- Raimundo, e o
Breno, não apareceu hoje aqui? – perguntei ao meu amigo, com pressa.
- Breno? Não veio
aqui não –respondeu-me Raimundo com cara de quem não entendeu a pergunta.
Eu estava ansioso
para fechar o pacto funesto, nem pedi café, já tinha passado pela praça na
vinda, mas voltei lá para procurar o homem. O local estava vazio, mas diferente
da noite passada, uma garoa impedia a visão, tive que andar pela praça, conferindo
os bancos. Aquilo me deixou agoniado, resolvi ir para o lado do mercadão.
Estava tudo
fechado, as lojas dos chineses, as pastelarias, as distribuidoras de produtos
nordestinos, mas eu ouvi, vindo do lado esquerdo, um barulho de música.
Atravessei a calçadão e virei, logo à frente, havia luzes de um salão, olhei
para cima e vi o letreiro, “Salão universal dos santos independente”, era o
nome de uma igreja, acho eu. Parei, encostei-me à parede e fiquei olhando.
O barulho parou e
as pessoas começaram a sair, eram homens de terno e mulheres de cabelos
compridos com saias que iam até o pé. Sempre via as crentes de cabelos
compridos e saias, mas as saias daquelas eram muito longas, suas camisas ou
partes de cima dos vestidos, eram de mangas longas e colarinho alto, cobrindo o
pescoço. Alguns casais passaram por mim, calados, sisudos, não havia alegria
neles, pareciam zumbis, de pele branca, eram habitantes da noite que falavam da
luz, mas que fugiam do sol.
Eu olhei novamente
para porta e vi, junto de um homem de terno, que abaixava as portas de enrolar,
Breno. Eles não se falaram, o homem terminou de fechar o salão e foi para o
lado direito da rua, Breno veio em minha direção. Fiquei calado, ele pegou um
cigarro do maço e começou a fumar, e apesar de estar aproximando-se de mim não
pareceu me ver. Eu me sentia colado à parede, quando ele estava bem próximo,
olhou-me e me cumprimentou.
- Meu amigo Zé
Renato, você por aqui? – desencostei da parece e respondi.
- Não te achei no
bar, não sabia que frequentava igreja – ele não parou de andar, passou por mim
e eu segui com ele, a passos lentos, mas firmes.
- Eu frequento muitos
lugares, conheço muita gente, as pessoas mais fracas, por incrível que pareça,
estão nos lugares que menos esperamos – Breno falava muito bem, na verdade sua
linguagem destoava do modo dele se vestir, eram palavras de um professor de
filosofia, enquanto se trajava como um gigolô.
Ele parecia seguro,
dono do lugar, vivendo o melhor momento do seu dia. Duas moças vinham em nossa
direção, mas quando estavam bem perto de nós atravessaram a rua,
apressadamente, caladas e com os olhos fixos na calçada.
Seguimos em frente,
eu não dizia nada, ele apenas fumava. Umas cinco quadras depois, a rua cruzava
uma avenida, uma rua com duas mãos com um córrego no meio, uma região
comercial, sem residências, portanto absolutamente vazia naquela hora da noite.
Era uma zona de meretrício da cidade, prostitutas velhas e gordas disputavam
espaço com travestir enormes e jovens, um medo misturado com náusea pesou em
meu ventre, me senti indisposto.
Com Breno ao lado,
eu segui, desviando daqueles monstros que já tinham sido meninas mal criadas e
meninos abusados, e que agora trocavam seus corpos por pouco dinheiro. Aquele
ambiente só me deixou mais deprimido, era tudo muito triste, passei por um
traveco de quase dois metros que me olhou até à alma, ele se colocou em minha
frente, mas quando viu Breno, me deu passagem. Os perfumes misturados, usados,
profanados, de tantos corpos, me virava o estômago, de longe ouvia os risos escandalosos
de seres atormentados, mas quando nos aproximamos eles olharam Breno, abaixaram
a cabeça e se calavam. Quando chegamos num lugar, que parecia ser o centro
daquele comércio, Breno parou e encostou-se à parede, jogou o cigarro no chão,
e me disse.
- Vamos fechar o
trato? – eu olhava para um carro vermelho, um veículo novo e caro, onde um
homem bem vestido e de fala afetada conversava com um jovem. O moço era muito
bonito, de cabelos bem cortados, com o rosto limpo, sem barbas, mas vestindo
uma roupa suja. Parecia um anjo caído do céu, já todo suja de mundo, mas com um
resto de pureza no sorriso. Após a rápida conversa ele entrou pela outra porta
do carro e foi embora com o homem.
- Vamos, quanto é
que vai ficar? – disse, desviando meu olhar do carro que já ficava pequena na
avenida. Tudo aquilo parecia me entorpecer, não sentia meus pés no chão, havia
mais presenças invisíveis do que visíveis, naquele tempo eu não sabia
exatamente o que era isso.
- Mil e setecentos
reais – disse-me Breno.
- É exatamente o
que eu tenho.
Passei o dinheiro
pra ele, um pequeno pacote dobrado em quatro partes, ele pegou com as pontas
dos dedos da mão esquerda e colocou no bolso da camisa, fez isso com tanta
delicadeza que parecia estar tocando, não um dinheiro imundo, mas algo muito precioso.
Na verdade ele colocou no bolso não foram mil e setecentos reais, mas a minha
alma.
- Então é isso –
disse ele encerrando o assunto.
- Só? – perguntei,
ao que ele balançou a cabeça, liberando a fumaça do cigarro e olhando para
cima. – Quando vai ser?
- Você quer mesmo
saber? – olhou-me sério e confiante.
- Não. – respondi,
engolindo seco.
- Te dou um
conselho, não pense mais nisso, viva sua vida, deixe que a morte chegue como
tem que chegar para todos, de surpresa.
- Essa morte não
será como a de todos.
- O que importa, se
é Deus quem te leva ou se é o outro – disse ele, me encarando com uma luz neon
resplandecente na cara.
- Que outro? –
perguntei eu.
- Passar bem, meu
amigo, já vou indo – disse ele, seguindo em frente. Eu ainda fiquei ali parado
e o vi quando se aproximou de um grupo de prostitutas que se puseram a falar
com ele, elas o alisavam, passavam os dedos por entre seus cabelos, algumas
apertavam seu traseiro, e ele ria, uma risada alta. Eu virei de costas e voltei
pelo mesmo caminho que tinha vindo. Peguei à esquerda na rua do mercadão, virei
à direta no mercadão, e cheguei ao bar.
Quando passei pelo
bar, as portas já estavam fechadas, eu ainda não queria voltar pra casa, então
parei na praça e sentei-me num banco. Sentia bem, com uma paz esquisita, mas de
alguma forma prazerosa. Ainda estava de terno, camisa e gravata, então afrouxei
o nó da gravata e respirei fundo. O céu estava limpo, a lua enorme, a garoa
havia sumido. Não parecia a mesma noite, não parecia a mesma praça, não parecia
a mesma cidade.
Virei ar e viajei
naquele céu, subi como as baforadas da fumaça que saiam da boca de Breno. O
firmamento estava azul escuro, mas com poucas estrelas, poxa vida, fazia muito
tempo que eu não olhava para cima. Lembrei-me do céu que fazia quando eu
conheci Celma, me lembrei do céu de um natal da minha infância, um daqueles
natais que a gente não se esquece mais, lembrei-me de minha mãe, de minha mãe
jovem, com a idade que eu tinha naquele momento. Vi meu pai num sofá, lendo
jornal, calado, bravo, distante.
- Olá. – fui
acordado de meus devaneios por um homem – Boa noite – disse-me ele.
- Boa noite –
respondi meio assustado, susto que durou o tempo entre ouvir sua voz e fitar
seu rosto, seu rosto tirou do meu coração qualquer receio.
- Esta cidade é
bonita, ruas estreitas, você mora há algum tempo aqui – não foi uma pergunta,
exatamente, o que ele fez, achei estranho, mas com certeza deveria ser um
turista, pensei eu naquele momento, esses que vem de São Paulo, fugindo da
violência e acabam se portando com mais ingenuidade que os caipiras do interior
de quem eles tanto fazem chacotas. Acham que aqui é o paraíso, não tem bandido,
nem crime, mesmo nem naquele tempo isso era real.
- Sim, não muito,
mas acho que vou morrer aqui – disse isso sem pensar muito no trato que havia
acabado de fazer, eu me esqueci daquilo enquanto conversava com o homem.
Ele tinha a minha
altura, não era gordo, mas não era magro. Tinha a pele branca e os cabelos
castanhos bem claros, quase loiros, barba bem feita, vestia camiseta branca e
calça de sarja bege, era de uma simpatia extrema. Só depois que parei para
analisá-lo é que percebi que atrás dele, próximo ao coreto, havia outra pessoa,
fiquei novamente temeroso.
- Ah, desculpe-me
pela deselegância, este é meu amigo – informou-me ele, provavelmente por ter
percebido que eu estava olhando para o outro homem.
- Boa noite – disse
o outro se aproximando com o mesmo sorriso simpático na boca. Ele
cumprimentou-me abanando a cabeça e tornou a se afastar. Encostou-se ao coreto
e ficou lá, olhando para cima.
- Posso ajudá-los
de alguma maneira – perguntei, querendo me levantar, mas ele, sentando-se ao
meu lado, continuou conversando comigo.
- Nós somos
mensageiros de Deus – naquele instante o trato que fiz com Breno me veio à
cabeça, pensei, “meu Deus, tão rápido assim? É agora que vou morrer?”. Comecei
a suar frio, não conseguia falar, olhei para o homem assustado e ele continuou
falando.
- Não, não fique
com medo não, não somos de nenhuma religião – aquilo não me consolou, afinal de
contas assassino não devem ter religião mesmo, pensei eu, e ele seguiu.
- Não queira a
morte não, ela deve vir no tempo certo, não antes.
- Entendo – disse
eu pasmo.
- Você terá dez
encontros, em cada um deles conhecerá pessoas diferentes, cada uma delas dará a
você uma visão de vida, deste mundo e do outro. Reflita com cuidado em tudo o
que essas dez pessoas vão dizer a você, serão oportunidades para você mudar de
ideia. Seja como for, aquilo que você mais desejar é o que vai acontecer no
final.
- Mensageiros de
Deus? Como assim? – ele não me respondeu, levantou-se, foi até onde estava o
outro homem, então eles se viraram pra mim e abanaram as mãos, despedindo-se.
Seguiram então em direção à igreja matriz que naquela hora estava fechada, mas
eu tive a certeza que eles entraram por suas portas.
Não entendi nada, naquele
momento eu pensei, “quanta gente maluca neste mundo, eles falam as coisas, se
colar, colou, coisas que todo mundo pensa, conhecer gente, gente a gente
conhece o tempo todo, hoje mesmo conheci um monte de gente esquisita”.
Depois, voltando
para casa, fiz questão de ir até as portas da igreja e checar, mexi na maçaneta
e fiz a constatação, a catedral estava fechada, pelas frestas não vi nenhuma
luz, não havia ninguém lá dentro.
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Somos possuídos várias vezes e de várias
maneiras, por que isso acontece tanto? Não somos fagulhas aprisionadas em
matéria, mas labaredas queimando aos poucos pedaços de carne. Facilmente nossos
espíritos escapam, arrastando consigo os corpos, então invertem-se os papeis, a
matéria passa habitar o interior, envolvida por uma manta espiritual de sopro
de vida.
Nessas ocasiões nos
desligamos do chão, flutuamos entre outros seres que de alguma forma também estão
sendo movidos pelos espíritos, seus próprios e aqueles sem corpos, que nunca terão
carne, que invejam tanto homens encarnados.
Esses espíritos, intrinsecamente
invejosos, são encarcerados pela inveja, pelo orgulho e pela rebeldia contra
seu criador, o que faz com que caminhem em trevas eternas, presos a um mundo
que não é seu. Mas mesmo esse engano, é melhor que o futuro que lhes está
reservado, o inferno. Consciente ou não disso, quem sabe, eles aproveitam a
pequena liberdade que têm movendo aqueles que se deixam perder pela desilusão,
pelo egoísmo e pela ganância.
É na perdição que
somos movidos e possuídos, mas como essa perdição inspira músicos, pintores e
escritores, produz a arte, o que a alma humana consegue criar de mais próximo da
intimidade que o espírito do homem tem com Deus através do Espírito Santo.
Arte, a mentira mais doce, o vício mais sadio, a loucura mais lúcida, prazer de
uma estética que não existe nas cores de um quadro, nas notas de uma música ou
nas palavras do poema, mas na alma que interpreta tudo como beleza, não a do
artista, mas sua própria.
Mas a arte só
consegue criar esboços, daquilo que vê de longe, traços imprecisos do mundo
espiritual. A existência é sempre espiritual, por isso tanto desgosto na carne,
tanta incoerência, é causada pelo espírito humano precisando de Deus, mesmo que
muitas vezes não o admita isso conscientemente. Não, não são nossos corpos que
são transformados quando estamos em comunhão com Deus através de Jesus, são
nossos espíritos.
A alma, os nossos sentimentos
e os nossos pensamentos, pode entender e reter isso um pouco mais, mas o corpo
não, sempre será barro quebradiço e frágil. Só existe vida de verdade quando o
Espírito Santo habita e tem liberdade no homem, aí o ser humano prova um bocado
do céu, um pouco de eternidade, algumas gotas da água pura e cristalina da
vida, e um facho da luz do criador do universo.
“Porque, se viverdes segundo a carne,
morrereis; mas, se pelo Espírito mortificardes as práticas do corpo, vivereis. Pois
todos os que são guiados pelo Espírito de Deus são filhos de Deus. Porque não
recebestes um espírito de escravidão para vos reconduzir ao temor, mas o
Espírito de adoção, pelo qual clamamos: Aba, Pai! O próprio Espírito dá
testemunho ao nosso espírito de que somos filhos de Deus.”
Romanos 8.13-16
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