12 de out. de 2014

04 - Cano do revólver

Chovia naquela noite e a temperatura tinha caído bastante, era uma noite perfeita para se estar em casa com uma mulher carinhosa, mas eu estava lá, tomando o café da madrugada.
Em Águas de São Pedro só tinha velhos, não era feriado, então somente os aposentados com tempo livre estavam hospedados no Grande Hotel. Esses tinham sido a plateia de minha noite, na maior parte das vezes eram bons espectadores, são de uma geração que conhece boa música e respeitam músicos. Então aplaudem com facilidade, fazem pedidos, participam da apresentação. Apesar de milionários, esse era sempre o perfil dos hóspedes do Grande Hotel Senac de Águas, eram humildes e sabiam respeitar arte e artistas.
O mesmo, porém, não se podia dizer de seus herdeiros, filhos e netos mimados por uma riqueza que eles não produziram e que gastavam facilmente sem saber realmente quanto trabalho e tempo tinha custado para alguém. Mas enfim, músico é pago para fazer música, não podemos nos importar para quem fazemos e nem o que fazemos. Repertório e público é algo que músico profissional não pode ligar, tem que tocar aquilo que as pessoas querem ouvir e pronto.
O bar estava vazio, Raimundo lavava copos, me encostei ao balcão, cumprimentei-o e esperei o café. Breno tomou a iniciativa de falar comigo, não o vi chegar.
- Cansado? – disse ele.
- Bastante – resmunguei, olhando para ele.
- Você precisa de diversão.
- Músico não tem direito a isso, já que todos dizem que já trabalhamos com diversão, mas acaba sendo um serviço como todos os outros, na verdade é até pior, nós é sonegado o direito de nos divertirmos com a música. Depois de tocar por quatro horas, em duas noites seguidas, o que mais queremos é silêncio. Outros, chegariam em casa e colocariam um CD preferido pra tocar e relaxariam, eu estou com a alma exausta de produzir harmonias, dominar ritmos, ler notas, movimentas as teclas. Vou dormir e a “Garota” do Tom ainda continua soando na minha cabeça.
- Uma mulher experiente pode diverti-lo, uma partida de futebol com os amigos, ir ao cinema...
- Não tenho paciência pra mais nada.
- Festa de aniversário de criança, bolo de chocolate com morangos, brigadeiros, refrigerante, overdose de açúcar – disse Breno abrindo uma gargalhada irônica.
- Casais fingindo que a vida é perfeita, vinte pessoas entupindo uma sala de estar que só cabe meia dúzia, privacidade resumida a zero, você é obrigado a rir de piadas velhas, – eu respondi ponto pra fora toca a minha decepção com a vida – você é casado Breno? – emendei uma pergunta.
- As melhores coisas da vida são as mais simples – respondeu ele outra pergunta que não foi a última que eu fiz.
- Acho que preciso de prazeres artificiais, mais elaborados.
- Conheço um traficante que pode te vender algumas gramas de felicidade – disse ele dentro de sua camisa preta de cetim que brilhava de uma maneira excepcional naquela noite.
- Não, eu passo, – respondi sorrindo – nunca entrei nessa, já tentei fumar um baseado, mas engasguei até e não senti nenhum barato.
- Você é um músico diferente, a sua galera geralmente cheira muito, fuma muito.
- Viajo muito mais lúcido, nem álcool tenho bebido mais, parece que nada faz efeito, só não dispenso o café.
Nossa conversa foi interrompida com a entrada de um homem no bar, ele vestia capacete de motoqueiro e tinha na mão um revolver.
- Todo mundo quieto, passem o dinheiro – dizia o ladrão enquanto apontava a arma para a moça do caixa que tirava o dinheiro das gavetas e jogava no balcão.
Eu travei, fixei os olhos nele e permaneci imóvel, desobedeci uma das orientações que dão aos que enfrentam essa situação, de nunca encarar o bandido.
- Você está olhando o quê? – me disse o ladrão, eu permaneci calado.
Debaixo da viseira do capacete podia-se discernir o brilho dos olhos do marginal, um brilho terrível de quem não dá nenhum valor para a vida, então ele repetiu.
- Está olhando o quê? – naquele momento eu me senti absolutamente sozinho no lugar, eu o encarava, mas a minha visão periférica, ofuscada, não via mais ninguém, fosse o Raimundo, Breno ou a moça do caixa. Por um segundo eu me vi acima daquele lugar, fora de mim e dentro de mim ao mesmo tempo, como num sonho. Aquele filminho que dizem que se passa na nossa frente quando estamos próximos da morte, pois bem, ele não passou pra mim. Eu não vi passado, não achei presente, apenas me dei ao direito da possibilidade de um futuro que até agora eu não tinha pensado.
- Você quer morrer cara? – as três chamadas que ele me fez foram muito rápidas, uma atrás da outra, isso é, foram rápidas para os outros, para mim pareceram durar uma noite inteira, então ele atirou, bem, o revólver está com o cano grudado na minha testa, eu ouvi com clareza o gatilho sendo apertado.
- Morre... – mas eu não morri, alguém, em algum lugar fez com que a arma falhasse, não somente uma vez, mas duas, já que ele tornou a atirar. Sem balas ele bateu com a arma na minha cabeça, eu ainda consegui vê-lo saindo correndo, mas depois só fui ver novamente a moça do caixa, passando um pano molhado e frio em minha cabeça, eu estava sentando num cadeira com o Raimundo e um dos cozinheiros do bar ao me lado.
- O que é que aconteceu?
- O cara bateu em você e vazou, você desmaiou – disse Raimundo
- A arma, eu o ouvi atirando.
- É meu amigo, você nasceu de novo, o revólver falhou, duas vezes – me respondeu Rai com seu sorriso carinhoso.
Ainda fiquei sentado por alguns minutos, esperando a zonzeira passar, tinha um galo enorme na cabeça, mas não tinha sangrado.
- Acho que vou indo.
- Tem certeza de que não quer ir a um pronto-socorro? – disse a moça.
- Acho que estou bem.
- É bom tirar uma chapa, pra ver se não quebrou nada. – reinterou Raimundo.
- Tenho cabeça dura, é mais provável que tenha trincado o revólver – respondi enquanto me levantava. Breno não estava por lá.
A rua estava coberta de névoa, a chuva tinha parado, mas eu sentia o ar molhado e frio. Como de costume seguia a pé pra casa, já tinha deixado meu carro por lá antes de vir ao bar. Passei pela praça, mas pude ver, sentado sozinho num banco, no meio da praça, Breno, que baforava tranquilamente a fumaça de uma cigarro. Ele estava longe, mas mesmo assim o brilho de sua camisa negra de cetim realçava, parece que o nevoeiro nem o tocava.
Tive vontade de me aproximar dele, dei alguns passos, mas parecia que algo me segurava, mesmo os passos que dei não me levaram mais perto dele, ao contrário, Breno me pareceu estar ainda mais longe, mais ofuscado pela névoa. Mas não era somente minhas pernas, que pareciam não me levar aonde eu queria, meu coração estava apertado, me sentia como naqueles sonhos onde a gente vê o quarto, ao redor da cama, parecendo-nos que estamos acordados, contudo não conseguimos abrir os olhos e nos levantar. Eu desisti, dei meia-volta e fui para casa.
Cheguei em casa e liguei o televisor, passava um filme de ficção científica, desses de viagem no tempo, o nome era “Looper” e o protagonista, Bruce Willis. O filme falava sobre assassinos pagos para matar alguém que vem do futuro, enviados ao passado por meio de uma máquina do tempo. Dessa forma, no tempo presente da vítima o crime seria ocultado. Contudo, o feitiço vira contra o feiticeiro para o protagonista, já que num determinado momento é enviado para ser morto por ele, ele mesmo. Junto dele meso, uma quantidade considerável de barras de prata é mandada, se ele aceitar a missão e matar a si mesmo, poderá viver trinta anos gozando a boa vida adquirida pelas barras de prata, mas consciente que depois desse tempo ele seria enviado ao passado para ser morto por ele mesmo. O protagonista nega-se a se matar, ele quer quebrar o “loop”, mas se agir assim será morto no passado, pela organização que administra os crimes, e obviamente não terá futuro.
Como toda história de viagem no tempo, existem situações que não são possíveis, mas a ideia do filme me fez pensar. Você morre, ninguém leva a culpa pela morte, e nem mesmo você já que mata alguém do futuro que você nem conhece. Além disso ganha um tempo considerável de vida com muito dinheiro pra gastar. Naquele momento achei que eu já tinha vivido o suficiente, que era por isso que nada mais parecia ter graça pra mim, pensei que talvez fosse o tempo de eu partir deste mundo.

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A morte legítima se merece quando não a queremos, ela deveria nos ser concedida quando concluímos que a melhor coisa que existe é viver, e viver com Deus. Obviamente, muita gente, no livre arbítrio que lhes é dado, vive e vive e não aprende a maior lição da existência encarnada. Assim, passa-se seu tempo, elas precisam partir, e morrem do jeito errado, sem Deus.
As maiores bênçãos que provamos de Deus são aquelas que nunca ficamos sabendo de suas existências, não nesta vida pelo menos. Elas são grandes justamente porque se soubéssemos delas elas perderiam o valor. Que bênçãos são? Os livramentos que Deus nos dá de mortes antes do tempo certo. Elas não seriam tão benção porque se soubéssemos delas ficaríamos traumatizados, mesmo que livres do fim, então Deus nos poupa, duas vezes, da morte e do trauma dela.
Mas as mortes que sofremos antes do tempo são aquelas provadas voluntariamente por nós mesmos, quando nos colocamos em situações de risco. Dirigir um carro acima do limite, beber bebida alcoólica sem moderação, fumar, assim como guardar rancor, represar ansiedades, não aceitar os próprios limites, dores psicológicas que se transformam em enfermidades do corpo.
Se conseguíssemos viver toda uma vida em intimidade com Deus, a morte seria simplesmente dormir no copo e acordar no céu, como as mortes que o profeta Elias e Enoque tiveram, sem dor, sem trauma, em plena paz.

Enquanto eles estavam caminhando e conversando, um carro de fogo, com cavalos de fogo, separou-os um do outro; e Elias subiu ao céu num redemoinho.” (II Reis 2.11)

“Enoque andou com Deus até que não foi mais visto, porque Deus o havia tomado.” (Gênesis 5.24)

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