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Raimundo, o que é esta foto de cachorro, atrás da máquina de café expresso? –
perguntei eu enquanto tomava o café da madrugada.
- É uma história
cumprida – disse ele, sorrindo.
Segue a
história que Rai meu contou.
À mesa,
um homem assobiou, queria chamar a atenção do garçom.
– Garçom
não é cachorro, que falta de respeito – respondeu atravessado Brito, um
profissional que sabia mais da vida dos clientes que de sua família, pudera,
vivera no restaurante dois terços dos últimos vinte anos de sua vida.
A
resposta do garçom não pareceu abusiva aos ouvidos do homem, esse já era
freguês antigo, tinha no restaurante a intimidade de cunhado na cozinha da
sogra. A reclamação, porém, tinha algo de verdadeiro, o garçom realmente
sentiu-se ofendido com o tratamento. Mas o trabalho cobrava, não havia tempo
para melindres, um prato estava pronto no balcão aguardando ser levado à mesa,
o cozinheiro já tinha tocado a campainha.
Num
canto, sozinho, de frente para a parede e de costas para todo o resto, Inácio
lia o jornal, em sua companhia, somente uma garrafa de cerveja. Como de costume
ele pedia a bebida e a tomava devagar, sem pressa, no jornal preferia notícias
internacionais, não política e nem economia, cultura em geral, curiosidades. Os
garçons sabiam de sua rotina, Inácio pouco falava, seu corpo estava lá, no meio
do burburinho, sua alma ausentava-se, presa à realidade por um fino fio de
barbante.
Pelos
ouvidos Inácio percebia o mundo como aquele ruído que se ouve quando se nada
por baixo da água, no caso dele o filtro era uma nostalgia crônica que o
prendia sempre ao passado. Ele tinha muita dificuldade de se conectar com o
presente, o futuro então era um conceito que desconhecia. Como um homem de
trinta anos pode parecer ter sessenta? Bem, ele já parecia que tinha quarenta
quando tinha menos de vinte, foi criado assim e manteve-se dessa forma,
amarrado.
Dizem que
Deus não dá asas à cobra, mas Inácio não era uma cobra, era uma pomba, uma
pomba sem asas. Único filho de um negociante de imóveis que acabou morrendo
cedo, logo após a esposa, Inácio se viu sozinho ainda jovem, tendo como único
objetivo de vida administrar aluguéis de uma herança que tinha sido acumulada
não por seu pai, mas por seu avo. Outros jovens, com índoles mais levianas,
estariam torrando o dinheiro fácil com mulheres e demais prazeres, era isso que
muitos diziam que ele deveria fazer. Contudo, essa liberdade não cabia dentro
de Inácio, sim, porque tem gente que não é livre não porque não quer, mas
porque não sabe. Ele vivia a vida do seu jeito e assim era feliz.
– Vai
querer o almoço agora? – disse Brito percebendo a garrafa e o copo vazios.
– Sim.
– O de
sempre?
– Por
favor – o de sempre era aquilo que antigamente se chamava comercial, arroz,
feijão, um bife e uma resumida salada de alface com tomate e cebola.
Inácio
estava com fome, mas a cerveja pesava dentro dele, então se levantou e foi ao
banheiro. O local ficava nos fundos do restaurante, sozinho, lá dentro, o mundo
parecia desligar-se. Ele usou o vaso, lavou as mãos, abriu a porta e seguiu por
um corredor, de volta ao recinto das mesas. No final do corredor Inácio parou,
olhou as mesas e surpreendeu-se, o restaurante estava vazio, ninguém às mesas e
nem servindo pratos, até o caixa estava vazio, contudo, na calçada da frente,
havia muitas pessoas. Ele passou pelas mesas e chegou à porta do restaurante.
– O que
houve? – perguntou ele.
– Alguém
saltou do prédio – respondeu um vendedor de bilhetes de loteria bem ao seu
lado.
– Quem
foi? – perguntou Inácio.
– Foi uma
velha – disse, mais à frente da aglomeração, um vigia noturno no dia de folga,
de chinelo, bermuda, camiseta sem mangas com uma deselegante pochete no ombro.
Inácio
esgueirou-se até o meio do ajuntamento, lá sua pequena estatura permitiria que
ele visse melhor o que estava acontecendo. No chão, derramada sobre as pedras
brancas e pretas da calçada, cozinhada por um sol de janeiro, uma senhora, com
mais de setenta anos, parecia dormir, seu semblante estava tranquilo. O calor
já começava derreter sua maquiagem que escorria pelas bochechas, o blush rosa
exagerado dava a ela uma vitalidade artificial, seus cabelos, com o tingimento
vencido, mostravam-se brancos próximos às raízes, e dourados nas pontas. A
perna direita, atravessada sobre a esquerda, terminava num sapato com o salto
quebrado. A saia levantada mostrava as meias, curtas para esconderem suas
cochas brancas e manchadas de marrom. As joias, de uma moda antiga qualquer,
empoleiravam-se sobre seus dedos, pulsos e pescoço, eram ouro e pedras de
várias cores. Ela parecia vestida para a missa de domingo, mas não era isso
não, ela se vestia assim na segunda-feira de manhã, quando ia comprar pão e
leite na padaria, assim como na quinta, quando fazia a feira.
Todo
mundo parou pra ver, mas ninguém ousava mexer no corpo. Sentada na soleira da
loja de sapatos, no andar térreo do prédio onde morava a velha, uma mulher, de
trinta e poucos anos, com as pernas abertas e o olhar enfraquecido, era
acalmada pelas vendedoras, pelo que Inácio entendeu a suicida tinha caído ao
seu lado, por pouco não tinha sido sobre ela. Um jovem de calça social, de
camisa de mangas compridas e gravata, segurando uma pasta na mão, grita:
– Tem
alguma coisa embaixo dela – um senhor de calça, suspensórios, camisa e sapatos
brancos, com cabelo e barba da mesma cor, usando óculos escuros de lentes
verdes, se abaixou e com cuidado levantou o ombro da mulher.
– Meu
Deus, parece a pata de um bicho – a multidão assustada se afastou, Inácio se
afastou também, o sol assava o couro das cabeças, ninguém arredava o pé de lá.
O trânsito estava parado, muitos motoristas desciam para ver o que estava acontecendo.
– Onde
está a ambulância? – reclamou uma senhora magérrima debaixo de uma sombrinha
que combinava com seu vestido, mas que se mostrava inútil na tarefa de barrar
os raios solares. Então uma mulata, redonda e escandalosa surtou:
– Ela
está abrindo os olhos – a multidão curiosa tornou a se aproximar, Inácio veio
junto, como estava quente no meio daquela gente, cheiros de todos os tipos, mas
a adrenalina deixava tudo suportável, no encantamento de se admirar a tragédia
da vida alheia.
A velha,
com os olhos arregalados, curva-se e apoiada com as mãos senta-se, então todos
veem, debaixo dela, um cachorro. Ela ainda não o tinha percebido e começava um
monólogo sem nexo num sotaque italiano-caipira forte, próprio dos habitantes
mais antigos da cidade:
– O
vaso... vou molhar as flores... que calor... quem colocou o vaso aí?... não
alcanço... meu Deus...
Não, ela
não tinha tentado suicídio, estava só querendo aguar as plantas e perdeu o
equilíbrio. Ela tentou se levantar, no que algumas pessoas adiantaram-se para
segurá-la.
– É
melhor a senhora não se mexer – disse um homem com crachá de gerente de loja de
eletrodomésticos.
– Estou
bem – respondeu a velha com impertinência, - mas acho que tem algo debaixo de
mim – finalmente ela percebeu a massa de carne sob seu corpo.
Como não
havia jeito de impedi-la, as pessoas mais próximas se puseram a ajuda-la a se
por de pé, ela realmente estava bem, contudo, embaixo dela havia um cachorro, ele
estava morto. De alguma maneira o cão tinha amortecido a queda da velha, ela
nada sofrera, mas ele perdera a vida. Inácio reconheceu o animal, um vira-lata
que vivia na porta do restaurante, era alimentado pelos clientes, era bem
tratado, tinham arranjado até um nome pra ele. A ambulância chegou, levou a
velha para fazer os exames devidos no hospital, mas na manhã seguinte ela já
estava andando pelas ruas do centro, conversando com as pessoas, levando o
sapato de salto quebrado para consertar no sapateiro, ela não sofreu nem um
arranhão com a queda.
Inácio
tinha na carteira uma fotografia, guardada há alguns anos. Era dele, em frente
ao bar com os amigos garçons. Do lado esquerdo da foto, quase que saindo dela,
deitando no chão, estava o cachorro. Inácio mandou fazer uma cópia aumentada da
parte da foto onde aparecia o cão. A foto foi emoldurada e colocada numa parede
do restaurante, uma frase, escrita à mão pelo próprio Inácio, dizia: “o homem
não quer ter vida de cachorro, mas esse cachorro deu sua vida por alguém”,
seguia a data do milagre ocorrido, sim porque todos que souberam do ocorrido
acharam aquilo um verdadeiro milagre, e o cão, um herói.
Acabei de
tomar o café e foi só então que me dei conta do que estava acontecendo nas
últimas semanas, entre realidade e história, eu tinha testemunhado cinco experiências
de morte, incluindo a minha própria diante do revólver que falhou duas vezes.
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Quanto vale uma
vida? Para a maioria das pessoas não vale muito, não quando se deseja a morte
de tantas formas, mesmo que inconscientemente.
Os políticos
corruptos matam as pessoas quando desviam verbas para uso pessoal que deveriam
ser usadas para a saúde pública, construindo hospitais e pagando médicos.
Os pais matam seus
filhos quando entregam a educação desses para outros, mesmo que sejam escolas,
elas podem informar intelectualmente, mas não conseguem formar o caráter dos
jovens. Pior ainda, quando começam a tomar conta de filhos com pais ausentes,
traficantes e vândalos.
Mas a responsabilidade
também é pessoal. Matamo-nos quando acumulamos amargura, retenção de perdão,
inseguranças, que desequilibram nosso lado emocional, nossa mente e nossa alma,
e depois transferem para o corpo tantas enfermidades. Falimos nossos estômagos,
corações, rins, com sofrimento mal administrado e mantido dentro de nós.
Também executamos
nossa própria morte consumimos química para alterar nosso estado de
consciência, sejam psicotrópicos, álcool, tabaco, assim como drogas lícitas,
vendidas em farmácias, receitadas por médicos, mas que tomadas em excesso
viciam e matam tanto quando cocaína e LSD.
Deus, através de
Jesus, não discute a doença, não filosofa em cima delas, nem procura culpados por
elas para julgar e condenar. O Senhor simplesmente oferece a solução. A culpa
deve ser assumida individualmente, o perdão pode ser adquirido de graça, com
isso se experimenta vida que somente existe em Deus.
Quanto vale uma
vida? Outra vida, mas uma que seja sem mácula, sem pecado, uma vida que seja oferecida
pura e por vontade própria, para vencer a segunda morte, e que ressuscite para
vencer também a primeira morte.
Nossas vidas têm um
preço, a vida de Jesus, que sofreu sem merecer, sem manteve longe do pecado sem
receber nada por isso, e por fim ressuscitou. Foi esse trabalho de Deus, feito
de graça e em amor, que comprou as nossas vidas e nos livrou de todas as mortes.
“Porque também Cristo morreu uma única vez pelos pecados, o justo pelos
injustos, para levar-nos a Deus; morto na carne, mas vivificado pelo Espírito”
I
Pedro 3:18
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