Apressei os passos,
mas os passos atrás de mim correram mais, eu não tinha coragem de olhar para
trás, os pensamentos não paravam em minha cabeça o suficiente para que eu
pudesse entender o que ocorria. Passei por uma mulher, acho que esbarrei nela,
nem me lembro, ela resmungou alguma coisa. Falei em voz alta, “onde estão os
policiais quando a gente mais precisa deles?”.
Então peguei à
direita num cruzamento, pensei, “terei algum tempo antes que meu perseguidor me
veja, vou correr, a quadra é pequena, vai dar tempo de pegar à direita
novamente e me desvencilhar dele”. As calçadas estreitas de Itu que se tornavam
intransitáveis durante o dia, escorregavam pelos meus pés. Fiquei cansado, mas
quando tive coragem de olhar para trás não vi ninguém, contudo quando me voltei
para frente ele me surpreendeu.
- Você deixou cair,
estou correndo atrás de você faz tempo – o cara me disse estendendo a mão e
entregando minha carteira. Era um homem baixinho, careca, de roupa social,
terno marrom e gravata verde, camisa azul, nada combinando com nada. Deveria
ser caixa de algum banco, parecia mais velho do que realmente era, estava
ofegante, mais do que eu.
- Obrigado –
respondi assustado.
Não era o assassino,
era noite de quinta-feira, eu não tinha compromisso no hotel, ia ao bar do
carioca tomar uma cerveja. Nem era madrugada, deveria ser umas nove horas, mas
o centro já estava vazio. Dei meia volta e continuei em meu curso original, a
fuga da falsa perseguição tinha me feito mudar de direção.
Estava a duas
quadras do bar, as luzes dos postes estavam queimadas. Eu me acalmei, andava
devagar, passavam lentamente pelos meus olhos imagens do hotel, eu assistia
pessoas tomando drinques de pêssego, saboreando aperitivos de azeitonas
importadas, eu estava ao piano, de costas para o público, de costas as pessoas,
de costas para a vida. Acho que foi essa a minha história, virei as costas para
a luz, para a felicidade, para pequenas e simples alegrias. Escondi-me atrás do
piano, em meio às notas musicais, me tornei amigo de compositores que se
escondiam atrás de suas canções, que compartilhavam amores que nunca tiveram. Luiza
e Lígia, como ouvi uma vez Tom dizer na televisão, não eram celebrações de
amores que teve, mas memórias de mulheres que nunca possuiu. Viver de saudades,
saudades de um tempo em que se sonhava com o futuro, naquele momento meu futuro
não existia, toda esperança estava morta.
De repente ouvi um
barulho, um carro brecando, a batida seca em alguma coisa que depois caiu ao
chão. Eu corri, era o que tinha que ser feito, tentar ajudar, mesmo que eu
tivesse tanto medo de ver alguém ensanguentado. Só vi direito as coisas quando
cheguei à esquina, uma quadra antes do bar, lá, a lâmpada de um poste que
apagava e acendia olhava o acontecido de cima.
O carro, uma van de
transporte escolar, estava parado no meio do cruzamento, com a porta do
motorista aberta. Uma mulher ajoelhada no chão olhava apreensiva um homem
deitado e inconsciente. Eu cheguei mais perto e vi, era o cara da carteira, ele
devia ter feito a entrega pra mim e seguido naquela direção, como eu fui em
direção oposta e só depois voltei, não o vi, nem poderia, estava tão escuro.
- Temos que levá-lo
ao pronto-socorro – disse ela séria, mas não desesperada.
- Eles mandam a
gente deixar a pessoa não posição e esperar uma ambulância – disse eu.
- Mas se ele
estiver mal? Temos que levá-lo nós mesmos – disse-me ela enquanto o homem abria
os olhos.
- Como você está? –
eu perguntei, ele começou a se por sentado – É melhor você ficar deitado.
- Estou bem, – ele
disse sentando-se – minha cabeça é que dói.
Esperamos um pouco,
pelo que nos pareceu ele não tinha nenhum osso quebrado, apenas a cabeça doía.
- Melhorou? –
perguntou a mulher, até aquele momento nenhum carro tinha passado por nós, eu
olhei para frente e não conseguia ver nem a luz do bar acesa.
- Dói muito a
cabeça.
- Vamos para um
pronto-socorro, – disse a mulher, você pode me ajudar? – perguntou ela a mim.
- Sim.
Colocamos o homem
no banco de trás da van, sentei-me ao seu lado e ela nos levou até o hospital.
No hospital, enquanto o homem era atendido, eu e ela ficamos sentados,
aguardando o médico.
- Trabalhei o dia
todo, estou cansada – reclamou ela.
- Hoje estou de
folga, – disse eu – meu nome é José, Zé Renato.
- Juliana, – ela
disse isso pegando o maço de cigarros – droga, vou ter que sair pra fumar,
deixa pra depois – reclamou ela.
- Trabalha com
transporte escolar? – perguntei.
- Sim.
- Criança o dia
inteiro – constatei, rindo.
- Pois é.
- Gosta de
crianças?
- Bebezinhos são
lindos nos colos das mães.
- Cheiram vida.
- Minha irmã têm
três filhos, não tem vida própria, vive para as crianças e para o marido.
- É, é uma opção de
vida.
- Não nasci pra
isso, quero liberdade, não quero nada me prendendo. Você é casado? –
perguntou-me com um jeito que até aquele momento não tinha mostrado. Pareceu-me
que enfim ela tinha relaxado, foi então que comecei a ver sua beleza.
É clichê, mas é
verdade, não existe gente feia, existe gente infeliz. O que rouba a beleza é a
desesperança, eu era bem feio naquela época. Quando ela sorriu todo o seu rosto
apareceu, seus olhos escuros, pele levemente morena, cabelos negros e alisados,
uma boca expressiva. Vestia uma camisa violeta, calça preta bem apertada e
saltos altos.
- Já fui – respondi
eu, resignado.
- Acho que todo
mundo já foi – riu ela debochadamente.
- Você já foi?
- Já morei junto
algumas vezes, é bobagem, morar junto é casamento do mesmo jeito. As duas vezes
que tentei isso, eles queriam casar-se, eu caí fora.
Parecia-me uma
mulher vivida, tinha a minha idade, era alguém que conhecia o amor, mas não me
pareceu vulgar, ou não era isso que prevalecia nela. Eu sentia nela verdade,
podia olhar seus olhos e ver seu coração, apesar de forte e brilhante, seu
olhar era transparente.
Seu corpo talvez já
tivesse se sujado várias vezes, mas sua alma estava limpa, se o amor a
visitasse de verdade, ela o acolheria sem reservas. Tem gente que é assim, não
tem medo de errar, mas está pronta para acertar, se valer a pena. Diferente de
outras mulheres, que querem acertar de cara, não para serem felizes, mas para
mostrar aos outro que são. Essas mantém o corpo sempre casto, bem lavado,
perfumado, mas seus corações são escuros, tristes, essas mulheres por mais belas
e equilibradas que sejam suas medidas, terão sempre um sorriso triste, serão
feias.
- Achei que ele
estivesse morto – eu disse, mais para mim mesmo do que para ela.
- Credo, nunca
penso nisso – respondeu ela, cética.
- Você acredita que
eu encontrei esse cara antes? Hoje mesmo?
- Você o conhece?
- Não, ele veio me
devolver carteira que eu perdi.
Ficamos lá por mais
uma hora, em silêncio na maior parte do tempo, até que o cara apareceu,
acompanhado de um médico. Eles conversaram, apertaram as mãos e então o
baixinho veio até nós.
- E aí, tudo bem? –
perguntou Juliana.
- Tudo bem, me
desculpa, viu.
- Sou eu quem deve
pedir desculpas.
- Não, sou eu, nem
olhei para a rua, fui atravessando, ando com tantas coisas na cabeça, acho
preciso de uma bebida agora – disse o homem passando a mão na careca.
- Estou indo para o
bar, se quiser ir junto – eu disse.
- Uma cerveja ia
bem agora – disse Juliana.
O bar estava vazio,
sentamos os três, pedimos uma cerveja que desceu fácil. Éramos pessoas
totalmente diferentes uma das outras, ele, um funcionário da burocracia
financeira, com a cabeça feita por números, um homem cansado, mas
descomplicado. Ela, uma devoradora de homens do tipo que nem eu, nem ele, éramos.
Eu, depressivo e sem forças para nenhum tipo de investida. Resultado, não havia
tensão sexual, assim a conversa aconteceu leve, fácil, deliciosa.
Falamos de tudo,
mas não falamos de nada. Ninguém citou nomes, maridos, esposas, namorados ou
casos, compartilhamos ilusões, sonhos, os mais bobos e tolos que existem. Eu
mesmo, vestido de tristeza, me peguei experimentado peças de alegria, pelo
menos para ver se o número cabia em mim, me peguei rindo quando contei ao
baixinho, Reinaldo era seu nome, que achei que ele estava querendo me matar
naquela noite. Juliana também riu quando contou que tinha analisado friamente o
tamanho do corpo do acidentado, no momento que ele estava caído na rua, para
ver se ela podia carregar o corpo e encaixá-lo no porta-malas, para dar sumiço
no cadáver. Não, ela disse que não faria aquilo, mas que foi uma daquelas
bobagens que passam por nossas cabeças por alguns segundos nos dando uma
solução esdrúxula para alguma dificuldade imprevista.
Passava da
meia-noite quando Juliana, depois de deixar Reinaldo em seu apartamento, me
deixou em casa. Ela me passou número do telefone e disse pra eu ligar quando
estivesse a fim de uma cerveja. Eu gostei dela, o tipo de mulher que me deixa à
vontade, o tipo de mulher que não tem nada para esconder, o tipo de mulher que
seria sempre uma boa amiga, mas que eu sempre teria medo de almejar alguma
intenção mais agressiva.
Quando o carro dela
foi embora eu notei, na outra calçada, umas quatro casas para frente, uma
pessoas encostada na parede. Eu a olhei, ela olhou para mim, jogou o cigarro
fora e foi embora, na mesma direção que o carro de Juliana tinha ido. Não
consegui discernir se era homem ou mulher. Naquele momento aquilo não me
preocupou, sei lá, talvez eu estivesse bêbado, nas na manhã seguinte, quando
escovava os dentes, me lembrei da semana e pensei que aquela pessoa talvez
fosse o assassino.
Naquela noite,
porém, eu entrei em casa, tirei a roupa e fui para o banho. Enquanto a água
quente caía sobre meu rosto e eu relaxava, as palavras daqueles dois esquisitos
da praça me vieram à mente: “você terá dez encontros”, por algum motivo eu tive
a convicção de que aquele tinha sido o primeiro encontro, e que Juliana e
Reinaldo eram as primeiras pessoas. Outra certeza que tive foi que o assunto
principal daquele encontro tinha sido o menos falado, o menos intencionado, o
assunto tinha sido sexo.
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Já foi dito que
depois de Deus, a maior força que existe no mundo é o sexo, que move pessoas
mais do que qualquer outra ambição ou força. Muitos acham que é o dinheiro, que
manipula políticos, que manipula a sociedade, mas todos podem ser controlados
pelo sexo. Um grande empresário pode dividir milhões de dólares num divórcio,
para poder ficar com uma secretária, que por sua vez ficou com ele única e
exclusivamente pelo dinheiro. Mas quem teve poder sobre o dinheiro? Sexo.
Um político pode
perder a eleição de presidência da república por ter um caso secreto com uma
amante revelado publicamente por seu concorrente, quem venceu a eleição? O
sexo.
Um escritor, que
doutrina o mundo todo com seus textos, que toca corações de gerações com sua
poesia, que será mais eterno que um milionário ou que um presidente, pode ser
levado ao suicídio por causa do amor não correspondido de uma musa. Quem matou
o artista? Sexo.
Portanto, existe
tensão sexual em todos os relacionamentos, mesmo nas amizades e na profissão. O
convencimento que um vendedor faz, levando-nos à compra de um eletrodoméstico,
o discurso de um advogado, defendendo um réu, mesmo em muitas palavras pregadas
em púlpitos religiosos, a sedução sexual está presente, não necessariamente
para levar as pessoas para a cama, mas para conquistá-las, como um macho faz
com a fêmea. Não, isso não é exagero meu não.
O mais estranho é
que aquilo que nos faz sentir tão vivos, que nos embriaga de prazer é o que
mais pode nos matar, nesse caso por excesso, e que quando se apaga também nos
mata, então por falta. Se sexo controla o homem, o conduz à morte, agora quando
a energia sexual deixa o homem, quando o desejo se apaga nele, ele também
morre.
A solução é a
mesma, nos dois casos: na juventude, busquemos a Deus para que o Espírito Santo
nos dê forças para controlar o desejo, na velhice dependamos de Deus para ter
alegria e forças para viver sem o desejo. No excesso, há Deus, e na falta,
também existe Deus, porque na eternidade não haverá sexo, somente Deus.
“Quando tentado, ninguém deve dizer: Sou
tentado por Deus, pois Deus não pode ser tentado pelo mal e a ninguém tenta. Mas
cada um é tentado quando atraído e seduzido por seu próprio desejo. Então o
desejo, tendo concebido, dá à luz o pecado; e o pecado, após se consumar, gera
a morte.”
Tiago 1.13-15
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