6 de out. de 2014

10 - Caminhando entre os espíritos

- Raimundo, e o Breno, não apareceu hoje aqui? – perguntei ao meu amigo, com pressa.
- Breno? Não veio aqui não –respondeu-me Raimundo com cara de quem não entendeu a pergunta.
Eu estava ansioso para fechar o pacto funesto, nem pedi café, já tinha passado pela praça na vinda, mas voltei lá para procurar o homem. O local estava vazio, mas diferente da noite passada, uma garoa impedia a visão, tive que andar pela praça, conferindo os bancos. Aquilo me deixou agoniado, resolvi ir para o lado do mercadão.
Estava tudo fechado, as lojas dos chineses, as pastelarias, as distribuidoras de produtos nordestinos, mas eu ouvi, vindo do lado esquerdo, um barulho de música. Atravessei a calçadão e virei, logo à frente, havia luzes de um salão, olhei para cima e vi o letreiro, “Salão universal dos santos independente”, era o nome de uma igreja, acho eu. Parei, encostei-me à parede e fiquei olhando.
O barulho parou e as pessoas começaram a sair, eram homens de terno e mulheres de cabelos compridos com saias que iam até o pé. Sempre via as crentes de cabelos compridos e saias, mas as saias daquelas eram muito longas, suas camisas ou partes de cima dos vestidos, eram de mangas longas e colarinho alto, cobrindo o pescoço. Alguns casais passaram por mim, calados, sisudos, não havia alegria neles, pareciam zumbis, de pele branca, eram habitantes da noite que falavam da luz, mas que fugiam do sol.
Eu olhei novamente para porta e vi, junto de um homem de terno, que abaixava as portas de enrolar, Breno. Eles não se falaram, o homem terminou de fechar o salão e foi para o lado direito da rua, Breno veio em minha direção. Fiquei calado, ele pegou um cigarro do maço e começou a fumar, e apesar de estar aproximando-se de mim não pareceu me ver. Eu me sentia colado à parede, quando ele estava bem próximo, olhou-me e me cumprimentou.
- Meu amigo Zé Renato, você por aqui? – desencostei da parece e respondi.
- Não te achei no bar, não sabia que frequentava igreja – ele não parou de andar, passou por mim e eu segui com ele, a passos lentos, mas firmes.
- Eu frequento muitos lugares, conheço muita gente, as pessoas mais fracas, por incrível que pareça, estão nos lugares que menos esperamos – Breno falava muito bem, na verdade sua linguagem destoava do modo dele se vestir, eram palavras de um professor de filosofia, enquanto se trajava como um gigolô.
Ele parecia seguro, dono do lugar, vivendo o melhor momento do seu dia. Duas moças vinham em nossa direção, mas quando estavam bem perto de nós atravessaram a rua, apressadamente, caladas e com os olhos fixos na calçada.
Seguimos em frente, eu não dizia nada, ele apenas fumava. Umas cinco quadras depois, a rua cruzava uma avenida, uma rua com duas mãos com um córrego no meio, uma região comercial, sem residências, portanto absolutamente vazia naquela hora da noite. Era uma zona de meretrício da cidade, prostitutas velhas e gordas disputavam espaço com travestir enormes e jovens, um medo misturado com náusea pesou em meu ventre, me senti indisposto.
Com Breno ao lado, eu segui, desviando daqueles monstros que já tinham sido meninas mal criadas e meninos abusados, e que agora trocavam seus corpos por pouco dinheiro. Aquele ambiente só me deixou mais deprimido, era tudo muito triste, passei por um traveco de quase dois metros que me olhou até à alma, ele se colocou em minha frente, mas quando viu Breno, me deu passagem. Os perfumes misturados, usados, profanados, de tantos corpos, me virava o estômago, de longe ouvia os risos escandalosos de seres atormentados, mas quando nos aproximamos eles olharam Breno, abaixaram a cabeça e se calavam. Quando chegamos num lugar, que parecia ser o centro daquele comércio, Breno parou e encostou-se à parede, jogou o cigarro no chão, e me disse.
- Vamos fechar o trato? – eu olhava para um carro vermelho, um veículo novo e caro, onde um homem bem vestido e de fala afetada conversava com um jovem. O moço era muito bonito, de cabelos bem cortados, com o rosto limpo, sem barbas, mas vestindo uma roupa suja. Parecia um anjo caído do céu, já todo suja de mundo, mas com um resto de pureza no sorriso. Após a rápida conversa ele entrou pela outra porta do carro e foi embora com o homem.
- Vamos, quanto é que vai ficar? – disse, desviando meu olhar do carro que já ficava pequena na avenida. Tudo aquilo parecia me entorpecer, não sentia meus pés no chão, havia mais presenças invisíveis do que visíveis, naquele tempo eu não sabia exatamente o que era isso.
- Mil e setecentos reais – disse-me Breno.
- É exatamente o que eu tenho.
Passei o dinheiro pra ele, um pequeno pacote dobrado em quatro partes, ele pegou com as pontas dos dedos da mão esquerda e colocou no bolso da camisa, fez isso com tanta delicadeza que parecia estar tocando, não um dinheiro imundo, mas algo muito precioso. Na verdade ele colocou no bolso não foram mil e setecentos reais, mas a minha alma.
- Então é isso – disse ele encerrando o assunto.
- Só? – perguntei, ao que ele balançou a cabeça, liberando a fumaça do cigarro e olhando para cima. – Quando vai ser?
- Você quer mesmo saber? – olhou-me sério e confiante.
- Não. – respondi, engolindo seco.
- Te dou um conselho, não pense mais nisso, viva sua vida, deixe que a morte chegue como tem que chegar para todos, de surpresa.
- Essa morte não será como a de todos.
- O que importa, se é Deus quem te leva ou se é o outro – disse ele, me encarando com uma luz neon resplandecente na cara.
- Que outro? – perguntei eu.
- Passar bem, meu amigo, já vou indo – disse ele, seguindo em frente. Eu ainda fiquei ali parado e o vi quando se aproximou de um grupo de prostitutas que se puseram a falar com ele, elas o alisavam, passavam os dedos por entre seus cabelos, algumas apertavam seu traseiro, e ele ria, uma risada alta. Eu virei de costas e voltei pelo mesmo caminho que tinha vindo. Peguei à esquerda na rua do mercadão, virei à direta no mercadão, e cheguei ao bar.
Quando passei pelo bar, as portas já estavam fechadas, eu ainda não queria voltar pra casa, então parei na praça e sentei-me num banco. Sentia bem, com uma paz esquisita, mas de alguma forma prazerosa. Ainda estava de terno, camisa e gravata, então afrouxei o nó da gravata e respirei fundo. O céu estava limpo, a lua enorme, a garoa havia sumido. Não parecia a mesma noite, não parecia a mesma praça, não parecia a mesma cidade.
Virei ar e viajei naquele céu, subi como as baforadas da fumaça que saiam da boca de Breno. O firmamento estava azul escuro, mas com poucas estrelas, poxa vida, fazia muito tempo que eu não olhava para cima. Lembrei-me do céu que fazia quando eu conheci Celma, me lembrei do céu de um natal da minha infância, um daqueles natais que a gente não se esquece mais, lembrei-me de minha mãe, de minha mãe jovem, com a idade que eu tinha naquele momento. Vi meu pai num sofá, lendo jornal, calado, bravo, distante.
- Olá. – fui acordado de meus devaneios por um homem – Boa noite – disse-me ele.
- Boa noite – respondi meio assustado, susto que durou o tempo entre ouvir sua voz e fitar seu rosto, seu rosto tirou do meu coração qualquer receio.
- Esta cidade é bonita, ruas estreitas, você mora há algum tempo aqui – não foi uma pergunta, exatamente, o que ele fez, achei estranho, mas com certeza deveria ser um turista, pensei eu naquele momento, esses que vem de São Paulo, fugindo da violência e acabam se portando com mais ingenuidade que os caipiras do interior de quem eles tanto fazem chacotas. Acham que aqui é o paraíso, não tem bandido, nem crime, mesmo nem naquele tempo isso era real.
- Sim, não muito, mas acho que vou morrer aqui – disse isso sem pensar muito no trato que havia acabado de fazer, eu me esqueci daquilo enquanto conversava com o homem.
Ele tinha a minha altura, não era gordo, mas não era magro. Tinha a pele branca e os cabelos castanhos bem claros, quase loiros, barba bem feita, vestia camiseta branca e calça de sarja bege, era de uma simpatia extrema. Só depois que parei para analisá-lo é que percebi que atrás dele, próximo ao coreto, havia outra pessoa, fiquei novamente temeroso.
- Ah, desculpe-me pela deselegância, este é meu amigo – informou-me ele, provavelmente por ter percebido que eu estava olhando para o outro homem.
- Boa noite – disse o outro se aproximando com o mesmo sorriso simpático na boca. Ele cumprimentou-me abanando a cabeça e tornou a se afastar. Encostou-se ao coreto e ficou lá, olhando para cima.
- Posso ajudá-los de alguma maneira – perguntei, querendo me levantar, mas ele, sentando-se ao meu lado, continuou conversando comigo.
- Nós somos mensageiros de Deus – naquele instante o trato que fiz com Breno me veio à cabeça, pensei, “meu Deus, tão rápido assim? É agora que vou morrer?”. Comecei a suar frio, não conseguia falar, olhei para o homem assustado e ele continuou falando.
- Não, não fique com medo não, não somos de nenhuma religião – aquilo não me consolou, afinal de contas assassino não devem ter religião mesmo, pensei eu, e ele seguiu.
- Não queira a morte não, ela deve vir no tempo certo, não antes.
- Entendo – disse eu pasmo.
- Você terá dez encontros, em cada um deles conhecerá pessoas diferentes, cada uma delas dará a você uma visão de vida, deste mundo e do outro. Reflita com cuidado em tudo o que essas dez pessoas vão dizer a você, serão oportunidades para você mudar de ideia. Seja como for, aquilo que você mais desejar é o que vai acontecer no final.
- Mensageiros de Deus? Como assim? – ele não me respondeu, levantou-se, foi até onde estava o outro homem, então eles se viraram pra mim e abanaram as mãos, despedindo-se. Seguiram então em direção à igreja matriz que naquela hora estava fechada, mas eu tive a certeza que eles entraram por suas portas.
Não entendi nada, naquele momento eu pensei, “quanta gente maluca neste mundo, eles falam as coisas, se colar, colou, coisas que todo mundo pensa, conhecer gente, gente a gente conhece o tempo todo, hoje mesmo conheci um monte de gente esquisita”.
Depois, voltando para casa, fiz questão de ir até as portas da igreja e checar, mexi na maçaneta e fiz a constatação, a catedral estava fechada, pelas frestas não vi nenhuma luz, não havia ninguém lá dentro.

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 Somos possuídos várias vezes e de várias maneiras, por que isso acontece tanto? Não somos fagulhas aprisionadas em matéria, mas labaredas queimando aos poucos pedaços de carne. Facilmente nossos espíritos escapam, arrastando consigo os corpos, então invertem-se os papeis, a matéria passa habitar o interior, envolvida por uma manta espiritual de sopro de vida.
Nessas ocasiões nos desligamos do chão, flutuamos entre outros seres que de alguma forma também estão sendo movidos pelos espíritos, seus próprios e aqueles sem corpos, que nunca terão carne, que invejam tanto homens encarnados.
Esses espíritos, intrinsecamente invejosos, são encarcerados pela inveja, pelo orgulho e pela rebeldia contra seu criador, o que faz com que caminhem em trevas eternas, presos a um mundo que não é seu. Mas mesmo esse engano, é melhor que o futuro que lhes está reservado, o inferno. Consciente ou não disso, quem sabe, eles aproveitam a pequena liberdade que têm movendo aqueles que se deixam perder pela desilusão, pelo egoísmo e pela ganância.
É na perdição que somos movidos e possuídos, mas como essa perdição inspira músicos, pintores e escritores, produz a arte, o que a alma humana consegue criar de mais próximo da intimidade que o espírito do homem tem com Deus através do Espírito Santo. Arte, a mentira mais doce, o vício mais sadio, a loucura mais lúcida, prazer de uma estética que não existe nas cores de um quadro, nas notas de uma música ou nas palavras do poema, mas na alma que interpreta tudo como beleza, não a do artista, mas sua própria.
Mas a arte só consegue criar esboços, daquilo que vê de longe, traços imprecisos do mundo espiritual. A existência é sempre espiritual, por isso tanto desgosto na carne, tanta incoerência, é causada pelo espírito humano precisando de Deus, mesmo que muitas vezes não o admita isso conscientemente. Não, não são nossos corpos que são transformados quando estamos em comunhão com Deus através de Jesus, são nossos espíritos.
A alma, os nossos sentimentos e os nossos pensamentos, pode entender e reter isso um pouco mais, mas o corpo não, sempre será barro quebradiço e frágil. Só existe vida de verdade quando o Espírito Santo habita e tem liberdade no homem, aí o ser humano prova um bocado do céu, um pouco de eternidade, algumas gotas da água pura e cristalina da vida, e um facho da luz do criador do universo.

Porque, se viverdes segundo a carne, morrereis; mas, se pelo Espírito mortificardes as práticas do corpo, vivereis. Pois todos os que são guiados pelo Espírito de Deus são filhos de Deus. Porque não recebestes um espírito de escravidão para vos reconduzir ao temor, mas o Espírito de adoção, pelo qual clamamos: Aba, Pai! O próprio Espírito dá testemunho ao nosso espírito de que somos filhos de Deus.
Romanos 8.13-16

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