9 de out. de 2014

07 - Não é fácil morrer

- Raimundo, o que é esta foto de cachorro, atrás da máquina de café expresso? – perguntei eu enquanto tomava o café da madrugada.
- É uma história cumprida – disse ele, sorrindo.
Segue a história que Rai meu contou.
À mesa, um homem assobiou, queria chamar a atenção do garçom.
– Garçom não é cachorro, que falta de respeito – respondeu atravessado Brito, um profissional que sabia mais da vida dos clientes que de sua família, pudera, vivera no restaurante dois terços dos últimos vinte anos de sua vida.
A resposta do garçom não pareceu abusiva aos ouvidos do homem, esse já era freguês antigo, tinha no restaurante a intimidade de cunhado na cozinha da sogra. A reclamação, porém, tinha algo de verdadeiro, o garçom realmente sentiu-se ofendido com o tratamento. Mas o trabalho cobrava, não havia tempo para melindres, um prato estava pronto no balcão aguardando ser levado à mesa, o cozinheiro já tinha tocado a campainha.
Num canto, sozinho, de frente para a parede e de costas para todo o resto, Inácio lia o jornal, em sua companhia, somente uma garrafa de cerveja. Como de costume ele pedia a bebida e a tomava devagar, sem pressa, no jornal preferia notícias internacionais, não política e nem economia, cultura em geral, curiosidades. Os garçons sabiam de sua rotina, Inácio pouco falava, seu corpo estava lá, no meio do burburinho, sua alma ausentava-se, presa à realidade por um fino fio de barbante.
Pelos ouvidos Inácio percebia o mundo como aquele ruído que se ouve quando se nada por baixo da água, no caso dele o filtro era uma nostalgia crônica que o prendia sempre ao passado. Ele tinha muita dificuldade de se conectar com o presente, o futuro então era um conceito que desconhecia. Como um homem de trinta anos pode parecer ter sessenta? Bem, ele já parecia que tinha quarenta quando tinha menos de vinte, foi criado assim e manteve-se dessa forma, amarrado.
Dizem que Deus não dá asas à cobra, mas Inácio não era uma cobra, era uma pomba, uma pomba sem asas. Único filho de um negociante de imóveis que acabou morrendo cedo, logo após a esposa, Inácio se viu sozinho ainda jovem, tendo como único objetivo de vida administrar aluguéis de uma herança que tinha sido acumulada não por seu pai, mas por seu avo. Outros jovens, com índoles mais levianas, estariam torrando o dinheiro fácil com mulheres e demais prazeres, era isso que muitos diziam que ele deveria fazer. Contudo, essa liberdade não cabia dentro de Inácio, sim, porque tem gente que não é livre não porque não quer, mas porque não sabe. Ele vivia a vida do seu jeito e assim era feliz.
– Vai querer o almoço agora? – disse Brito percebendo a garrafa e o copo vazios.
– Sim.
– O de sempre?
– Por favor – o de sempre era aquilo que antigamente se chamava comercial, arroz, feijão, um bife e uma resumida salada de alface com tomate e cebola.
Inácio estava com fome, mas a cerveja pesava dentro dele, então se levantou e foi ao banheiro. O local ficava nos fundos do restaurante, sozinho, lá dentro, o mundo parecia desligar-se. Ele usou o vaso, lavou as mãos, abriu a porta e seguiu por um corredor, de volta ao recinto das mesas. No final do corredor Inácio parou, olhou as mesas e surpreendeu-se, o restaurante estava vazio, ninguém às mesas e nem servindo pratos, até o caixa estava vazio, contudo, na calçada da frente, havia muitas pessoas. Ele passou pelas mesas e chegou à porta do restaurante.
– O que houve? – perguntou ele.
– Alguém saltou do prédio – respondeu um vendedor de bilhetes de loteria bem ao seu lado.
– Quem foi? – perguntou Inácio.
– Foi uma velha – disse, mais à frente da aglomeração, um vigia noturno no dia de folga, de chinelo, bermuda, camiseta sem mangas com uma deselegante pochete no ombro.
Inácio esgueirou-se até o meio do ajuntamento, lá sua pequena estatura permitiria que ele visse melhor o que estava acontecendo. No chão, derramada sobre as pedras brancas e pretas da calçada, cozinhada por um sol de janeiro, uma senhora, com mais de setenta anos, parecia dormir, seu semblante estava tranquilo. O calor já começava derreter sua maquiagem que escorria pelas bochechas, o blush rosa exagerado dava a ela uma vitalidade artificial, seus cabelos, com o tingimento vencido, mostravam-se brancos próximos às raízes, e dourados nas pontas. A perna direita, atravessada sobre a esquerda, terminava num sapato com o salto quebrado. A saia levantada mostrava as meias, curtas para esconderem suas cochas brancas e manchadas de marrom. As joias, de uma moda antiga qualquer, empoleiravam-se sobre seus dedos, pulsos e pescoço, eram ouro e pedras de várias cores. Ela parecia vestida para a missa de domingo, mas não era isso não, ela se vestia assim na segunda-feira de manhã, quando ia comprar pão e leite na padaria, assim como na quinta, quando fazia a feira.
Todo mundo parou pra ver, mas ninguém ousava mexer no corpo. Sentada na soleira da loja de sapatos, no andar térreo do prédio onde morava a velha, uma mulher, de trinta e poucos anos, com as pernas abertas e o olhar enfraquecido, era acalmada pelas vendedoras, pelo que Inácio entendeu a suicida tinha caído ao seu lado, por pouco não tinha sido sobre ela. Um jovem de calça social, de camisa de mangas compridas e gravata, segurando uma pasta na mão, grita:
– Tem alguma coisa embaixo dela – um senhor de calça, suspensórios, camisa e sapatos brancos, com cabelo e barba da mesma cor, usando óculos escuros de lentes verdes, se abaixou e com cuidado levantou o ombro da mulher.
– Meu Deus, parece a pata de um bicho – a multidão assustada se afastou, Inácio se afastou também, o sol assava o couro das cabeças, ninguém arredava o pé de lá. O trânsito estava parado, muitos motoristas desciam para ver o que estava acontecendo.
– Onde está a ambulância? – reclamou uma senhora magérrima debaixo de uma sombrinha que combinava com seu vestido, mas que se mostrava inútil na tarefa de barrar os raios solares. Então uma mulata, redonda e escandalosa surtou:
– Ela está abrindo os olhos – a multidão curiosa tornou a se aproximar, Inácio veio junto, como estava quente no meio daquela gente, cheiros de todos os tipos, mas a adrenalina deixava tudo suportável, no encantamento de se admirar a tragédia da vida alheia.
A velha, com os olhos arregalados, curva-se e apoiada com as mãos senta-se, então todos veem, debaixo dela, um cachorro. Ela ainda não o tinha percebido e começava um monólogo sem nexo num sotaque italiano-caipira forte, próprio dos habitantes mais antigos da cidade:
– O vaso... vou molhar as flores... que calor... quem colocou o vaso aí?... não alcanço... meu Deus...
Não, ela não tinha tentado suicídio, estava só querendo aguar as plantas e perdeu o equilíbrio. Ela tentou se levantar, no que algumas pessoas adiantaram-se para segurá-la.
– É melhor a senhora não se mexer – disse um homem com crachá de gerente de loja de eletrodomésticos.
– Estou bem – respondeu a velha com impertinência, - mas acho que tem algo debaixo de mim – finalmente ela percebeu a massa de carne sob seu corpo.
Como não havia jeito de impedi-la, as pessoas mais próximas se puseram a ajuda-la a se por de pé, ela realmente estava bem, contudo, embaixo dela havia um cachorro, ele estava morto. De alguma maneira o cão tinha amortecido a queda da velha, ela nada sofrera, mas ele perdera a vida. Inácio reconheceu o animal, um vira-lata que vivia na porta do restaurante, era alimentado pelos clientes, era bem tratado, tinham arranjado até um nome pra ele. A ambulância chegou, levou a velha para fazer os exames devidos no hospital, mas na manhã seguinte ela já estava andando pelas ruas do centro, conversando com as pessoas, levando o sapato de salto quebrado para consertar no sapateiro, ela não sofreu nem um arranhão com a queda.
Inácio tinha na carteira uma fotografia, guardada há alguns anos. Era dele, em frente ao bar com os amigos garçons. Do lado esquerdo da foto, quase que saindo dela, deitando no chão, estava o cachorro. Inácio mandou fazer uma cópia aumentada da parte da foto onde aparecia o cão. A foto foi emoldurada e colocada numa parede do restaurante, uma frase, escrita à mão pelo próprio Inácio, dizia: “o homem não quer ter vida de cachorro, mas esse cachorro deu sua vida por alguém”, seguia a data do milagre ocorrido, sim porque todos que souberam do ocorrido acharam aquilo um verdadeiro milagre, e o cão, um herói.
Acabei de tomar o café e foi só então que me dei conta do que estava acontecendo nas últimas semanas, entre realidade e história, eu tinha testemunhado cinco experiências de morte, incluindo a minha própria diante do revólver que falhou duas vezes.

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Quanto vale uma vida? Para a maioria das pessoas não vale muito, não quando se deseja a morte de tantas formas, mesmo que inconscientemente.
Os políticos corruptos matam as pessoas quando desviam verbas para uso pessoal que deveriam ser usadas para a saúde pública, construindo hospitais e pagando médicos.
Os pais matam seus filhos quando entregam a educação desses para outros, mesmo que sejam escolas, elas podem informar intelectualmente, mas não conseguem formar o caráter dos jovens. Pior ainda, quando começam a tomar conta de filhos com pais ausentes, traficantes e vândalos.
Mas a responsabilidade também é pessoal. Matamo-nos quando acumulamos amargura, retenção de perdão, inseguranças, que desequilibram nosso lado emocional, nossa mente e nossa alma, e depois transferem para o corpo tantas enfermidades. Falimos nossos estômagos, corações, rins, com sofrimento mal administrado e mantido dentro de nós.
Também executamos nossa própria morte consumimos química para alterar nosso estado de consciência, sejam psicotrópicos, álcool, tabaco, assim como drogas lícitas, vendidas em farmácias, receitadas por médicos, mas que tomadas em excesso viciam e matam tanto quando cocaína e LSD.
Deus, através de Jesus, não discute a doença, não filosofa em cima delas, nem procura culpados por elas para julgar e condenar. O Senhor simplesmente oferece a solução. A culpa deve ser assumida individualmente, o perdão pode ser adquirido de graça, com isso se experimenta vida que somente existe em Deus.
Quanto vale uma vida? Outra vida, mas uma que seja sem mácula, sem pecado, uma vida que seja oferecida pura e por vontade própria, para vencer a segunda morte, e que ressuscite para vencer também a primeira morte.
Nossas vidas têm um preço, a vida de Jesus, que sofreu sem merecer, sem manteve longe do pecado sem receber nada por isso, e por fim ressuscitou. Foi esse trabalho de Deus, feito de graça e em amor, que comprou as nossas vidas e nos livrou de todas as mortes.

Porque também Cristo morreu uma única vez pelos pecados, o justo pelos injustos, para levar-nos a Deus; morto na carne, mas vivificado pelo Espírito
I Pedro 3:18

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