dolores Duran, e aquelas almas bondosas explodiram num aplauso desproporcional, como se fosse público alemão ovacionando Von Karajan. Não, eu não merecia tudo aquilo, eu não merecia toda aquela alegria, eu não merecia vida, e oferecida por quem? Por gente muito mais próxima e merecedora da morte do que eu, um covarde. Primeiramente assustei-me, depois me excitei, mas então me senti envergonhado, não era digno de estar ali com eles, gente doente, fraca e ainda assim festejando. Estava tocando Caymi, quando Clarisse veio me falar.
- Se quiser dar um tempo, fique à vontade, venha comer alguma coisa, vou colocar uns CDs.
Peguei um pedaço de cuscuz, verificando antes se não tinha camarão, já que sou alérgico, e sentei-me, procurei um lugar sozinho, queria pensar naquilo tudo, acho que não era alérgico só a camarão, mas também à felicidade. Clarisse, sempre atenciosa, não parava quieta. Ia à cozinha, conversava com os cadeirantes, escolhia os CDs a serem tocados, virava várias para dar atenção a todos, e isso sempre com um lindo sorriso no rosto. Por um momento pensei nela como mulher, mas meu superego já me repreendeu com “para com isso, ela é casada”. Sua postura de mulher séria deixava escapar com elegância um jeito de moça, que ainda queria se apaixonar, poderia amar, precisava disso. Clarisse não estava morta, nem dormindo, ainda vivia, muito mais do que eu.
Pensava em Clarisse quando alguém sentou-se ao meu lado, era Eleni.
- Como o senhor toca bem – disse-me ela.
- São seus bons ouvidos – não dizia isso e não digo com falsa modéstia, o tempo já me ensinou que existem músicos muito melhores do que eu, e que tocam bem há muito mais tempo que eu. Acho que é isso que diferencia o bom músico do genial, tempo de aproveitamento, ainda novos, já têm maturidade musical, além disso eles possuem criatividade o que faz deles mais que músicos, artistas.
Músico profissional é um bom intérprete da obra dos outros, artista tem sua própria obra, compõem e compõem bem, têm ideias novas, sacadas que outros não tiveram antes dele. Obviamente que nos dias atuais a originalidade é algo cada vez mais difícil, quase tudo já foi realizado, mas ainda existem gênios, às vezes criando algo novo simplesmente misturando coisas velhas. O artista moderno é bem isso mesmo, um liquidificador de ideias, mixando gêneros, estilos, de épocas diferentes, para fabricar uma arte pessoal.
Não era o meu caso, sou um colecionador de histórias, e as músicas que toco são as trilhas sonoras dessas histórias. Temas de filmes que vi, músicas que tocavam no rádio, enquanto brincava com  meus primos e tios, canções que meu pai escutava na vitrola enquanto lia Kardecismo e Rosacrucianismo. Não toco por indicação de outros, meu repertório é um diário da minha vida, isso sim faz a minha interpretação sincera e legítima. Acredito que consigo passar essa verdade através da música e é isso o que toca o coração de quem ouve, apesar de meus limites técnicos.
Conversei bastante com Eleni, depois que terminei com meu compromisso profissional não fui embora, quando saí do asilo eram quase oito horas da noite. Eleni era meiga, transbordante de vida, tinha envelhecido bem porque tinha vivido bem, ela representava o que aquele lugar e aquelas pessoas tinham de melhor, ela era o quarto encontro.

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Morrer é resistir ao tempo, o tempo é inexorável, não cede às queixas humanas, não resistir a ele não nos livra da morte na carne, mas tira dessa a violência, transforma-a em uma passagem, onde o corpo é deixado para que o espírito siga livre, livre para onde? Para a vida ou para a morte, agora espiritual.
Eu não queria ir em frente, por isso morria, Eleni seguia tranquilamente no tempo, sempre foi assim, sua alma era barco que flutuava, com velas alçadas, abertas para que o vento a conduzisse na direção que quisesse pelo mar da existência.
Eu tinha lançado âncora cedo demais, por algum tempo consegui seguir mesmo que preso, o quanto a corda permitiu, mas naquele momento a corda já estava estirada ao extremo. Velas que resistem ao vento acabam rasgadas, eu era barco amarrado, apanhando do vento, querendo ser mais forte que o mar, resistia ao tempo por isso morria.
A vida não é para terminar em dor extrema, com sofrimentos em camas de hospital, a custo de aparelhos e tortura de parentes e amigos por dias afins. Muito menos se precisa deixar o corpo com a violência de uma arma de fogo ou de uma faca.
A morte pode ser rápida e simples, assim deve ser a passagem de um filho de Deus, fiel, que priorizou a comunhão com seu pai espiritual durante sua vida encarnada. Se confiamos em Deus para nos dar uma vida vitoriosa e satisfeita, e uma eternidade em paz na presença dele, por que não confiaríamos também que ele pode nos permitir uma passagem menos dolorida quanto possível? Eu que cultivava a dor da alma como uma orquídea num vaso, mas que tenho tanta dificuldade para suportar a dor na carne, espero em Deus uma morte indolor.

Pois para mim o viver é Cristo, e o morrer é lucro. Mas, se o viver no corpo resulta para mim em fruto do meu trabalho, não sei então o que escolher. Sinto-me, porém, pressionado de ambos os lados, tendo desejo de partir e estar com Cristo, pois isso é muito melhor; todavia, por vossa causa, acho mais necessário permanecer no corpo.”
Filipenses 1.21-24

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