Chovia naquela
noite e a temperatura tinha caído bastante, era uma noite perfeita para se
estar em casa com uma mulher carinhosa, mas eu estava lá, tomando o café da
madrugada.
Em Águas de São
Pedro só tinha velhos, não era feriado, então somente os aposentados com tempo
livre estavam hospedados no Grande Hotel. Esses tinham sido a plateia de minha
noite, na maior parte das vezes eram bons espectadores, são de uma geração que
conhece boa música e respeitam músicos. Então aplaudem com facilidade, fazem
pedidos, participam da apresentação. Apesar de milionários, esse era sempre o
perfil dos hóspedes do Grande Hotel Senac de Águas, eram humildes e sabiam
respeitar arte e artistas.
O mesmo, porém, não
se podia dizer de seus herdeiros, filhos e netos mimados por uma riqueza que
eles não produziram e que gastavam facilmente sem saber realmente quanto
trabalho e tempo tinha custado para alguém. Mas enfim, músico é pago para fazer
música, não podemos nos importar para quem fazemos e nem o que fazemos.
Repertório e público é algo que músico profissional não pode ligar, tem que
tocar aquilo que as pessoas querem ouvir e pronto.
O bar estava vazio,
Raimundo lavava copos, me encostei ao balcão, cumprimentei-o e esperei o café.
Breno tomou a iniciativa de falar comigo, não o vi chegar.
- Cansado? – disse
ele.
- Bastante –
resmunguei, olhando para ele.
- Você precisa de
diversão.
- Músico não tem
direito a isso, já que todos dizem que já trabalhamos com diversão, mas acaba
sendo um serviço como todos os outros, na verdade é até pior, nós é sonegado o
direito de nos divertirmos com a música. Depois de tocar por quatro horas, em
duas noites seguidas, o que mais queremos é silêncio. Outros, chegariam em casa
e colocariam um CD preferido pra tocar e relaxariam, eu estou com a alma
exausta de produzir harmonias, dominar ritmos, ler notas, movimentas as teclas.
Vou dormir e a “Garota” do Tom ainda continua soando na minha cabeça.
- Uma mulher experiente
pode diverti-lo, uma partida de futebol com os amigos, ir ao cinema...
- Não tenho
paciência pra mais nada.
- Festa de
aniversário de criança, bolo de chocolate com morangos, brigadeiros,
refrigerante, overdose de açúcar – disse Breno abrindo uma gargalhada irônica.
- Casais fingindo
que a vida é perfeita, vinte pessoas entupindo uma sala de estar que só cabe
meia dúzia, privacidade resumida a zero, você é obrigado a rir de piadas velhas,
– eu respondi ponto pra fora toca a minha decepção com a vida – você é casado
Breno? – emendei uma pergunta.
- As melhores
coisas da vida são as mais simples – respondeu ele outra pergunta que não foi a
última que eu fiz.
- Acho que preciso
de prazeres artificiais, mais elaborados.
- Conheço um
traficante que pode te vender algumas gramas de felicidade – disse ele dentro
de sua camisa preta de cetim que brilhava de uma maneira excepcional naquela
noite.
- Não, eu passo, –
respondi sorrindo – nunca entrei nessa, já tentei fumar um baseado, mas
engasguei até e não senti nenhum barato.
- Você é um músico
diferente, a sua galera geralmente cheira muito, fuma muito.
- Viajo muito mais
lúcido, nem álcool tenho bebido mais, parece que nada faz efeito, só não
dispenso o café.
Nossa conversa foi
interrompida com a entrada de um homem no bar, ele vestia capacete de
motoqueiro e tinha na mão um revolver.
- Todo mundo
quieto, passem o dinheiro – dizia o ladrão enquanto apontava a arma para a moça
do caixa que tirava o dinheiro das gavetas e jogava no balcão.
Eu travei, fixei os
olhos nele e permaneci imóvel, desobedeci uma das orientações que dão aos que
enfrentam essa situação, de nunca encarar o bandido.
- Você está olhando
o quê? – me disse o ladrão, eu permaneci calado.
Debaixo da viseira
do capacete podia-se discernir o brilho dos olhos do marginal, um brilho
terrível de quem não dá nenhum valor para a vida, então ele repetiu.
- Está olhando o
quê? – naquele momento eu me senti absolutamente sozinho no lugar, eu o
encarava, mas a minha visão periférica, ofuscada, não via mais ninguém, fosse o
Raimundo, Breno ou a moça do caixa. Por um segundo eu me vi acima daquele
lugar, fora de mim e dentro de mim ao mesmo tempo, como num sonho. Aquele
filminho que dizem que se passa na nossa frente quando estamos próximos da
morte, pois bem, ele não passou pra mim. Eu não vi passado, não achei presente,
apenas me dei ao direito da possibilidade de um futuro que até agora eu não
tinha pensado.
- Você quer morrer
cara? – as três chamadas que ele me fez foram muito rápidas, uma atrás da
outra, isso é, foram rápidas para os outros, para mim pareceram durar uma noite
inteira, então ele atirou, bem, o revólver está com o cano grudado na minha
testa, eu ouvi com clareza o gatilho sendo apertado.
- Morre... – mas eu
não morri, alguém, em algum lugar fez com que a arma falhasse, não somente uma
vez, mas duas, já que ele tornou a atirar. Sem balas ele bateu com a arma na
minha cabeça, eu ainda consegui vê-lo saindo correndo, mas depois só fui ver
novamente a moça do caixa, passando um pano molhado e frio em minha cabeça, eu
estava sentando num cadeira com o Raimundo e um dos cozinheiros do bar ao me
lado.
- O que é que
aconteceu?
- O cara bateu em
você e vazou, você desmaiou – disse Raimundo
- A arma, eu o ouvi
atirando.
- É meu amigo, você
nasceu de novo, o revólver falhou, duas vezes – me respondeu Rai com seu
sorriso carinhoso.
Ainda fiquei
sentado por alguns minutos, esperando a zonzeira passar, tinha um galo enorme
na cabeça, mas não tinha sangrado.
- Acho que vou
indo.
- Tem certeza de
que não quer ir a um pronto-socorro? – disse a moça.
- Acho que estou
bem.
- É bom tirar uma
chapa, pra ver se não quebrou nada. – reinterou Raimundo.
- Tenho cabeça
dura, é mais provável que tenha trincado o revólver – respondi enquanto me
levantava. Breno não estava por lá.
A rua estava
coberta de névoa, a chuva tinha parado, mas eu sentia o ar molhado e frio. Como
de costume seguia a pé pra casa, já tinha deixado meu carro por lá antes de vir
ao bar. Passei pela praça, mas pude ver, sentado sozinho num banco, no meio da
praça, Breno, que baforava tranquilamente a fumaça de uma cigarro. Ele estava
longe, mas mesmo assim o brilho de sua camisa negra de cetim realçava, parece
que o nevoeiro nem o tocava.
Tive vontade de me
aproximar dele, dei alguns passos, mas parecia que algo me segurava, mesmo os
passos que dei não me levaram mais perto dele, ao contrário, Breno me pareceu
estar ainda mais longe, mais ofuscado pela névoa. Mas não era somente minhas
pernas, que pareciam não me levar aonde eu queria, meu coração estava apertado,
me sentia como naqueles sonhos onde a gente vê o quarto, ao redor da cama,
parecendo-nos que estamos acordados, contudo não conseguimos abrir os olhos e
nos levantar. Eu desisti, dei meia-volta e fui para casa.
Cheguei em casa e
liguei o televisor, passava um filme de ficção científica, desses de viagem no
tempo, o nome era “Looper” e o protagonista, Bruce Willis. O filme falava sobre
assassinos pagos para matar alguém que vem do futuro, enviados ao passado por
meio de uma máquina do tempo. Dessa forma, no tempo presente da vítima o crime
seria ocultado. Contudo, o feitiço vira contra o feiticeiro para o protagonista,
já que num determinado momento é enviado para ser morto por ele, ele mesmo.
Junto dele meso, uma quantidade considerável de barras de prata é mandada, se
ele aceitar a missão e matar a si mesmo, poderá viver trinta anos gozando a boa
vida adquirida pelas barras de prata, mas consciente que depois desse tempo ele
seria enviado ao passado para ser morto por ele mesmo. O protagonista nega-se a
se matar, ele quer quebrar o “loop”, mas se agir assim será morto no passado,
pela organização que administra os crimes, e obviamente não terá futuro.
Como toda história
de viagem no tempo, existem situações que não são possíveis, mas a ideia do
filme me fez pensar. Você morre, ninguém leva a culpa pela morte, e nem mesmo
você já que mata alguém do futuro que você nem conhece. Além disso ganha um
tempo considerável de vida com muito dinheiro pra gastar. Naquele momento achei
que eu já tinha vivido o suficiente, que era por isso que nada mais parecia ter
graça pra mim, pensei que talvez fosse o tempo de eu partir deste mundo.
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A morte legítima se
merece quando não a queremos, ela deveria nos ser concedida quando concluímos
que a melhor coisa que existe é viver, e viver com Deus. Obviamente, muita
gente, no livre arbítrio que lhes é dado, vive e vive e não aprende a maior
lição da existência encarnada. Assim, passa-se seu tempo, elas precisam partir,
e morrem do jeito errado, sem Deus.
As maiores bênçãos
que provamos de Deus são aquelas que nunca ficamos sabendo de suas existências,
não nesta vida pelo menos. Elas são grandes justamente porque se soubéssemos
delas elas perderiam o valor. Que bênçãos são? Os livramentos que Deus nos dá
de mortes antes do tempo certo. Elas não seriam tão benção porque se
soubéssemos delas ficaríamos traumatizados, mesmo que livres do fim, então Deus
nos poupa, duas vezes, da morte e do trauma dela.
Mas as mortes que
sofremos antes do tempo são aquelas provadas voluntariamente por nós mesmos,
quando nos colocamos em situações de risco. Dirigir um carro acima do limite,
beber bebida alcoólica sem moderação, fumar, assim como guardar rancor,
represar ansiedades, não aceitar os próprios limites, dores psicológicas que se
transformam em enfermidades do corpo.
Se conseguíssemos
viver toda uma vida em intimidade com Deus, a morte seria simplesmente dormir
no copo e acordar no céu, como as mortes que o profeta Elias e Enoque tiveram,
sem dor, sem trauma, em plena paz.
“Enquanto eles estavam caminhando e
conversando, um carro de fogo, com cavalos de fogo, separou-os um do outro; e
Elias subiu ao céu num redemoinho.” (II Reis 2.11)
“Enoque andou com Deus até que não foi mais visto, porque Deus o havia
tomado.” (Gênesis 5.24)
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