5 de out. de 2014

11 - Desejo calado

Apressei os passos, mas os passos atrás de mim correram mais, eu não tinha coragem de olhar para trás, os pensamentos não paravam em minha cabeça o suficiente para que eu pudesse entender o que ocorria. Passei por uma mulher, acho que esbarrei nela, nem me lembro, ela resmungou alguma coisa. Falei em voz alta, “onde estão os policiais quando a gente mais precisa deles?”.
Então peguei à direita num cruzamento, pensei, “terei algum tempo antes que meu perseguidor me veja, vou correr, a quadra é pequena, vai dar tempo de pegar à direita novamente e me desvencilhar dele”. As calçadas estreitas de Itu que se tornavam intransitáveis durante o dia, escorregavam pelos meus pés. Fiquei cansado, mas quando tive coragem de olhar para trás não vi ninguém, contudo quando me voltei para frente ele me surpreendeu.
- Você deixou cair, estou correndo atrás de você faz tempo – o cara me disse estendendo a mão e entregando minha carteira. Era um homem baixinho, careca, de roupa social, terno marrom e gravata verde, camisa azul, nada combinando com nada. Deveria ser caixa de algum banco, parecia mais velho do que realmente era, estava ofegante, mais do que eu.
- Obrigado – respondi assustado.
Não era o assassino, era noite de quinta-feira, eu não tinha compromisso no hotel, ia ao bar do carioca tomar uma cerveja. Nem era madrugada, deveria ser umas nove horas, mas o centro já estava vazio. Dei meia volta e continuei em meu curso original, a fuga da falsa perseguição tinha me feito mudar de direção.  
Estava a duas quadras do bar, as luzes dos postes estavam queimadas. Eu me acalmei, andava devagar, passavam lentamente pelos meus olhos imagens do hotel, eu assistia pessoas tomando drinques de pêssego, saboreando aperitivos de azeitonas importadas, eu estava ao piano, de costas para o público, de costas as pessoas, de costas para a vida. Acho que foi essa a minha história, virei as costas para a luz, para a felicidade, para pequenas e simples alegrias. Escondi-me atrás do piano, em meio às notas musicais, me tornei amigo de compositores que se escondiam atrás de suas canções, que compartilhavam amores que nunca tiveram. Luiza e Lígia, como ouvi uma vez Tom dizer na televisão, não eram celebrações de amores que teve, mas memórias de mulheres que nunca possuiu. Viver de saudades, saudades de um tempo em que se sonhava com o futuro, naquele momento meu futuro não existia, toda esperança estava morta.
De repente ouvi um barulho, um carro brecando, a batida seca em alguma coisa que depois caiu ao chão. Eu corri, era o que tinha que ser feito, tentar ajudar, mesmo que eu tivesse tanto medo de ver alguém ensanguentado. Só vi direito as coisas quando cheguei à esquina, uma quadra antes do bar, lá, a lâmpada de um poste que apagava e acendia olhava o acontecido de cima.
O carro, uma van de transporte escolar, estava parado no meio do cruzamento, com a porta do motorista aberta. Uma mulher ajoelhada no chão olhava apreensiva um homem deitado e inconsciente. Eu cheguei mais perto e vi, era o cara da carteira, ele devia ter feito a entrega pra mim e seguido naquela direção, como eu fui em direção oposta e só depois voltei, não o vi, nem poderia, estava tão escuro.
- Temos que levá-lo ao pronto-socorro – disse ela séria, mas não desesperada.
- Eles mandam a gente deixar a pessoa não posição e esperar uma ambulância – disse eu.
- Mas se ele estiver mal? Temos que levá-lo nós mesmos – disse-me ela enquanto o homem abria os olhos.
- Como você está? – eu perguntei, ele começou a se por sentado – É melhor você ficar deitado.
- Estou bem, – ele disse sentando-se – minha cabeça é que dói.
Esperamos um pouco, pelo que nos pareceu ele não tinha nenhum osso quebrado, apenas a cabeça doía.
- Melhorou? – perguntou a mulher, até aquele momento nenhum carro tinha passado por nós, eu olhei para frente e não conseguia ver nem a luz do bar acesa.
- Dói muito a cabeça.
- Vamos para um pronto-socorro, – disse a mulher, você pode me ajudar? – perguntou ela a mim.
- Sim.
Colocamos o homem no banco de trás da van, sentei-me ao seu lado e ela nos levou até o hospital. No hospital, enquanto o homem era atendido, eu e ela ficamos sentados, aguardando o médico.
- Trabalhei o dia todo, estou cansada – reclamou ela.
- Hoje estou de folga, – disse eu – meu nome é José, Zé Renato.
- Juliana, – ela disse isso pegando o maço de cigarros – droga, vou ter que sair pra fumar, deixa pra depois – reclamou ela.
- Trabalha com transporte escolar? – perguntei.
- Sim.
- Criança o dia inteiro – constatei, rindo.
- Pois é.
- Gosta de crianças?
- Bebezinhos são lindos nos colos das mães.
- Cheiram vida.
- Minha irmã têm três filhos, não tem vida própria, vive para as crianças e para o marido.
- É, é uma opção de vida.
- Não nasci pra isso, quero liberdade, não quero nada me prendendo. Você é casado? – perguntou-me com um jeito que até aquele momento não tinha mostrado. Pareceu-me que enfim ela tinha relaxado, foi então que comecei a ver sua beleza.
É clichê, mas é verdade, não existe gente feia, existe gente infeliz. O que rouba a beleza é a desesperança, eu era bem feio naquela época. Quando ela sorriu todo o seu rosto apareceu, seus olhos escuros, pele levemente morena, cabelos negros e alisados, uma boca expressiva. Vestia uma camisa violeta, calça preta bem apertada e saltos altos.
- Já fui – respondi eu, resignado.
- Acho que todo mundo já foi – riu ela debochadamente.
- Você já foi?
- Já morei junto algumas vezes, é bobagem, morar junto é casamento do mesmo jeito. As duas vezes que tentei isso, eles queriam casar-se, eu caí fora.
Parecia-me uma mulher vivida, tinha a minha idade, era alguém que conhecia o amor, mas não me pareceu vulgar, ou não era isso que prevalecia nela. Eu sentia nela verdade, podia olhar seus olhos e ver seu coração, apesar de forte e brilhante, seu olhar era transparente.
Seu corpo talvez já tivesse se sujado várias vezes, mas sua alma estava limpa, se o amor a visitasse de verdade, ela o acolheria sem reservas. Tem gente que é assim, não tem medo de errar, mas está pronta para acertar, se valer a pena. Diferente de outras mulheres, que querem acertar de cara, não para serem felizes, mas para mostrar aos outro que são. Essas mantém o corpo sempre casto, bem lavado, perfumado, mas seus corações são escuros, tristes, essas mulheres por mais belas e equilibradas que sejam suas medidas, terão sempre um sorriso triste, serão feias.
- Achei que ele estivesse morto – eu disse, mais para mim mesmo do que para ela.
- Credo, nunca penso nisso – respondeu ela, cética.
- Você acredita que eu encontrei esse cara antes? Hoje mesmo?
- Você o conhece?
- Não, ele veio me devolver carteira que eu perdi.
Ficamos lá por mais uma hora, em silêncio na maior parte do tempo, até que o cara apareceu, acompanhado de um médico. Eles conversaram, apertaram as mãos e então o baixinho veio até nós.
- E aí, tudo bem? – perguntou Juliana.
- Tudo bem, me desculpa, viu.
- Sou eu quem deve pedir desculpas.
- Não, sou eu, nem olhei para a rua, fui atravessando, ando com tantas coisas na cabeça, acho preciso de uma bebida agora – disse o homem passando a mão na careca.
- Estou indo para o bar, se quiser ir junto – eu disse.
- Uma cerveja ia bem agora – disse Juliana.
O bar estava vazio, sentamos os três, pedimos uma cerveja que desceu fácil. Éramos pessoas totalmente diferentes uma das outras, ele, um funcionário da burocracia financeira, com a cabeça feita por números, um homem cansado, mas descomplicado. Ela, uma devoradora de homens do tipo que nem eu, nem ele, éramos. Eu, depressivo e sem forças para nenhum tipo de investida. Resultado, não havia tensão sexual, assim a conversa aconteceu leve, fácil, deliciosa.
Falamos de tudo, mas não falamos de nada. Ninguém citou nomes, maridos, esposas, namorados ou casos, compartilhamos ilusões, sonhos, os mais bobos e tolos que existem. Eu mesmo, vestido de tristeza, me peguei experimentado peças de alegria, pelo menos para ver se o número cabia em mim, me peguei rindo quando contei ao baixinho, Reinaldo era seu nome, que achei que ele estava querendo me matar naquela noite. Juliana também riu quando contou que tinha analisado friamente o tamanho do corpo do acidentado, no momento que ele estava caído na rua, para ver se ela podia carregar o corpo e encaixá-lo no porta-malas, para dar sumiço no cadáver. Não, ela disse que não faria aquilo, mas que foi uma daquelas bobagens que passam por nossas cabeças por alguns segundos nos dando uma solução esdrúxula para alguma dificuldade imprevista. 
Passava da meia-noite quando Juliana, depois de deixar Reinaldo em seu apartamento, me deixou em casa. Ela me passou número do telefone e disse pra eu ligar quando estivesse a fim de uma cerveja. Eu gostei dela, o tipo de mulher que me deixa à vontade, o tipo de mulher que não tem nada para esconder, o tipo de mulher que seria sempre uma boa amiga, mas que eu sempre teria medo de almejar alguma intenção mais agressiva.
Quando o carro dela foi embora eu notei, na outra calçada, umas quatro casas para frente, uma pessoas encostada na parede. Eu a olhei, ela olhou para mim, jogou o cigarro fora e foi embora, na mesma direção que o carro de Juliana tinha ido. Não consegui discernir se era homem ou mulher. Naquele momento aquilo não me preocupou, sei lá, talvez eu estivesse bêbado, nas na manhã seguinte, quando escovava os dentes, me lembrei da semana e pensei que aquela pessoa talvez fosse o assassino.
Naquela noite, porém, eu entrei em casa, tirei a roupa e fui para o banho. Enquanto a água quente caía sobre meu rosto e eu relaxava, as palavras daqueles dois esquisitos da praça me vieram à mente: “você terá dez encontros”, por algum motivo eu tive a convicção de que aquele tinha sido o primeiro encontro, e que Juliana e Reinaldo eram as primeiras pessoas. Outra certeza que tive foi que o assunto principal daquele encontro tinha sido o menos falado, o menos intencionado, o assunto tinha sido sexo.

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Já foi dito que depois de Deus, a maior força que existe no mundo é o sexo, que move pessoas mais do que qualquer outra ambição ou força. Muitos acham que é o dinheiro, que manipula políticos, que manipula a sociedade, mas todos podem ser controlados pelo sexo. Um grande empresário pode dividir milhões de dólares num divórcio, para poder ficar com uma secretária, que por sua vez ficou com ele única e exclusivamente pelo dinheiro. Mas quem teve poder sobre o dinheiro? Sexo.
Um político pode perder a eleição de presidência da república por ter um caso secreto com uma amante revelado publicamente por seu concorrente, quem venceu a eleição? O sexo.
Um escritor, que doutrina o mundo todo com seus textos, que toca corações de gerações com sua poesia, que será mais eterno que um milionário ou que um presidente, pode ser levado ao suicídio por causa do amor não correspondido de uma musa. Quem matou o artista? Sexo.
Portanto, existe tensão sexual em todos os relacionamentos, mesmo nas amizades e na profissão. O convencimento que um vendedor faz, levando-nos à compra de um eletrodoméstico, o discurso de um advogado, defendendo um réu, mesmo em muitas palavras pregadas em púlpitos religiosos, a sedução sexual está presente, não necessariamente para levar as pessoas para a cama, mas para conquistá-las, como um macho faz com a fêmea. Não, isso não é exagero meu não.
O mais estranho é que aquilo que nos faz sentir tão vivos, que nos embriaga de prazer é o que mais pode nos matar, nesse caso por excesso, e que quando se apaga também nos mata, então por falta. Se sexo controla o homem, o conduz à morte, agora quando a energia sexual deixa o homem, quando o desejo se apaga nele, ele também morre.
A solução é a mesma, nos dois casos: na juventude, busquemos a Deus para que o Espírito Santo nos dê forças para controlar o desejo, na velhice dependamos de Deus para ter alegria e forças para viver sem o desejo. No excesso, há Deus, e na falta, também existe Deus, porque na eternidade não haverá sexo, somente Deus.

Quando tentado, ninguém deve dizer: Sou tentado por Deus, pois Deus não pode ser tentado pelo mal e a ninguém tenta. Mas cada um é tentado quando atraído e seduzido por seu próprio desejo. Então o desejo, tendo concebido, dá à luz o pecado; e o pecado, após se consumar, gera a morte.”
Tiago 1.13-15

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